sábado, 10 de agosto de 2019

Opinião do dia: Roberto Freire*

Há algum tempo que o Brasil vem sendo diuturnamente agredido na sua concepção democrática, seja nas suas expressões culturais, no respeito à liberdade e, especialmente, ao Estado Democrático de Direito e a nossa Constituição. O presidente Bolsonaro é costumas nesses ataques, um órfão da ditadura de 1964. O risco maior é que isso possa ser um método claramente antidemocrático e que isso expressa uma visão anacrônica e reacionária ao imaginar, por exemplo, que pode haver uma recidiva ditatorial no País.

Lembro que para fazer uma oposição firme, como nós do Cidadania fazemos, tem que levar em consideração a necessidade de se criar uma ampla Frente Democrática. Deixar de veleidades, isolacionismos e de imaginar que o confronto político com esse governo se dará sem ter como ponto central a questão democrática e a defesa da Constituição de 1988. É com isso que temos que começar a nos preocupar.

*Roberto Freire é presidente do Cidadania, em entrevista ao Portal do partido, 8/8/2019

Dom Odilo P. Scherer*: Perseguição religiosa, risco para a paz

- O Estado de S.Paulo

Papa denomina essa fúria persecutória como genocídio causado pela indiferença coletiva

Há poucos dias as mídias sociais noticiaram o assassinato do padre católico nigeriano Paul Offu, da Diocese de Enugu. Foi o segundo sacerdote morto na Nigéria com poucos meses de diferença e o 13.º em todo o mundo somente neste ano de 2019.

O fato levou os padres daquela diocese a fazer um protesto bastante singular, saindo pelas ruas vestidos com paramentos normalmente usados apenas em celebrações litúrgicas.

Também em vários outros países da África os cristãos vivem sob a ameaça de grupos islâmicos radicais, mesmo em países onde, por séculos, muçulmanos e cristãos conviveram harmonicamente, como no Quênia, na Tanzânia, em Moçambique, Burkina Faso, Uganda e Ruanda. Os muçulmanos tolerantes também acabam sofrendo a pressão de grupos fundamentalistas radicais, que os acusam de ser traidores. Algo semelhante acontece em outras partes do mundo, em países onde os cristãos são, por vezes, minorias muito reduzidas. No Iraque, onde viviam tradicionalmente mais de 1,5 milhão de cristãos, hoje não resta mais que uma décima parte deles. A mesma pressão sofrem os cristãos na Síria, no Paquistão, no Afeganistão, na Indonésia e até mesmo nas Filipinas.

A discriminação religiosa contra cristãos nem sempre é debelada mediante iniciativas internacionais eficazes para deter essa fúria persecutória, denominada pelo papa Francisco como “genocídio causado pela indiferença geral e coletiva” (12 de abril de 2012). A maioria dos crimes de perseguição religiosa recebe pouca ou nenhuma atenção e fica impune e sem consequências. Mesmo democracias consolidadas por vezes simplesmente fecham os olhos e não tomam posição diante de violações flagrantes da liberdade religiosa em outros sistemas, a pretexto de manterem boas relações políticas ou econômicas com violadores evidentes do direito a essa liberdade fundamental.

No entanto, a discriminação e a perseguição religiosa de um ser humano, como qualquer discriminação, são injustas e moralmente inaceitáveis, pois constituem ataques à liberdade fundamental da pessoa e a negação de um direito natural reconhecido a todo indivíduo pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Organização das Nações Unidas. Esse direito deve ser assegurado pelos governos locais e pelos organismos internacionais a todos os cidadãos. A violação do direito à liberdade religiosa vai além do cerceamento de uma liberdade exterior: ela atinge o âmago da consciência e das convicções pessoais a respeito de valores, aspirações e as referências mais sagradas da existência. Essa violação nunca vem isolada: no seu séquito vêm também a negação ou a restrição das liberdades civis, em geral.

João Domingos: Ética e autorregulação

- O Estado de S.Paulo

Abalado pela Lava Jato, setor de infraestrutura busca se reerguer

A reforma da Previdência está bem encaminhada, o que já permite que se vejam sinais do restabelecimento da confiança na superação dos problemas fiscais e busca de equilíbrio das contas públicas do País.

A reforma tributária tende a seguir o mesmo caminho, quem sabe com uma legislação moderna e simplificada sobre tributos. O programa de privatizações pode ser o maior da história, o que permitirá, depois de feito, o início de um projeto de obras de infraestrutura em rodovias, ferrovias, portos, saneamento básico e energia.

E aí é que se encontra um grande problema. Boa parte das empresas de infraestrutura ainda está inidônea por causa do envolvimento nos casos de corrupção descobertos pela Operação Lava Jato e não pode participar de obras públicas. Outras estão em fase de recuperação judicial. Centenas de milhares de empregos foram perdidos. Tecnologias de engenharia apurada correm o risco de nunca mais serem recuperadas se as empresas não conseguirem sair da situação em que se encontram e recuperar o prestígio que já tiveram.

