sábado, 8 de agosto de 2020

Luiz Sérgio Henriques - Simão Bacamarte e a política nacional

- Revista Será? (PE)

O balanço do impacto de grandes operações judiciárias, como a Lava Jato, sobre o sistema partidário é, no mínimo, inquietante. Alguns dos seus aspectos mais problemáticos já foram ressaltados e outros mais virão com o tempo, mas é fato que operações inicialmente focadas em questões específicas, ainda que graves, ampliaram-se em demasia, conferiram um veio salvacionista aos principais atores, tomados por uma espécie de complexo de Simão Bacamarte, o qual, como se sabe, pretendia encerrar no manicômio de Itaguaí todos os que, a seu juízo, tinham comportamento desviante. Os resultados não foram lá muito animadores e o Bacamarte terminou encerrando-se na Casa Verde, depois de livrar a multidão de internados.


Não devemos esperar desfecho análogo: nenhum dos personagens da grande confusão brasileira, independentemente de culpas, se encaminhará por vontade própria até o manicômio. Nem entre os aprendizes de Bacamarte nem entre seus pacientes forçados surgirá espontaneamente uma avaliação serena de erros e exageros, parcialidades de julgamento e desvios reais de comportamento, de modo que, ainda no rescaldo daquelas operações, seremos obrigados a retomar pacientemente o ofício de trabalhar as duras vigas de madeira que constituem a política, de acordo com a lição clássica.


Deixemos provisoriamente de lado pequenos e grandes bacamartes; a eles voltaremos outras vezes, com particular ênfase na escolha política desastrada que fizeram na única circunstância em que efetivamente não podiam errar, a saber, na eleição de Jair Messias Bolsonaro e nas decisões judiciais que direta ou indiretamente a favoreceram. E reconheçamos, de cara, que o paciente – o sistema partidário – não estava bem das pernas (e da cabeça) quando sobre ele se abateram as acusações dos procuradores e o martelo dos juízes. Personalismo e fragmentação excessiva eram males que deformavam o funcionamento daquele sistema, para não mencionar o problema crônico – e longe de ser resolvido – das relações entre dinheiro e política, financiadores e campanhas, empresas e administradores públicos, com o atalho para o enriquecimento desonesto.


O personalismo tem múltiplas facetas e não será fácil reduzi-lo a proporções mais razoáveis. Partidos, entre nós, costumam ser empreendimentos individuais, “movimentos” que se estruturam em função de uma determinada candidatura presidencial e muitas vezes com ela desaparecem. Raramente são agrupamentos estáveis, com capacidade de expressar demandas da sociedade, selecionar grupos dirigentes ao longo do tempo, propor uma relação mais ou menos coerente entre valores e política. Nestes trinta anos de vigência da Carta de 1988 perderam-se ocasiões interessantes – não sabemos se para sempre – de um enraizamento mais definido de partidos como o PFL/DEM, que poderia ter sido expressão de uma necessária direita democrática; ou como o PSDB, embrião de uma boa socialdemocracia que, sem no entanto ter implantação sindical, se reduziria crescentemente a uma federação de “notáveis”; uma federação, de resto, facilmente desafiada e batida, à esquerda, pelo PT, cuja implantação mais forte acabaria por associar as características mais problemáticas do partido “orgânico” e da liderança carismática, tornando-se assim um partido poucas vezes capaz de pensar além de si mesmo e das suas conveniências mais imediatas.


A fragmentação, de certo modo, não foi um traço inteiramente endógeno do sistema. Natural que, após o regime autoritário, com sua ação arbitrária no sentido de dissolver os três grandes partidos da democracia de 1946 – e, obviamente, manter a proscrição dos partidos comunistas –, soprasse um vento libertário. O exagero aqui consistiu em confundir o direito à livre associação no terreno da sociedade e o direito de acesso às casas legislativas e aos fundos públicos, a ser regido por algum mecanismo mínimo de desempenho eleitoral. A intervenção “exógena” do STF, em 2006, adiou a adoção das cláusulas de barreira, que teriam dado – como começaram a dar já em 2018 – o pontapé inicial para o enxugamento e a racionalização da presença dos partidos na cena parlamentar.


A cada ato legislativo que se proponha regular os mecanismos partidários e eleitorais cabe fazer, a nosso juízo, um conjunto de perguntas intimamente relacionadas: tal ato contribui, ou não, para atenuar o grau de personalismo dos partidos e da política? Ainda que a médio prazo ele favorece a ação de forças centrípetas, impedindo que atores individuais e coletivos, semelhantes entre si, exerçam furiosamente o narcisismo das pequenas diferenças? Que regras até mesmo corriqueiras, como a da famosa “janela de transferências” às vésperas de cada pleito, podem ser aperfeiçoadas – e por certo endurecidas – para que tantos políticos “não mudem de partido como quem muda de camisa”, segundo o lugar comum que trazemos na ponta da língua? O presente mecanismo de financiamento público das campanhas será o Santo Graal finalmente encontrado ou ainda é preciso imaginar formas complementares, que necessariamente supõem limite, transparência e accountability para não se transformarem em atividades que transcorrem nas sombras?


