Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
A Taxa básica tem pouca ou nenhuma influência sobre a inflação e bastante sobre o custo da dívida e sobre o investimento
"For centuries, enlightened opinion held for certain and obvious a doctrine which the classical school has repudiated as childish, but which deserves rehabilitation and honours. I mean the doctrine that the rate of interest is not self-adjusting at a level best suited to the social advantage, but certainly tends to rise too high"
M. Keynes - "The General Theory"
A taxa de juros é tema polêmico por excelência. A usura, entendida como a cobrança de juros abusivos sobre o dinheiro emprestado, sempre foi malvista. Condenada em todas as culturas e por todas as religiões. Com o inexorável avanço do capitalismo e da economia de mercado, os juros perderam a conotação moral, ou mais precisamente de imoralidade, que teve no passado. A teoria econômica, ao sustentar que a taxa de juros é apenas mais um preço determinado por forças competitivas e impessoais, transformou a condenação dos juros em uma velha superstição, cuja origem estaria na ignorância a respeito do funcionamento dos mercados.
Na "Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda", o livro seminal da macroeconomia, John M. Keynes sustenta que a longa tradição de condenação dos juros altos merece ser reabilitada. Sempre capaz de ver além das ideias estabelecidas, Keynes deixa claro que a taxa financeira de juros não é determinada por forças impessoais no mercado.
Como o seu objetivo primordial na "Teoria Geral" era explicar como a economia poderia ficar presa num equilíbrio com alto desemprego, ainda que a taxa de juros estivesse muito baixa, Keynes não desenvolve o seu raciocínio sobre o mal provocado das altas taxas de juros. Perfeitamente ciente de que já estava comprando muitas brigas, preferiu não abrir mais frentes de controvérsias. Nos capítulos finais, Keynes sugere que a incapacidade da teoria econômica de compreender a milenar resistência aos juros altos estaria associada à confusão entre os diferentes conceitos de taxa de juros. Concordo e acredito que a confusão continue a prevalecer. Vejamos por quê.
Um nome, diferentes conceitos
Sob a denominação comum de "a taxa de juros", existem inúmeros conceitos. A taxa de juros nominal, a taxa de juros real, a taxa de retorno do capital e a taxa natural de juros são conceitos distintos, todos igualmente referidos como "a taxa de juros" em diferentes contextos. É fundamental entender a diferença entre eles para procurar dissipar a confusão em torno da questão dos juros.
O primeiro conceito é simplesmente o da taxa financeira paga sobre um empréstimo, ou seja, a relação entre as unidades monetárias tomadas emprestadas e as unidades monetárias que deverão ser pagas ao final do empréstimo. Ao tomar emprestado 100 unidades monetárias e prometer pagar 110 da mesma unidade monetária ao fim de um ano, tomou-se emprestado a uma taxa nominal de juros de 10% ao ano. O segundo conceito é o da taxa real de juros, que é a taxa nominal descontada a variação do nível de preços no período. É a taxa de juros em termos de poder aquisitivo do empréstimo, ou seja, a taxa nominal de juros deflacionada pela variação do nível de preços no período.
Esses dois primeiros conceitos são relativamente simples e hoje bem compreendidos por qualquer pessoa minimamente familiarizada com operações financeiras. Já o terceiro conceito, a taxa própria de retorno do capital ("the own rate of interest of capital"), é um conceito abstrato definido como o rendimento real do capital investido. Para aumentar a confusão, é chamado de "a eficiência marginal do capital por Keynes" e de "a taxa de retorno do capital sobre o custo por Irving Fisher". Para simplificar, usemos a denominação utilizada por Keynes, Eficiência Marginal do Capital (EMK).
Embora seja expressa como um retorno percentual num determinado período de tempo, a EMK não é uma taxa financeira, mas sim uma medida da produtividade do capital. Para uma unidade de capital investido, quantas unidades de capital se obtém ao fim de um período. Essa taxa própria de retorno do capital não é uma taxa financeira que precise ser deflacionada, pois é a taxa em termos do próprio rendimento real do capital.
Já a taxa natural de juros é um conceito introduzido por Knut Wicksell, o economista sueco que, no fim do século XIX, em seu hoje clássico "Interest and Prices", questiona a Teoria Quantitativa da Moeda (TQM) e introduz uma tese alternativa para a determinação do nível geral de preços. Segundo Wicksell, o nível geral de preços não é função da quantidade de moeda, como sustenta a TQM, mas sim da pressão da demanda sobre a oferta.
Demanda e oferta agregadas seriam funções da taxa de juros, e a taxa de equilíbrio, aquela que manteria estável o nível geral de preços, seria a Taxa Natural de Juros (TNJ). A partir dos anos 90, quando finalmente se reconheceu que os bancos centrais não controlam a moeda, mas sim a taxa básica de juros, a macroeconomia e a política monetária foram reformuladas na direção sugerida por Wicksell. A TNJ de Wicksell não é uma taxa observável, mas uma taxa teórica que neutraliza as pressões sobre o nível de preços.
Os juros na teoria e na prática
Grande parte da verdadeira Babel em torno da questão dos juros advém do fato de que diferentes pessoas, em diferentes circunstâncias, se referem à taxa de juros sem deixar claro, e muitas vezes sem mesmo estar conscientes, do conceito de taxa de juros a que estão se referindo. A teoria econômica é em grande parte culpada por essa confusão, pois no modelo canônico de equilíbrio geral, o modelo de Walras-Arrow-Debreu (WAD), que é a referência lógica da disciplina, todos esses conceitos se confundem numa única taxa de juros.
O modelo de WAD é um modelo microeconômico de competição perfeita, um "idealtipo", em que o comportamento maximizador de agentes individuais garante o equilíbrio permanente de todos os mercados. Nesse sofisticado "idealtipo", corretamente denominado de Modelo de Equilíbrio Geral, o equilíbrio é instantâneo e não existe moeda. Existem mercados contingentes futuros e um bem que serve de referência como unidade de valor, ou um "numéraire" na denominação original de Walras. A taxa de juros - e aqui é correto falar em "a taxa de juros" - é, única e simplesmente, o preço de tempo em termos do "numéraire".
A realidade é bem mais complexa. Mesmo as taxas financeiras de juros variam segundo o risco de crédito e o prazo do contrato. Quanto mais alto o risco e mais longo o prazo, mais alta a taxa de juros. As taxas cobradas do consumidor no varejo refletem o risco de crédito, o prazo e também a competição ou a falta de competição no sistema financeiro. Alta incidência de defaults, prazos mais longos e falta de competição no sistema financeiro levam a taxas de juros mais altas no varejo.
Grande parte da crítica da mídia, do empresariado e dos políticos, em relação às altas taxas de juros, concentra-se, compreensivelmente, nas razões pelas quais as taxas de juros financeiras cobradas do consumidor e do empresariado são significativamente mais altas do que a taxa básica fixada pelo Banco Central. São questões práticas relevantes e merecem atenção, mas como a taxa básica do Banco Central é piso e a referência para toda a estrutura de taxas financeiras de juros na economia, é essa taxa que precisa ser melhor compreendida.