Foi essa situação preocupante em relação a um outrora avançado setor da economia do País que levou um grupo de especialistas em infraestrutura e ex-integrantes de governos anteriores a buscar uma forma de tirar as empresas do atoleiro. Levando-se em conta que quem cometeu crimes tem de pagar por eles, como muitos já pagaram, com prisão e multas pesadas, e que as empresas e o capital tecnológico e de conhecimento de infraestrutura têm de ser preservados, esses especialistas, sob o comando do general Sérgio Etchegoyen (ministro do Gabinete de Segurança Institucional de Michel Temer), decidiram criar um grupo executivo e procurar o Instituto Ethos, a FGVethics e o International Financial Corporation (IFC), uma espécie de BNDES do Banco Mundial, para montar um plano de reerguimento do setor à base da ética.

Adriana Fernandes: Coaf sob nova direção

- O Estado de S.Paulo

Com a troca de comando, governo espera que conselho saia dos holofotes

A transferência do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) para o Banco Central vai implicar na saída do auditor da Receita Federal Roberto Leonel Oliveira Lima da presidência do órgão.

Não há ainda nenhum nome acertado para assumir o comando do órgão, que vai se transformar em uma unidade de inteligência financeira do BC com boa parte dos funcionários do próprio banco.

A troca de comando faz parte da solução técnica que o ministro da Economia, Paulo Guedes, busca costurar para o conflito político de Poderes em torno do trabalho de investigação do órgão.

Sob o teto do BC, uma autarquia essencialmente de caráter técnico, o que se espera é que o conflito diminua sem as suspeitas e ataques de todos os lados envolvidos na disputa e sem a desconfiança de que o Coaf estaria atuando em favor de grupos específicos.

O desenho acertado entre Guedes, o ministro da Justiça, Sergio Moro, e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, é o de uma “blindagem” técnica via o projeto de independência do BC, que está em tramitação do Congresso.

Hélio Schwartsman: Direito ameaçado

- Folha de S. Paulo

Ciência nos dá elementos para questionar a ideia de que juízes podem julgar objetivamente

A Folha de terça-feira (6) trouxe duas reportagens de pessoas que, ao que tudo indica, passaram anos da cadeia por causa de erros judiciais, mais especificamente de reconhecimentos equivocados.

Igor Barcelos, 22, ficou preso por três anos após ter sido identificado como autor de um roubo de carro, embora haja evidências físicas de que seria impossível que ele estivesse no local e hora do crime. O Innocence Project Brasil levantou as provas que o tiraram da cadeia. Ele permanecerá em liberdade enquanto a Justiça reanalisa o seu caso.

Antônio Cláudio Barbosa de Castro amargou cinco anos de prisão por ter sido apontado como autor de um estupro por uma menina de 11 anos, num inquérito que a polícia julgou inconclusivo —mas a juíza de primeira instância não. O Innocence Project também levantou incongruências em seu processo e ele foi inocentado na segunda instância.

Se é verdade que avanços tecnológicos, como exames de DNA, trouxeram novas e mais poderosas ferramentas para investigadores e juízes, a ciência, de modo mais amplo, não tem sido gentil com o direito.

Talita Fernandes: O stand-up do Alvorada

- Folha de S. Paulo

Jair Bolsonaro faz do ato de governar um espetáculo

Eleito com a alcunha de mito, Jair Bolsonaro faz do ato de governar um espetáculo. Desde que assumiu o cargo, viajou oito vezes ao exterior. Reuniu-se com líderes europeus da envergadura de Angela Merkel e Emmanuel Macron, além de dois encontros com Donald Trump.

A trajetória poderia ser um grande salto para quem há pouco menos de um ano era um deputado do baixo clero. Mesmo assim, nenhum desses feitos foi capaz de despertar no chefe do Executivo o mesmo entusiasmo que tem ao desempenhar seu papel favorito, de "showman".

Buscando difundir sua narrativa, nas últimas semanas, Bolsonaro passou a se dividir entre as lives nas redes sociais e a porta do Palácio da Alvorada, de onde tem falado pelas manhãs. Como um apresentador de programa de auditório, aguarda a plateia antes de aparecer. Na ausência de apoiadores do lado de fora, o comboio passa direto. As interações com a imprensa no local garantem ao presidente chamadas nos principais veículos. Como o ofício de showman não é compatível com o de dirigente de um país, suas declarações ofuscam o governo.

Demétrio Magnoli*: A cela de Luiz Inácio —e a dos Silva

- Folha de S. Paulo

Cada expressão empregada no debate jurídico sobre Lula remete à sorte dos Silva

Luiz Inácio foi Silva, mas isso faz muito tempo. Na sentença original, Sergio Moro determinou que, "em razão da dignidade do cargo exercido", sua cela seria uma "espécie de sala de Estado-maior". A juíza Carolina Lebbos, revendo a orientação de execução penal, mandou transferi-lo para "cela especial" em alojamento coletivo. A defesa divergiu, alegando que Lebbos "subtraiu" ao condenado o direito de ficar "separado dos demais presos, sem qualquer risco para a integridade moral ou física". Cada expressão empregada no debate jurídico remete à sorte dos Silva —mas fingimos que não.

Aqui, sugiro um exercício de abstração. Vamos ignorar, apenas nos limites desse texto, que sobre a sentença condenatória pesa a sombra do conluio entre Estado-julgador e Estado-acusador e, ainda, que a ordem de transferência emitida por Lebbos inscreve-se na agenda política do "Partido dos Procuradores". Em nome dos que nunca deixaram de ser Silva, convido o leitor a concentrar sua atenção na mensagem emanada dos juízes Moro e Lebbos e dos advogados de Luiz Inácio. Eles estão dizendo que cometemos o maior dos crimes ao punir os crimes dos Silva.