É preciso reconhecer que estes e outros problemas não foram coerentemente formulados e menos ainda equacionados pelos políticos e partidos que dirigiram a democracia brasileira nos primeiros trinta anos do novo ordenamento constitucional. Ao contrário, foram muitas vezes varridos para debaixo do tapete, e o custo desta omissão paga-se em termos de desprestígio dos parlamentos, dos partidos e da ação política. No vácuo assim criado surgiram os salvadores da pátria – de toga, beca ou farda, tanto faz. Com os resultados calamitosos que sempre ocorrem depois que se desmoraliza a ciência dos bacamartes, a mágica dos ilusionistas e a aura mítica dos liberticidas.

Ricardo Noblat - Queiroz, o operador financeiro da família Bolsonaro

- Blog do Noblat / Veja

O sofrido papel das primeiras-damas

Cada uma ao seu modo, e por motivos diversos, as primeiras-damas padecem tanto ou mais do que seus maridos por conta de encrencas em que eles se meteram e que elas desconheciam.  Isso é especialmente verdade no caso dos presidentes da República eleitos pelo voto direto de 1989 para cá.

O primeiro foi Fernando Collor. Seu tesoureiro de campanha, Paulo César Farias, certa vez disparou uma frase que se tornaria famosa: “Madame está gastando muito”. A madame Rosane Collor não sabia que seus gastos eram pagos pelo tesoureiro com sobras do dinheiro arrecadado para financiar a campanha do marido.

Collor foi derrubado por um pedido de impeachment. Antes de ser, sua última tentativa de manter-se no poder foi a desastrada Operação Uruguai, o falso empréstimo de 3,75 milhões de dólares contraído em Montevideo para justificar as elevadas despesas do casal e tirar da história PC Farias e as sobras de campanha.

Itamar Franco, que sucedeu Collor, foi um presidente solteiro. Ruth Cardoso soube pelo marido, Fernando Henrique, que ele tivera um caso amoroso com a jornalista Miriam Dutra e que era pai de um filho dela. O caso houve. Muitos anos depois, ficou provado que o filho, reconhecido pelo presidente, não era dele.

Marisa Letícia Lula da Silva morreu de um aneurisma cerebral. Mas nos meses que antecederam sua morte sofria com a situação enfrentada pelos filhos com o avanço das investigações da Lava Jato sobre o marido. Cobrava que Lula não confrontasse a Justiça, adotando uma postura mais moderada. Não foi ouvida.

Dilma não tinha marido para chamar de “primeiro damo”. Marcela Temer, uma primeira-dama do lar, dedicada à criação do filho, foi surpreendida pela revelação de que o marido fora gravado dentro do palácio onde moravam, e depois duas vezes denunciado por corrupção. Livrou-se das denúncias, mas não de ser preso depois.

Como deverá sentir-se a primeira-dama Michelle Bolsonaro com a descoberta feita pelo Ministério Público do Rio de que sua conta bancária era abastecida com dinheiro depositado por Fabrício Queiroz, à época chefe de gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro? Talvez nem soubesse que usavam sua conta.

Foram 27 depósitos entre 2011 e 2016, num total de 89 mil reais. Em 2018, um relatório do Conselho de Atividades Financeiras apontou depósitos no valor de 24 mil. Nada transpirou, para a sorte do marido candidato. Quando transpirou, ele acabara de ser eleito. Seria pagamento de um empréstimo que fizera a Queiroz.

Meses depois, Bolsonaro corrigiu-se. Disse que emprestara a Queiroz 40 mil. Agora, ainda não disse nada sobre os 89 mil reais, nem sobre o fato de que uma parcela desse dinheiro foi depositada na conta de Michelle por Márcia, mulher de Queiroz. Os dois estão em prisão domiciliar. Deverão ser ouvidos a respeito.

Depois dessa, é difícil que se sustente a desculpa do empréstimo. Pela conta bancária de Queiroz, no período entre 2007 e 2018 quando ele foi chefe de gabinete de Flávio, passaram mais de 6 milhões de reais – 1,6 milhão de salários pagos a ele, 2 milhões de depósitos de servidores do gabinete, 900 mil sem origem.

Por que um homem com tais rendimentos precisaria tomar um empréstimo de 40 mil reais a Bolsonaro? Por que servidores do gabinete depositaram na conta de Queiroz 2 milhões de reais? Só de despesas pessoais de Flávio e de sua mulher, está provado que Queiroz pagou 286 mil reais, e sempre em dinheiro vivo.

Suspeita o Ministério Público do Rio que Queiroz foi mais do que um financiador de Flávio, pagando despesas da família inteira. Como Paulo César Farias fez com parte dos Collor. Bolsonaro, o pai, conheceu Queiroz quando ainda servia ao Exército. Ficaram amigos. Foi ele que pôs Queiroz para cuidar de Flávio.

Ao longo de quase três décadas, segundo levantamento do jornal O GLOBO, a família Bolsonaro teve 22 dos seus integrantes empregados nos quatro gabinetes de Jair, Flávio, Carlos, o vereador, e Eduardo, deputado federal. Nos de Jair, Flávio e Carlos, Queiroz empregou sete dos seus parentes desde 2006.

No slogan de sua campanha, que virou também uma marca do seu governo, o presidente Bolsonaro fala em Brasil acima de tudo, e Deus acima de todos. Está na hora de atualizá-lo para destacar também a importância da família.

 Volta a assombrar o fantasma da delação dos Queiroz

De casa para a prisão

Numa deferência especial do ministro João Otávio de Noronha, presidente do Superior Tribunal de Justiça e candidato a uma vaga de ministro do Supremo Tribunal Federal, Fabrício Queiroz foi tirado de detrás das grades e posto em prisão domiciliar com tornozeleira eletrônica. A mulher de Queiroz, Márcia, que fugira, reapareceu, aconselhada por Noronha a ir cuidar do marido.

Com isso, deu-se por exorcizado o demônio da delação da família Queiroz que assombrava a família Bolsonaro. Delação não só do casal, mas possivelmente de uma de suas duas filhas que foram também empregadas nos gabinetes de Flávio Bolsonaro, hoje senador, e do pai, hoje presidente da República. Ocorre que a deferência de Noronha pode estar com seus dias contados.

O relator do pedido de habeas corpus impetrado pela defesa de Queiroz é o ministro Felix Fischer, que estava de férias. Noronha, de plantão, atendeu ao pedido por meio de liminar. Recentemente, Fischer foi internado duas vezes para submeter-se a uma cirurgia, e deu-se como certo que ele demoraria a reassumir seu posto. Noronha chegou a sugerir que talvez jamais reassumisse.

Pois Fischer recuperou-se e está de volta. É um dos ministros mais rigorosos, ee não o mais rigoroso do tribunal. À espera dele está um parecer do subprocurador-geral da República Roberto Luís Oppermann Thomé, que qualifica Queiroz de “operador financeiro” do gabinete de Flávio e recomenda a sua volta à cadeia. Se isso acontecer, Márcia também irá para a cadeia.

E o demônio da delação ressurgirá.

Julianna Sofia – Auxílio à reeleição

- Folha de S. Paulo

Guedes vai ter de arrumar mais um dinheirinho, disse um influente senador

O candidato à reeleição Jair Bolsonaro liberou nos bastidores sua equipe econômica a estudar a extensão até dezembro do auxílio emergencial, previsto para terminar neste mês. O presidente da República, todavia, declara publicamente que é preciso ir devagar com o andor: "não dá pra continuar muito" devido ao alto custo. "Por mês, são R$ 50 bilhões. Vão arrebentar com a economia do Brasil."

Os ganhos de popularidade obtidos por Bolsonaro com o auxílio emergencial de R$ 600, pago até agora a 65 milhões de brasileiros, alimentam o movimento dúbio —dubiedade essa que se tornou estratagema do bolsonarismo desde que o capitão reformado se aboletou no Palácio do Planalto.

A prorrogação do auxílio é inevitável, porque seus dividendos políticos fizeram do governo refém. São favas contadas, talvez em cifras menores, como os R$ 200 ou R$ 300 que Paulo Guedes (Economia) defende e que exigiriam a aprovação do Congresso. Com o libera geral das regras fiscais neste ano em razão da pandemia, não se pode descartar até mesmo a extensão do benefício no valor atual, jogando o gasto de R$ 254 bilhões para R$ 450 bilhões.

O gran finale planejado para o auxílio emergencial, o Renda Brasil, enfrenta dificuldades para ser formatado. O novo Bolsa Família pode beneficiar 26 milhões de pessoas e deve se tornar peça estratégica no marketing da campanha à reeleição, mas encontra no arrocho orçamentário dos próximos anos um entrave. Para bancá-lo, o Planalto precisará buscar receitas (nova CPMF?) e cortar despesas (abono salarial e seguro defeso?) a fim de cumprir os parâmetros fiscais (ou alterar os parâmetros?).

Com o avanço da corrida eleitoral de 2022, a pressão por gastos que opõe a ala econômica a ministros políticos e militares tende a crescer, acirrando a disputa por recursos para programas sociais e obras.

Nas palavras de um influente senador, "Guedes vai ter que dar um jeito de arrumar mais um dinheirinho". Pitaco despretensioso de Flávio, o 01.

Hélio Schwartsman - Dá para voltar às aulas?

- Folha de S. Paulo

Há uma lista telefônica de argumentos para antecipar a retomada, mas a pergunta é se é seguro ou não

Reabrir ou não as escolas é a dúvida hamletiana que agora assombra pais, educadores, sanitaristas e autoridades. João Doria, como o príncipe dinamarquês, hesita e adiou para outubro o reinício das aulas presenciais no estado de São Paulo.

Há uma lista telefônica de bons argumentos para antecipar tanto quanto possível a retomada, mas nem creio que seja necessário repassá-la. São poucos os que não estão convencidos da importância da volta às escolas. A pergunta que todos se fazem é se é seguro ou não retornar.

Em vários países europeus, as aulas presenciais foram retomadas sem reflexos significativos na circulação do vírus. É uma prova de princípio de que reabrir é possível. Mas, como sempre acontece em ciência, os erros são mais informativos do que os acertos. E um caso bem documentado de erro com o qual podemos aprender é o de Israel.

O país era visto como uma história de sucesso. Passara bem por uma primeira onda do vírus e planejava voltar às atividades com cuidado. A recomendação era para que as escolas retomassem as aulas, primeiro só para os mais novos, depois para os mais velhos, com turmas reduzidas e medidas de higiene e distanciamento.

O problema é que o aparente sucesso na contenção da epidemia subiu à cabeça dos israelenses, que, por “hýbris” (soberba), cometeram erros em série. A retomada gradual logo se tornou reabertura total, impossibilitando o distanciamento entre as carteiras. Uma onda de calor fez com que as autoridades permitissem que os alunos deixassem de usar máscaras e que as janelas fossem fechadas para o ar condicionado funcionar.