Marcus Pestana: Redes sociais, democracia e a sociedade hiperconectada

- O Tempo ( MG)

Tempos confusos, tempos conturbados, mudança multidimensional e estrutural que se dá em meio à agonia e a incerteza são expressões utilizadas pelo primeiro e talvez maior intérprete da “Sociedade em Rede”, o sociólogo espanhol Manuel Castells, para qualificar os desafios da ruptura de paradigma representada pela revolução produzida pela Internet e suas redes sociais.

Como participante de uma geração “pré-Internet” sempre acreditei que democracia era tornar cada vez mais público o que é público e cada vez mais privado o que é da órbita individual. Mas a verdade é que parecemos condenados a viver numa “sociedade BBB”, hiperconectada, exibicionista, transparente além de qualquer limite e com uma concentração absurda de informações e poder em mãos das grandes plataformas utilizadas. É uma tendência universal e irreversível. A hiperexposição de tudo e todos têm vantagens e desvantagens. Ainda na era analógica, o grande cronista e teatrólogo Nelson Rodrigues cravou: “Se cada um soubesse o que o outro faz dentro de quatro paredes, ninguém se cumprimentava”.

A evolução do mundo moderno foi marcada pelas inovações tecnológicas que resultaram em saltos qualitativos na forma de produção e convívio social. A Internet foi mais uma inovação disruptiva e transformou a vida em suas dimensões econômica, social e política.

A inovação é neutra do ponto de vista moral e ético. O uso e suas consequências dependem de quem a utiliza. A Internet pode servir para grandes campanhas humanitárias e à difusão de conhecimento, mas também pode ser instrumento de redes de pedofilia. Há registros de que Santos Dumont e Einstein morreram carregados de tristeza em face do uso nas duas Grandes Guerras do avião e da bomba atômica, filha da famosa fórmula.

A internet e as redes sociais propiciaram um enorme aumento da produtividade e de eficiência na economia, mudaram padrões de comportamento e relacionamento entre as pessoas possibilitando maior aproximação em escala global e construíram uma poderosa ferramenta para o aprofundamento da democracia participativa, propiciando maior transparência e controle social sobre os processos de decisão.

João Rego: O Polo Democrático no Brasil: Rumo à “Estação Tolerância”

- Revista Será? (PE)

No Brasil, os processos políticos recentes foram forjados por um movimento pendular, partindo da esquerda fascinada com seu líder Lula – alguns cegos diante das provas irrefutáveis da corrupção em que a cúpula do PT se envolveu, outros, por não terem onde sustentar suas utopias, a negar a realidade de que o projeto do PT naufragou, conspurcando o histórico significante “esquerda” – para outro extremo, de forma irracional, caracterizado pelo antipetismo, caindo nos toscos braços da direita e de um novo mito: Bolsonaro.

A isto chamo de “Pêndulo da Irracionalidade”. Um processo da nossa recente história democrática, que tensiona ao máximo as instituições e a visão de mundo do cidadão comum, dividindo a sociedade em dois grupos, com suas certezas radicais, onde a intolerância é o filtro embaçado através do qual eles percebem a realidade.

Existe, entretanto, um enorme segmento de cidadãos – políticos, intelectuais, empresários e trabalhadores – que se recusam a ser capturados por essa histeria coletiva, guiada e manipulada pelos dois extremos: lulistas e bolsonaristas. Socialistas progressistas, humanistas e liberais progressistas encontram-se hoje em uma ravina da História, que, embora suas correntes de pensamento tenham sido construídas por caminhos antípodas, veem hoje o futuro das sociedades como um amplo vale, onde a democracia se impõe como um valor universal.

A este grupo defino como o Polo Democrático. Alguns o definem como Centro Democrático, mas, para evitarmos a sujeição do velho esquema de esquerda, direita e centro, prefiro Polo, pois nele continuam atuando pessoas de esquerda, de centro e de centro-direita , ou até de direita, desde que suas práxis sejam moldadas pelos princípios fundantes da democracia, onde as ideologias (destas ninguém escapa) sejam abertas à crítica, e suas visões de mundo reconheçam a impossibilidade de certezas estáticas, aprisionadoras do espírito humano, como foram o nazismo, o fascismo, setores radicais do comunismo e as religiões fundamentalistas.

A democracia como valor universal não é um estado a que se chega, e sim, ao contrário, um árduo e contínuo processo ad infinitumde aperfeiçoamento do convívio em sociedade, onde a tolerância e a abertura para o outro, que pensa, vive, e é diferente de você, é o veio central das relações humanas. A liberdade do indivíduo e suas expressões têm que ser garantidas pelo Estado e suas leis. Democracia é, na história da humanidade, a instância final de todo o nosso processo civilizatório.

Ser movido pela tolerância implica necessariamente ser aberto às mudanças de valores e costumes da inclusão social, religiosa e de gênero. Enfim, entender que democracia é espaço para acolher o humano e sua rica diversidade. O único óbice à cultura democrática é abrir espaço para a intolerância.