Em pouco tempo, centenas de escolas registraram surtos da doença, que se espalhou para as comunidades. Israel vive hoje uma segunda onda de Covid-19.

ão mal no controle da pandemia é que tendem a zero as chances de cometermos erros motivados pela “hýbris”.

Demétrio Magnoli* - O vírus governa o Brasil

- Folha de S. Paulo

Negacionismo impediu a coordenação das iniciativas de controle da pandemia

Há consenso, fora malucos incorrigíveis, de que o Brasil fracassou diante do desafio da Covid-19. Mas deve-se qualificar o fracasso: a régua para medi-lo não é o número de óbitos.

A taxa de óbitos no país (48 por 100 mil) é, no momento, menor que as registradas na Bélgica (86), Reino Unido (70), Peru (64), Espanha (61), Itália (58) ou Suécia (57). Na faixa brasileira estão o Chile (53), os EUA (49) e o México (40). Na Europa, teme-se uma retomada de contágios no outono e inverno. Não há prova de que ficaremos fora da curva das nações mais atingidas.

Fracasso de todas elas? Difícil afirmar, pois são fortes os indícios de que o resultado, em óbitos, é largamente determinado pelo ponto de partida.

Hoje sabemos que o vírus espalhou-se, silenciosamente, nos primeiros dois meses do ano. Por razões aleatórias, algumas áreas de elevada urbanização, na Espanha, na Itália, na França, na Bélgica, na Suécia e nos EUA, sofreram extensivos contágios na etapa oculta da pandemia. No Brasil, isso parece ter ocorrido com São Paulo, Rio, Fortaleza, Recife e Manaus. Depois desse impacto, com lockdown (Itália, Espanha, França) ou sem ele (Suécia), o gráfico de óbitos já estava traçado, ao menos em linhas gerais.

O Brasil, ao contrário da Itália ou do Equador, não fracassou no atendimento aos doentes. À exceção de alguns lugares (Manaus, por exemplo), os hospitais regulares e os de campanha deram conta da pressão. O SUS, com todas as suas conhecidas carências, salvou-nos da tragédia de contar mortes evitáveis. É uma lição prática sobre saúde pública que não temos o direito de esquecer.

Fracassamos por não fazer um lockdown geral? O diagnóstico, tão comum entre acadêmicos e na esquerda, ignora os limites impostos pela falta de um mínimo consenso político nacional e pelas profundas desigualdades sociais do país.

O Brasil elegeu um presidente negacionista —e isso tem consequências. Um lockdown no estilo italiano exigiria a ocupação das periferias e favelas por forças policiais sem compromissos com direitos (e vidas) dos cidadãos. O acadêmico que clama pelo lockdown evidencia desconhecer o país. O líder político de esquerda que faz o mesmo está investindo no impossível para colher o possível, na forma de votos.

O fracasso deve ser creditado, quase exclusivamente, ao governo federal. O negacionismo persistente, inabalável, impediu a coordenação das iniciativas de controle. A Constituição define a saúde como competência conjunta da União, dos estados e municípios.

Diante da criminosa negligência de Bolsonaro, o STF produziu interpretação criativa do texto constitucional, vetando a interferência federal nas decisões sanitárias estaduais. Daí, decorreram os planos incongruentes das quarentenas e flexibilizações em curso.

Os EUA de Trump, outro negacionista, vivem cenário similar. Contudo, a culpa não é do sistema federativo. Na Alemanha federal, um consenso político propiciou a cooperação entre o governo central e os estados que, mesmo pontilhada por atritos, conduziu a um planejamento eficaz. Pagamos o preço de uma opção eleitoral, com juros e multa.

No pacote do fracasso está o atraso na testagem em massa. Bombardeado pelas falanges bolsonaristas, o Ministério da Saúde ficou acéfalo no auge da crise, com a demissão de Mandetta, e converteu-se em acampamento de militares que, de costas para a epidemiologia, batem continência a um presidente inepto, irresponsável e amoral. Cinco meses depois do início das quarentenas, não temos um mapa dos caminhos de contágio. O governo federal escolheu, tacitamente, dirigir a nação para a longa tempestade da imunidade coletiva forçada.

Quando desceremos a curva? A resposta não depende de nós, mas dos anticorpos e células T. O vírus governa o Brasil.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

João Gabriel de Lima - Líderes e líderes no país das 100 mil mortes

- O Estado de S.Paulo 

 No Brasil, atuação da sociedade civil serviu de contraponto à ausência do Executivo federal 

 Parte das ruas do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, não tinha nome nem aparecia no mapa da cidade. A situação mudou graças à organização comunitária Redes da Maré. Seus líderes criaram um projeto de cartografia, a partir de imagens de satélite, com a mesma metodologia do IBGE. Cerca de 900 ruas foram catalogadas e, numa parceria com o poder público, ganharão nome e CEP. “Nós queremos gerar um conhecimento que possa ser transformado em políticas públicas”, diz Eliana Silva, diretora do Redes da Maré. Doutora em Serviço Social, ela usa métodos acadêmicos para melhorar a vida na comunidade onde morou por 25 anos. 

 Os bancos de dados do Redes da Maré não serviram apenas para dar um CEP aos moradores – medida essencial de cidadania. Eles foram importantíssimos no combate ao coronavírus. Os dados ajudaram a identificar 6 mil famílias altamente vulneráveis, em uma comunidade de 140 mil habitantes, e encaminhar a elas cestas básicas. Informações obtidas por WhatsApp mapearam os lugares com maior incidência de casos do coronavírus, onde foram instalados centros de isolamento com testagem – parceria com a Fundação Oswaldo Cruz e com o Todos Pela Saúde. Em outros pontos, suprimentos de água e sabonetes ajudaram a população em situação de rua a cumprir a tarefa básica de lavar as mãos.

 Combater o coronavírus na América Latina é bem mais complicado que na Europa. Por aqui, as questões médicas se somam a carências sociais históricas, como as que se veem na Maré. 

 A epidemiologista Silvia Martins, professora da Universidade Columbia, em Nova York, fez estudos comparativos sobre diferentes países da região. A pandemia explodiu em lugares que, aparentemente, fizeram tudo certo, caso do Peru. Lá houve testagem e dinheiro para auxílios emergenciais. Não foi possível evitar, no entanto, que os peruanos mais vulneráveis, que não têm geladeira em casa, saíssem todo dia para comprar comida no mercado. Nem como corrigir, do dia para a noite, deficiências históricas da saúde pública. “Com a pandemia, muitos peruanos das cidades grandes voltaram para suas famílias no interior, onde há menos hospitais e de pior qualidade”, diz Silvia Martins. 

 Segundo ela, um padrão se repete em várias nações que fracassaram no combate ao coronavírus: faltou um envolvimento forte dos líderes federais, além de uma estratégia unificada de combate à pandemia. No Brasil, tal negligência, potencializada pelas carências já existentes, nos conduziu à tragédia das 100 mil mortes. 

Do ponto de vista da ciência política, a omissão de líderes em tempo de calamidade constitui um fenômeno tão desastroso quanto intrigante. Um estudo publicado no mês passado aponta tal anomalia nas administrações de Donald Trump e Jair Bolsonaro, batizando-a de “executive underreach”. No Brasil, a atuação da sociedade civil – e, segundo os autores do paper, também do Legislativo e Judiciário – serviu de contraponto à ausência do Executivo federal (o estudo está na versão digital da coluna, junto com minipodcasts de Eliana Silva e Silvia Martins, além de um link para doar cestas básicas ao Redes da Maré). 

 Protagonistas da sociedade civil, como Eliana Silva, mostraram, no nível de suas comunidades, o que se espera de um líder: conhecimento da vida real, respeito à ciência e comprometimento. Sem eles, a estatística das 100 mil mortes seria ainda mais macabra.

Adriana Fernandes – Cadê a bússola?

- O Estado de S.Paulo 

 Teto de gastos está caindo de maduro com todos os movimentos que têm ocorrido em Brasília 

 Após quase cinco meses dos efeitos da pandemia no Brasil, já era tempo de o governo ter apresentado um mapa de navegação para os gastos na travessia deste segundo semestre. Isso inclui um plano efetivo de transição do auxílio emergencial de R$ 600. 

Um planejamento mínimo do que pretende fazer até o fim do ano, inclusive para os que estão recebendo os diversos auxílios do governo (pessoas físicas, empresas e governos regionais), quando está previsto o fim do estado de calamidade decretado por conta da pandemia. 

Quanto se espera gastar? Tirar o País do escuro e dizer de fato o que quer fazer com o teto de gastos e as prioridades para os próximos meses. Aumentar a previsibilidade. Não teria sido melhor traçar uma estratégia clara e objetiva até o fim do ano, como recomendaram os especialistas? 

Mais do que nunca é preciso insistir na mesma tecla (o assunto já foi abordado na coluna da semana passada) porque só piora empurrar a discussão para debaixo dos panos. Muito menos por meio de balão de ensaio, com consultas mandrakes no TCU e tentativas atabalhoadas lançadas por aliados no Congresso, inclusive com propostas de prorrogação da calamidade para 2021 – o que garantiria a retirada das travas fiscais também no ano que vem. 

Como se viu nas últimas semanas, o Tesouro já sofre com o encurtamento da dívida. Investidores estão no escuro porque não querem comprar os títulos públicos, que financiam a dívida e colocam dinheiro no caixa, sem saber qual é o compromisso do governo para a recuperação econômica no curto e médio prazos. O problema de liquidez é preocupante. 

É tema técnico, árido, quase burocrático, mas de enorme importância porque afeta a maneira pela qual o governo pretende encaminhar o Orçamento de 2021. Perdoem alguns, mas o assunto tem efeito na vida da população. 

A encruzilhada está logo ali, no fim de agosto, quando o governo terá de enviar o projeto de Orçamento de 2021. Por isso, o tema “aumento de gastos” ganhou nos últimos dias a dimensão que teve. Viralizou em Brasília. 

É pressão por todos os lados. Desta vez, nem os militares que costumam tachar tudo de secreto escondem mais o jogo: queremos e cobramos mais dinheiro para as Forças Armadas. Ponto pacífico. Vão ganhar. 

Como ainda não conseguiu viabilizar o Renda Brasil, o seu programa social e também uma plataforma eleitoral rumo a 2022, o presidente dá corda para os seus auxiliares e líderes lançarem os seus balões de ensaio. 