Marco Antonio Villa: Bolsonaro cada vez mais autoritário

- Revista IstoÉ

O seu projeto é destruir a democracia. Pego em ilegalidades, assume ares de vítima

Um fantasma ronda o Brasil, o fantasma do autoritarismo. A tradição republicana não tem sido pródiga com os valores democráticos. Ao longo dos 130 anos de República, somente nos últimos 31 anos vivemos sob plenas liberdades democráticas. E graças à Constituição de 5 de outubro de 1988. Isto não significa que ficamos imunes aos equívocos, já que o texto é excessivamente detalhista e prolixo. Contudo, desde 1891, para ficarmos somente na República, é a nossa carta magna que pela primeira vez garantiu valores democráticos fundamentais. Justamente por isso, encontra nos tempos atuais uma forte oposição daqueles identificados com uma visão de mundo neofascista.

Tanto que está sendo testada todo santo dia. Seu principal desafiador é o Presidente da República. É no Palácio do Planalto que está o seu maior adversário. Jair Bolsonaro tem a plena convicção que não poderá governar como deseja tendo a companhia da Constituição. Seu projeto autoritário e sua concepção política neofascista provocaram vários embates nesses primeiros sete meses de governo. E nada indica que o conflito esteja próximo do fim. Muito pelo contrário. Basta recordar o episódio envolvendo a questão referente à demarcação das reservas indígenas e o papel da Funai. A Constituição é claríssima. No artigo 62, parágrafo 10, reza: “É vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo.” Apesar da nitidez do texto constitucional, de forma provocativa Bolsonaro reeditou uma medida provisória. E, claro, foi derrubada pelo Supremo Tribunal Federal por unanimidade.

Merval Pereira: Sob fogo cruzado

- O Globo

Dallagnol ganhou a prioridade depois que os ataques ao ministro da Justiça não resultaram em seu afastamento

O chefe dos procuradores de Curitiba, Deltan Dallagnol, é o principal alvo das ações contra a Operação Lava-Jato, cujos autores encontraram entre si interesses pessoais e familiares maiores do que as eventuais divergências políticas.

Dallagnol ganhou a prioridade depois que os ataques ao atual ministro da Justiça, Sergio Moro, não resultaram nem em seu afastamento, muito menos na possibilidade de anular julgamentos seus quando juiz. Moro continua sendo o ministro mais popular do governo Bolsonaro, embora tenha perdido apoio no decorrer dessa campanha, que ainda está em andamento.

Dependerá do Supremo Tribunal Federal (STF) definir se a ilegalidade com que foram conseguidos os diálogos entre Moro e Dallagnol, e dos procuradores entre si, não é empecilho para usá-los como prova.

Não há discussão de que provas ilegais não podem servir para condenar alguém, mas há jurisprudência a favor de que elas podem servir para inocentar. Caso seja esse o entendimento da maioria dos ministros do STF, interessados poderão apelar para anular julgamentos presididos pelo juiz Sergio Moro no âmbito da Operação Lava-Jato.

Será preciso, no entanto, comprovar que os diálogos não foram montados para, em seguida, provar que determinado julgamento foi influenciado por atitudes e decisões reveladas nos diálogos ilegais. Um longo caminho, portanto, e, até agora, os diálogos servem apenas ao ex-presidente Lula.

Todos se referem a seus processos, o que reforça a crítica de que a divulgação teria o objetivo de anular sua condenação. Os demais diálogos atingem os procuradores de Curitiba e, em especial, Deltan Dallagnol, que vê semelhança entre o que está acontecendo contra a Operação Lava-Jato e o que ocorreu na Itália, coma Operação Mãos Limpas.

Daniel Aarão Reis: A lógica do insulto

- O Globo

Afrontas e vitupérios rebaixam debate, amesquinham troca de ideias, personalizam as discussões

Donald Trump tem feito do insulto a adversários uma espécie de sistema. Desde a campanha eleitoral que o tornou presidente dos EUA, não tem feito outra coisa. Recentemente, investiu contra Megan Rapinoe, capitã da equipe de futebol americana, campeã mundial. Daí a dias agrediu sem pudor quatro deputadas do Partido Democrata, eleitas em novembro último. Num discurso que fez na Carolina do Norte, usou 20 dos 90 minutos de sua fala para ofender as representantes do povo. Quem são elas? Duas são muçulmanas, as primeiras deste credo religioso a aceder ao Parlamento: Ilhan Omar, de Minnesota, e Rashida Tlaib, do Michigan. As outras foram Alexandria Ocasio-Cortez, de Nova York, filha de imigrantes porto-riquenhos, e Ayanna Pressley, negra, do Massachusetts. Aos xingamentos e chacotas, Trump adicionou a intimação: “Voltem a seus países de origem”. Açulada, a multidão urrava: “Que sejam expulsas!” Pareciam ignorar que são mulheres americanas, três nascidas nos EUA, e uma naturalizada há anos. Dispondo dos direitos inerentes à cidadania democrática. Tanto como qualquer um deles e o próprio Trump.

Passados alguns dias, Trump investiu contra Elijah Cummings, negro, de Maryland, também deputado pelo Partido Democrata, caracterizando o distrito que o elegeu como “um lugar repugnante” e “infestado de ratos”.

As diatribes suscitaram emoção e indignação. A Câmara de Deputados, até com votos de alguns republicanos, aprovou moção de protesto. As mulheres reafirmaram que não se intimidarão nem se calarão, permanecendo fiéis a suas convicções e decisão de luta. Nesta altura, ninguém duvida que Trump é um rematado estúpido. Como dizia um humorista, ele não apela a ofensas porque “não sabe o que faz”, mas “só faz o que sabe”. Não haveria, porém, uma lógica política neste recurso sistemático às injúrias? A uma análise mais acurada, alguns aspectos chamam a atenção.

Míriam Leitão: Austeridade não é só corte

- O Globo

Política ambiental do governo desperdiça recursos públicos, prejudica a imagem do país e afeta o agronegócio

Do ponto de vista estritamente econômico, apolítica ambiental do governoBol sonar o está errada. Ela promove o desperdício de recursos públicos quando ataca órgãos públicos e os constrange no exercício de suas missões, como o Ibama, ICMBio e Inpe. Com a briga destemperada contra a Noruega e o Fundo Amazônia, ela rasga dinheiro que tem ajudado estados e municípios. Ela cria um ambiente favorável às barreiras não tarifárias contra o agronegócio brasileiro. É ela que está piorando a imagem do Brasil no exterior e isso tem um custo.

O Brasil tem um imenso rombo nas contas públicas e precisa ter como meta a redução do déficit. A política de austeridade não é apenas cortar gastos, mas usar de forma mais eficiente os recursos. No caso da briga contra o monitoramento das florestas, é ainda pior porque o ministro do Meio Ambiente tem falado em contratar um serviço privado para fazer o mesmo que o setor público já faz. Que explicação terá o governo, que corta gastos com educação, para contratar uma empresa privada para monitorar o desmatamento, que é a função do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe)? Nenhuma explicação é boa. O ministro Ricardo Salles fala constantemente disso, desde antes da posse. Qualquer que seja o custo será inaceitável num contexto em que o governo precisa economizar.

Austeridade é usar de forma mais eficiente possível os órgãos públicos, o trabalho dos servidores, os equipamentos, a máquina. O custo fixo já está dado. Os salários dos servidores são pagos, a máquina é sustentada pelo Orçamento, os investimentos em todos os instrumentos e ferramentas de trabalho já foram feitos. Quando o presidente abre uma guerra contra os órgãos ambientais ele está inibindo a prestação de serviços que são pagos por nossos impostos.

Ricardo Noblat: Conta tudo, Toffoli!

- Blog do Noblat / Veja

Golpe abortado
Nada mais grave do que as revelações do ministro José Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal, em entrevista publicada na mais recente edição da VEJA. Em resumo, ele contou que entre abril e maio últimos houve uma tentativa de golpe para depor o presidente Jair Bolsonaro. Mas que ele interveio e junto com outros nomes de peso da República conseguiu abortar.

Isso não pode ficar assim. O ministro está obrigado a dar nomes aos bois. A nomear, por exemplo, o general que trabalhava com o presidente e que fez consultas para saber se o Exército poderia ir às ruas em defesa da lei e da ordem mesmo sem autorização de um dos poderes da República. E a nomear também os parlamentares e industriais que se envolveram no complô.

Toffoli deu a entender que foi sob a ameaça do golpe que adiou o julgamento no Supremo da ação que poderia acabar com a prisão em segunda instância, beneficiando Lula. E que mandou suspender os processos com base em informações fiscais obtidas sem prévia autorização judicial. Disso beneficiou-se o senador Flávio Bolsonaro, investigado pelo Ministério Público do Rio.

A preocupação com o golpe, segundo Toffoli, destravou na Câmara a aprovação da reforma da Previdência. E os que viam no parlamentarismo a melhor forma de governo a ser implantada com a deposição de Bolsonaro acabaram abandonando a ideia. Dito com outras palavras: por vias tortas, adotou-se a proposta de um pacto entre os três poderes sugerida por Toffoli à época.

Saudemos, pois, a vitória da sensatez, embora não baste. Certamente, essa não foi a intenção do ministro, mas ao negar-se a fazer um relato detalhado sobre o perigo que o país atravessou, ele protege criminosos em potencial e deixa gente inocente sob suspeita. Convenhamos: não é a melhor forma de se fazer justiça nem de se prevenir contra outras aventuras do gênero.

De resto, não custa repetir, o distinto público tem o direito de saber.

Esqueceram de avisar Bolsonaro

O golpe de cada um
Ou só por meio da entrevista do ministro Dias Toffoli o presidente Jair Bolsonaro ficou sabendo que escapou de ser golpeado, ou ele soube a tempo e a hora, mas não deu a menor importância.

Porque ele em nada mudou seu comportamento de agente provocador de crises. Não se passa um dia sem que invista contra um alvo ou mais de um. Continua atirando em todas as direções.

O que pensa a mídia: Editoriais

O uso do poder para fins pessoais, anátema na República: Editorial / O Globo

É legítimo Bolsonaro executar o programa que o elegeu, mas dentro das regras constitucionais

Um presidente da República não pode agir levando em conta seus interesses pessoais, sentimentos e ressentimentos

Todos os que têm cargo público no Brasil, sejam ou não eleitos, não podem usá-lo para fins pessoais. Essa proibição aparece claramente em nossa Constituição. O artigo 37 é cristalino. Diz que a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios obedecerá, entre outros, ao princípio da impessoalidade. Ou seja, no exercício da função, nenhum agente público pode agir para satisfazer seus interesses pessoais ou levando em conta seus sentimentos ou seus ressentimentos. Na definição de Celso Antônio Bandeira de Mello: “A administração tem que tratar a todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas. Nem favoritismo nem perseguições são toleráveis.”