O teto é um empecilho para os planos e o TCU avisou esta semana que não vai aceitar manobras no orçamento de guerra aprovado na pandemia para enfrentar a covid-19 para driblar o teto de gastos. O recado foi dado, durante sessão virtual da Corte de Contas, pelo ministro Bruno Dantas, que é responsável pelas contas do Ministério da Economia. Foi o mais importante alerta até agora. 

Uma saída que passou a ser discutida é a aprovação de uma espécie de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para definir o caminho do orçamento de guerra em 2021. 

Bolsonaro quer fazer a mudança do teto via mão do Congresso. Se der errado o plano de estimular a economia com a flexibilização fiscal, a responsabilidade será dos parlamentares. A prática comum até aqui do presidente tem sido a de transferir responsabilidades. Essa não será a primeira vez. 

O que se vê até agora é que o teto de gastos está caindo de maduro com todos os movimentos que têm ocorrido em Brasília. 

 Até os mais fiscalistas dentro do próprio governo concordam nesse ponto e vão além: a certeza de que será preciso aumento de impostos. Esse caminho já estaria “contratado” na reforma tributária, mesmo com o discurso do governo e do Congresso de que não haverá aumento da carga tributária. 

 Muitos vão dizer que o trabalho tem sido intenso na pandemia. É verdade. Mas falta organização das prioridades e sobra desgaste com coisas de menor importância. 

A essa altura do avanço da pandemia, após o presidente recomendar à população “tocar a vida para buscar uma maneira de se safar desse problema”, mesmo diante da perspectiva de que o Brasil atinja a trágica marca de 100 mil mortes pelo coronavírus, fica mais difícil convencer que precisará de regras fiscais mais brandas para gastar mais em nome da pandemia que ele mesmo nega todo o tempo.

Merval Pereira - "Um dinheirinho"

- O Globo

Míriam Leitão - De longe, Cintra vê uma CPMF

- O Globo

Longe do governo há quase um ano, o ex-secretário da Receita Federal Marcos Cintra reconhece a sua proposta de reforma tributária nas declarações do ministro Paulo Guedes, quando ele fala sobre a criação de um imposto digital. Cintra diz que pela arrecadação esperada, a base de tributação não pode ser apenas as grandes empresas de tecnologia, mas todas as transações financeiras. Ou seja, algo semelhante a uma CPMF. Ele acha que o governo tem errado ao não expor o projeto na íntegra, porque isso tem gerado ruído e aumento de resistência à reforma. E afirma que o presidente Jair Bolsonaro foi o primeiro a interditar o debate sobre o novo tributo.

Em uma longa conversa com a coluna, o economista Marcos Cintra falou sobre o que ele define como imposto de pagamentos e as vantagens que vê nesse tipo de tributo. Ele acredita que esse é o único caminho para destravar a reforma tributária e diz que é exatamente isso que o governo pretende apresentar na quarta fase do projeto, pelo que tem entendido das declarações do ministro da Economia, Paulo Guedes.

— Com muita sinceridade, tudo indica que é o mesmo projeto que estava pronto há um ano atrás. Foi apenas recalibrado. O próprio ministro falou isso na Comissão. A alíquota de 0,2% de cada lado, para gerar R$ 60 bilhões, tem que ter a base mais ampla possível. Então seria o que estava se discutindo lá atrás e que gerou a interdição do debate, primeiramente pelo presidente da República, o que levou à minha exoneração, e depois pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que disse que não o colocaria em pauta — explicou.

Ontem, em artigo no GLOBO, o economista Rogério Werneck, da PUC-Rio, mostrou que a arrecadação da CPMF, em 2007, foi de R$ 36,5 bilhões. Pela alíquota cobrada na época, de 0,38%, a base de incidência do imposto teria que ser R$ 9,6 trilhões, mais de três vezes o PIB daquele ano. Isso comprovaria o forte efeito cumulativo do tributo. “A mágica decorria da incidência em cascata da CPMF que dava lugar a uma base fiscal fictícia”, escreveu Werneck. Marcos Cintra entende que essa incidência em cascata é um problema menor diante da alíquota elevada que uma contribuição como o IVA teria sobre o setor de serviços.

— Eu prefiro um imposto cumulativo de alíquota de 1% do que um imposto de valor agregado com alíquota de 12%. O fatiamento do projeto foi um grande erro do governo, porque impediu as pessoas de verem o conjunto e os benefícios de um imposto de transações — defendeu.

O ex-secretário concorda com quem afirma que a proposta do governo é diferente do que tem sido discutido na Europa. Por lá, apenas a Hungria tem um imposto nos moldes da CPMF, segundo Cintra. O que se discute na França e na Inglaterra é uma forma de taxar as grandes empresas de tecnologia — em um imposto muito parecido com a nossa Cofins — mas ele avalia que isso teria um potencial de arrecadação baixo no Brasil. Por esse caminho, não seria possível desonerar a folha de pagamentos e compensar o setor de serviços pelo aumento de carga de um Imposto de Valor Agregado (IVA).

— Sem compensar os setores de serviços e agropecuário não haverá reforma tributária, porque eles terão um aumento grande de carga e vão inviabilizar a tramitação. E um imposto apenas sobre as grandes empresas de tecnologia não arrecada o suficiente para desonerar a folha.

Na Comissão Mista do Congresso, na última quarta-feira, Paulo Guedes falou que comparar o imposto digital a uma CPMF é maldade ou ignorância. Cintra diz que é preciso que o governo venha a público e apresente a proposta:

— Fica-se apenas com as críticas e o preconceito que se tem contra esse imposto. O governo deixa alimentar esse tipo de inquietude, sem esclarecer como funciona o tributo, qual é a base, quais são as regras.