Esse é o fundamento da República, da Res Publica, da Coisa Pública.

O presidente da República é o chefe da administração pública no Poder Executivo. Ele, mais do que ninguém, está submetido a essa regra. O presidente Jair Bolsonaro tem dito coisas assim, porém: “Imprensa, eu ganhei as eleições, eu sou o Johnny Bravo. Parem de me derrubar. Vamos em frente.” Mas submeter-se à regra constitucional é um dever que não mudaria nem na hipótese absurda de ter sido eleito por unanimidade. Agir de outra maneira é atentar contra a Constituição, ele que, na posse, diante do Congresso Nacional, prestou solenemente o juramento constitucional.

Bolsonaro tem dado mostras de não entender isso, não se sabe se de forma consciente ou inconsciente. Não importa, suas ações são de extrema gravidade. As últimas semanas foram infelizmente ricas em exemplos.

Em 15 de julho, Bolsonaro anunciou que indicaria o seu filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, para o cargo de embaixador nos EUA, o posto mais alto da diplomacia mundial. As razões apontadas por ele: seu filho fala inglês, é viajado e tem relações de amizade com a família Trump (em seguida, o próprio filho disse que também o credenciava para o cargo o fato de ter feito um programa de intercâmbio linguístico nos EUA e de ter fritado hambúrgueres por lá). Criticado, o presidente não escondeu uma de suas motivações, numa rede social no dia 18 de julho: “Lógico, que é filho meu, pretendo beneficiar filho meu, sim. Pretendo, se puder, dar filé-mignon”. Percebendo a confissão, emendou: “Mas não tem nada a ver com filé-mignon, nada a ver, é realmente, nós aprofundarmos um relacionamento com um país que é a maior potência econômica e militar do mundo”. Dias depois, reforçando que se tratava de satisfazer um capricho, admitiu que o Senado poderia até mesmo barrar a indicação. Mas anunciou o remédio que pretendia usar: “Imagine que no dia seguinte eu demita o [ministro de Relações Exteriores] Ernesto Araújo e coloque meu filho. Ele não vai ser embaixador, ele vai comandar 200 embaixadores e agregados mundo afora.” Não importa que diga uma coisa para se desdizer em seguida e voltar a dizer. Um presidente da República está proibido de tomar atitudes movido pelos sentimentos de um pai, não pode usar o cargo para acarinhar um filho. É inconstitucional.

André Lara Resende*: O equívoco dos juros altos

Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

A Taxa básica tem pouca ou nenhuma influência sobre a inflação e bastante sobre o custo da dívida e sobre o investimento

"For centuries, enlightened opinion held for certain and obvious a doctrine which the classical school has repudiated as childish, but which deserves rehabilitation and honours. I mean the doctrine that the rate of interest is not self-adjusting at a level best suited to the social advantage, but certainly tends to rise too high"
M. Keynes - "The General Theory"

A taxa de juros é tema polêmico por excelência. A usura, entendida como a cobrança de juros abusivos sobre o dinheiro emprestado, sempre foi malvista. Condenada em todas as culturas e por todas as religiões. Com o inexorável avanço do capitalismo e da economia de mercado, os juros perderam a conotação moral, ou mais precisamente de imoralidade, que teve no passado. A teoria econômica, ao sustentar que a taxa de juros é apenas mais um preço determinado por forças competitivas e impessoais, transformou a condenação dos juros em uma velha superstição, cuja origem estaria na ignorância a respeito do funcionamento dos mercados.

Na "Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda", o livro seminal da macroeconomia, John M. Keynes sustenta que a longa tradição de condenação dos juros altos merece ser reabilitada. Sempre capaz de ver além das ideias estabelecidas, Keynes deixa claro que a taxa financeira de juros não é determinada por forças impessoais no mercado.

Como o seu objetivo primordial na "Teoria Geral" era explicar como a economia poderia ficar presa num equilíbrio com alto desemprego, ainda que a taxa de juros estivesse muito baixa, Keynes não desenvolve o seu raciocínio sobre o mal provocado das altas taxas de juros. Perfeitamente ciente de que já estava comprando muitas brigas, preferiu não abrir mais frentes de controvérsias. Nos capítulos finais, Keynes sugere que a incapacidade da teoria econômica de compreender a milenar resistência aos juros altos estaria associada à confusão entre os diferentes conceitos de taxa de juros. Concordo e acredito que a confusão continue a prevalecer. Vejamos por quê.

Um nome, diferentes conceitos
Sob a denominação comum de "a taxa de juros", existem inúmeros conceitos. A taxa de juros nominal, a taxa de juros real, a taxa de retorno do capital e a taxa natural de juros são conceitos distintos, todos igualmente referidos como "a taxa de juros" em diferentes contextos. É fundamental entender a diferença entre eles para procurar dissipar a confusão em torno da questão dos juros.
O primeiro conceito é simplesmente o da taxa financeira paga sobre um empréstimo, ou seja, a relação entre as unidades monetárias tomadas emprestadas e as unidades monetárias que deverão ser pagas ao final do empréstimo. Ao tomar emprestado 100 unidades monetárias e prometer pagar 110 da mesma unidade monetária ao fim de um ano, tomou-se emprestado a uma taxa nominal de juros de 10% ao ano. O segundo conceito é o da taxa real de juros, que é a taxa nominal descontada a variação do nível de preços no período. É a taxa de juros em termos de poder aquisitivo do empréstimo, ou seja, a taxa nominal de juros deflacionada pela variação do nível de preços no período.