O economista diz que deixou o governo sem mágoas, porque não via sentido em participar de uma reforma sem que fosse para tentar um imposto de pagamentos — que é seu objeto de estudo de toda a vida. Agora, de longe, vê a mesma proposta ser retomada, mas sem que o governo tenha coragem de a assumir publicamente.

Os argumentos dos que são contra a CPMF me convenceram. Mas aqui estão os de Cintra, que a defende. Enquanto o ministro não apresenta seu projeto, o país perde tempo discutindo sobre hipóteses.

Daniel Aarão Reis - Um filme sem mocinhos

- O Globo

Aras é procurador particular de Bolsonaro

 ‘Não me venha satanás pregando quaresma.’ A reprimenda não foi apresentada por nenhum pastor a alguma ovelha desgarrada, fez parte da fala de Augusto Aras, procurador-geral da República, em reunião do Conselho Superior do Ministério Público Federal, realizada em 31 de julho passado. Sua Excelência denunciou manobras ocultas sob “covarde anonimato”, aparelhamento da instituição por lideranças anarcossindicalistas, fake news e mentiras contra si mesmo e sua família, divulgadas por uma imprensa que “baba”. Numa curva surpreendente de sua catilinária, permitiu-se invocar verso doce de Mario Quintana: “Eles passarão (eles quem?), eu (ele mesmo) passarinho”. E terminou proclamando sólidos princípios: república, democracia, legalidade e moralidade. Feito o que, encerrou a fala e, no embalo, também a reunião, sem dar voz ao contraditório, esta augusta tradição jurídica.

A reunião foi mais um episódio da contenda que opõe Aras à Operação Lava-Jato, coordenada pelo procurador Deltan Dallagnol e cujo mentor, até 2018, era o Juiz Sergio Moro. Aras, como se disse, é procurador-geral da República, mas é também procurador particular de Jair Bolsonaro, que o nomeou para o cargo e acena com uma possível indicação de Sua Excelência para ministro do Supremo Tribunal Federal.

E o que isso tem a ver com a Operação Lava-Jato? Bolsonaro não se elegeu, em grande parte, graças ao trabalho da Lava-Jato, que demoliu o sistema político e suas lideranças, abrindo portas para a candidatura do ex-capitão do Exército, figurado como outsider? Não foi graças a isso que Moro se tornou ministro da Justiça? Tudo isso é verdade, ou melhor, foi, pois agora virou passado. No presente, Moro, demitido do cargo, tornou-se acusador do presidente e, no futuro próximo, aparece como candidato alternativo a Bolsonaro.

Tornou-se, assim, imperativo para o presidente enfraquecer Moro, cuja imagem se desgastou com as revelações da Vaza-Jato. Por elas se soube o que muitos já desconfiavam: Moro-Dallagnol não agiam como procurador e juiz, porém como justiceiros, coligados, compartilhando ações, avaliações e investigações. Aras-Bolsonaro querem agora aprofundar o desgaste, levá-lo ao grau da destruição. E é por isso que os dois querem pôr a mão nos acervos e arquivos da Lava-Jato. Suspeitam encontrar aí malfeitos e ilegalidades apenas entrevistos, suspeitados, todavia não comprovados até agora.

Os procuradores da Lava-Jato protestaram. Não querem por nada deste mundo compartilhar seus arquivos. E invocam os mesmos princípios de Aras: república, democracia, legalidade e moralidade. O caso subiu ao STF, pois, neste país, qualquer briga de botequim acaba na mais alta Corte. A velocidade do julgamento, é claro, depende do botequim e dos envolvidos na briga. Como os deuses do Olimpo estavam de férias, Dias Toffoli, o presidente, decidiu a favor de Aras, que, numa conversa com advogados, cobriu a Lava-Jato de críticas, sendo acusado pelos adversários de ter desconstruído a imagem do MP. A querela conheceu nova reviravolta, pois, voltando de merecidas férias, o ministro Edson Fachin, relator do caso, decidiu pelos procuradores e anulou a decisão de Toffoli.

Essa novela, contudo, está longe do fim. De parte a parte, os princípios invocados são os mais altos, embora sejam os mais baixos os golpes trocados por cima e por baixo da mesa e da cintura. Não há dúvida de que todos os envolvidos são “homens honrados”, como disse Marco Antônio no enterro de Júlio César. Mas não é possível deixar de perceber uma sensação de que algo, e algo muito grande, está podre no reino da Dinamarca, para citar mais uma vez o Bardo.

De sorte que brota uma sensação de descrença entre os que acompanham a discórdia. Estaríamos então num mundo sem esperança? Não há condições de torcer por ninguém neste filme sem mocinhos?

A melhor alternativa é torcer para que a briga continue ainda por um bom tempo. Pois é pelos bate-bocas nas alturas que os cidadãos comuns podem conhecer — e decifrar — os segredos da Casa-Grande.

Marcus Pestana* - Novo FUNDEB e o futuro da educação

Desnecessário reafirmar a centralidade da educação de qualidade para a sociedade e a economia de um país, preparando crianças e jovens para o exercício da cidadania e a sua inserção no mercado de trabalho e na vida social e política. Como disse certa vez o ex-senador Cristovam Buarque: “o berço da desigualdade é a desigualdade do berço”. E só a educação pode democratizar as oportunidades. 