Esses dois primeiros conceitos são relativamente simples e hoje bem compreendidos por qualquer pessoa minimamente familiarizada com operações financeiras. Já o terceiro conceito, a taxa própria de retorno do capital ("the own rate of interest of capital"), é um conceito abstrato definido como o rendimento real do capital investido. Para aumentar a confusão, é chamado de "a eficiência marginal do capital por Keynes" e de "a taxa de retorno do capital sobre o custo por Irving Fisher". Para simplificar, usemos a denominação utilizada por Keynes, Eficiência Marginal do Capital (EMK).

Embora seja expressa como um retorno percentual num determinado período de tempo, a EMK não é uma taxa financeira, mas sim uma medida da produtividade do capital. Para uma unidade de capital investido, quantas unidades de capital se obtém ao fim de um período. Essa taxa própria de retorno do capital não é uma taxa financeira que precise ser deflacionada, pois é a taxa em termos do próprio rendimento real do capital.

Já a taxa natural de juros é um conceito introduzido por Knut Wicksell, o economista sueco que, no fim do século XIX, em seu hoje clássico "Interest and Prices", questiona a Teoria Quantitativa da Moeda (TQM) e introduz uma tese alternativa para a determinação do nível geral de preços. Segundo Wicksell, o nível geral de preços não é função da quantidade de moeda, como sustenta a TQM, mas sim da pressão da demanda sobre a oferta.

Demanda e oferta agregadas seriam funções da taxa de juros, e a taxa de equilíbrio, aquela que manteria estável o nível geral de preços, seria a Taxa Natural de Juros (TNJ). A partir dos anos 90, quando finalmente se reconheceu que os bancos centrais não controlam a moeda, mas sim a taxa básica de juros, a macroeconomia e a política monetária foram reformuladas na direção sugerida por Wicksell. A TNJ de Wicksell não é uma taxa observável, mas uma taxa teórica que neutraliza as pressões sobre o nível de preços.

Os juros na teoria e na prática
Grande parte da verdadeira Babel em torno da questão dos juros advém do fato de que diferentes pessoas, em diferentes circunstâncias, se referem à taxa de juros sem deixar claro, e muitas vezes sem mesmo estar conscientes, do conceito de taxa de juros a que estão se referindo. A teoria econômica é em grande parte culpada por essa confusão, pois no modelo canônico de equilíbrio geral, o modelo de Walras-Arrow-Debreu (WAD), que é a referência lógica da disciplina, todos esses conceitos se confundem numa única taxa de juros.

O modelo de WAD é um modelo microeconômico de competição perfeita, um "idealtipo", em que o comportamento maximizador de agentes individuais garante o equilíbrio permanente de todos os mercados. Nesse sofisticado "idealtipo", corretamente denominado de Modelo de Equilíbrio Geral, o equilíbrio é instantâneo e não existe moeda. Existem mercados contingentes futuros e um bem que serve de referência como unidade de valor, ou um "numéraire" na denominação original de Walras. A taxa de juros - e aqui é correto falar em "a taxa de juros" - é, única e simplesmente, o preço de tempo em termos do "numéraire".

A realidade é bem mais complexa. Mesmo as taxas financeiras de juros variam segundo o risco de crédito e o prazo do contrato. Quanto mais alto o risco e mais longo o prazo, mais alta a taxa de juros. As taxas cobradas do consumidor no varejo refletem o risco de crédito, o prazo e também a competição ou a falta de competição no sistema financeiro. Alta incidência de defaults, prazos mais longos e falta de competição no sistema financeiro levam a taxas de juros mais altas no varejo.

Grande parte da crítica da mídia, do empresariado e dos políticos, em relação às altas taxas de juros, concentra-se, compreensivelmente, nas razões pelas quais as taxas de juros financeiras cobradas do consumidor e do empresariado são significativamente mais altas do que a taxa básica fixada pelo Banco Central. São questões práticas relevantes e merecem atenção, mas como a taxa básica do Banco Central é piso e a referência para toda a estrutura de taxas financeiras de juros na economia, é essa taxa que precisa ser melhor compreendida.

A outra morte de Herzog

Exposição no Itaú Cultural evidencia os planos do jornalista, torturado e morto pela ditadura, em se firmar como cineasta

Por Daniel Salles | Para o Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

SÃO PAULO - O portão de madeira, estreito e alto, exibia a figura de um menino pintada por uma criança. O sobrado na rua Oscar Freire, em São Paulo, havia abrigado uma escola de arte, e Vladimir e Clarice Herzog resolveram conservar a pintura quando se mudaram para o imóvel. Para entrar era preciso cruzar um corredor estreito, coberto por uma trepadeira que chegava a roçar a cabeça dos visitantes mais altos. Ele levava até um pequeno jardim onde o jornalista, sempre que podia, gastava parte do tempo cuidando das plantas.

As crianças dormiam e Clarice, sozinha na sala à noite, tentava aliviar com a leitura de um livro a angústia causada pela falta de notícias do marido, preso na manhã daquele sábado, 25 de outubro de 1975, depois de prestar depoimento no Doi-Codi, na Vila Mariana. Ao ouvir a campainha, ela deixou os óculos sobre o livro aberto ao lado do sofá e correu para o portão. Uma comitiva formada por Rui Nogueira Martins, diretor da TV Cultura - cujo departamento de jornalismo era chefiado por Vladimir, o Vlado -, Armando Figueiredo, assessor de imprensa da Secretaria de Cultura, e alguns outros. Todos de paletó e gravata, aguardavam por Clarice.

O grupo esperava outro ambiente. "Eles sentaram, mas não falavam nada, só repetiram que as coisas se complicaram", registrou ela. "O que mais constrangia era o terrível contraste entre a notícia brutal que eles tinham a dar, de uma morte brutal, e a situação de paz e tranquilidade que encontraram naquela sala", escreveu no livro "Dossiê Herzog: Prisão, Tortura e Morte no Brasil" (Global Editora) o jornalista Fernando Pacheco Jordão, então diretor cultural do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de São Paulo. Os rodeios das visitas bastaram para ela intuir o pior. "Mataram o Vlado", ela gritou de repente.

A tortura e a morte do jornalista, que completam 44 anos em outubro, nas dependências do órgão de inteligência e repressão da ditadura militar, têm papel restrito na "Ocupação Vladimir Herzog", que se espalha pelo segundo subsolo do Itaú Cultural, em São Paulo, a partir de quarta-feira. Na exposição, a 46ª de uma série que já homenageou o arquiteto Paulo Mendes da Rocha e o crítico literário Antonio Candido (1918-2017), entre dezenas de outras personalidades da área cultural, o assassinato e a mirabolante versão do suicídio, por enforcamento, são relembrados somente por meio de documentos oficiais.

O atestado de óbito baseado no laudo assinado pelo legista Harry Shibata, que apontava asfixia por enforcamento, é um deles - o documento foi corrigido em 2012. O mais recente é a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), proferida em julho do ano passado, reconhecendo o assassinato de Vlado, elevado a crime contra a humanidade, e responsabilizando o Estado brasileiro, inclusive pela falta de investigação e punição. A exposição foi organizada em parceria com o Instituto Vladimir Herzog, que defende a memória do jornalista e milita em prol da democracia, dos direitos humanos e da liberdade de expressão.

Observada em conjunto, no entanto, a "Ocupação Vladimir Herzog" tem como objetivo principal desvendar a trajetória dele antes de sua morte, aos 38 anos. "Todo mundo conhece o caso Herzog, mas não a pessoa que ele foi ou os trabalhos que realizou", diz Claudiney Ferreira, gerente do núcleo de audiovisual e literatura do Itaú Cultural e um dos curadores da mostra. Jornalista de formação, ele cursava a faculdade quando o caso veio à tona.

Poesia / Vinicius de Moraes: O dia da criação

I
Hoje é sábado, amanhã é domingo
A vida vem em ondas, como o mar
Os bondes andam em cima dos trilhos
E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na cruz para nos salvar.

Hoje é sábado, amanhã é domingo
Não há nada como o tempo para passar
Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo
Mas por via das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo mal.

Hoje é sábado, amanhã é domingo
Amanhã não gosta de ver ninguém bem
Hoje é que é o dia do presente
O dia é sábado.

Impossível fugir a essa dura realidade
Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios
Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas
Todos os maridos estão funcionando regularmente
Todas as mulheres estão atentas
Porque hoje é sábado.

II

Neste momento há um casamento
Porque hoje é sábado
Hoje há um divórcio e um violamento
Porque hoje é sábado
Há um rico que se mata
Porque hoje é sábado
Há um incesto e uma regata
Porque hoje é sábado
Há um espetáculo de gala
Porque hoje é sábado
Há uma mulher que apanha e cala
Porque hoje é sábado
Há um renovar-se de esperanças
Porque hoje é sábado
Há uma profunda discordância
Porque hoje é sábado
Há um sedutor que tomba morto
Porque hoje é sábado
Há um grande espírito-de-porco
Porque hoje é sábado
Há uma mulher que vira homem
Porque hoje é sábado
Há criançinhas que não comem
Porque hoje é sábado
Há um piquenique de políticos
Porque hoje é sábado
Há um grande acréscimo de sífilis
Porque hoje é sábado
Há um ariano e uma mulata
Porque hoje é sábado
Há uma tensão inusitada
Porque hoje é sábado
Há adolescências seminuas
Porque hoje é sábado
Há um vampiro pelas ruas
Porque hoje é sábado
Há um grande aumento no consumo
Porque hoje é sábado
Há um noivo louco de ciúmes
Porque hoje é sábado
Há um garden-party na cadeia
Porque hoje é sábado
Há uma impassível lua cheia
Porque hoje é sábado
Há damas de todas as classes
Porque hoje é sábado
Umas difíceis, outras fáceis
Porque hoje é sábado
Há um beber e um dar sem conta
Porque hoje é sábado
Há uma infeliz que vai de tonta
Porque hoje é sábado
Há um padre passeando à paisana
Porque hoje é sábado
Há um frenesi de dar banana
Porque hoje é sábado
Há a sensação angustiante
Porque hoje é sábado
De uma mulher dentro de um homem
Porque hoje é sábado
Há uma comemoração fantástica
Porque hoje é sábado
Da primeira cirurgia plástica
Porque hoje é sábado
E dando os trâmites por findos
Porque hoje é sábado
Há a perspectiva do domingo
Porque hoje é sábado

Música / Moacyr Luz: Sonho Estranho