O compromisso com a educação povoa todos os discursos políticos, mas muitas vezes não transborda o nível da simples retórica. Para a construção de um grande país temos que arregaçar as mangas e agir para superarmos o terrível passivo que temos na área educacional. 

Em 1996, o Governo FHC criou o FUNDEF, que foi responsável por garantir uma fonte de financiamento estável para o ensino da 1ª. à 8ª. séries e pela universalização do ensino fundamental. Em 2007, o Governo Lula ampliou o financiamento para o ensino infantil e médio com o FUNDEB. A complementação do Governo Federal cresceu de 1% para 10%. Foram avanços, mas os resultados que temos hoje são claramente insuficientes. 

 O Senado Federal votará na próxima semana a Emenda Constitucional No. 26/2020, que já foi aprovada na Câmara relatado pela Deputada Professora Dorinha (DEM/GO), renovando o FUNDEB e promovendo mudanças. 

 O texto altera critérios de distribuição dos recursos; procura aprimorar a equidade social privilegiando municípios mais pobres; pretende aumentar a transparência, a avaliação de resultados e os controles; intenciona estimular o aumento da qualidade e amplia a complementação federal dos atuais 10% para progressivamente alcançar 23% em 2026. A extinção do FUNDEB, que se daria em 2021, seria um desastre e o aumento de investimento é importante, desde que os recursos sejam bem gastos. Mas há problemas. 

 Primeiro, a nossa desconfiança histórica em relação ao caráter perverso e excludente de nosso modelo de desenvolvimento e à qualidade da ação dos gestores locais, nos leva a constitucionalizar tudo e a criar vinculações detalhistas que resultam em um modelo rígido demais para uma realidade em constante mutação. A revisão é prevista para daqui a dez anos. Mudanças constitucionais são difíceis e complexas. Quais serão os impactos no sistema educacional e nas políticas públicas da transição demográfica com cada vez mais idosos e menos crianças, da reforma tributária, da crise fiscal, da revolução da tele-educação? 

Segundo, a exclusão do pagamento de aposentados da educação dentro dos cálculos, conceito correto, mas sem uma transição, colocará muitos estados brasileiros em extrema dificuldade em cumprir o texto constitucional. Vamos criminalizar esses governadores? 

E por último, há estudos e evidências que comprovam não haver associação obrigatória de aumento de recursos com a ampliação da qualidade e a obtenção de resultados. 

Se não introduzirmos mais flexibilidade para os gestores locais e regionais, não superarmos o corporativismo, não estimularmos o empreendedorismo das diretoras de escola, não introduzirmos a remuneração variável premiando desempenho e resultados e não envolvermos profundamente a comunidade e as famílias no processo educacional das crianças e dos jovens, poderemos aplicar preciosos recursos escassos e não promover a tão necessária revolução educacional. Intenção e gesto nem sempre caminham juntos. 

 *Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)

A construção de uma tragédia – Editorial | O Estado de S. Paulo

Os graves desdobramentos da pandemia no Brasil são frutos de uma metódica construção por ações e omissões

Há cerca de um mês e meio, este jornal lamentava nesta página o fato de o País ter atingido a marca de 50 mil mortes por covid-19 (ver editorial Lições de uma tragédia, publicado em 21/6/2020). Pior do que a dor causada por tantas perdas de vidas, histórias e possibilidades, um prejuízo incalculável para o Brasil, era a constatação, já àquela altura, de que um novo marco lúgubre era questão de tempo, só não se sabia quanto. Pois agora passamos das 100 mil mortes ocasionadas pelo novo coronavírus e, mais uma vez, nada assegura que outras 50 mil vidas, ou mais, não serão perdidas em um futuro próximo.

Não se trata de um exercício de futurologia macabra, mas sim da constatação de um fato: os graves desdobramentos da pandemia no Brasil são frutos de uma metódica construção por ações e omissões. Não há como imaginar que melhores resultados hão de vir à frente quando comportamentos que os ensejariam não se mostram presentes, tanto no governo como na sociedade.

Construiu-se essa tragédia porque desde a eclosão da pandemia no País o presidente Jair Bolsonaro adotou um comportamento aviltante diante da maior dor sofrida pelos brasileiros em mais de um século. Por tudo o que se viu e ouviu, infortúnio maior não houve para a Nação do que ter na Presidência um líder tão incapaz e indiferente em momento tão grave da história nacional. Não se sabe se Jair Bolsonaro um dia sofrerá sanções políticas ou jurídicas por seu descaso. Mas ele deveria temer pelo que pode vir a sofrer se acaso experimentar um despertar de consciência adiante.

Construiu-se essa tragédia porque a todo tempo Bolsonaro se mostrou preocupado exclusivamente com seus interesses particulares, em especial seu inoportuno projeto de reeleição, pondo-se a afrontar as orientações das autoridades sanitárias por temer que reveses econômicos ocasionados por medidas protetivas, como o isolamento social, pudessem afetar a sua popularidade. Ao presidente da República cabia coordenar os esforços nacionais para o enfrentamento da crise.

Construiu-se essa tragédia porque o governo não soube aproveitar a janela de cerca de um mês para aprender com a experiência de outros países que já enfrentavam a covid-19 e, assim, preparar o Brasil para o que estava por vir. O Brasil é referência em planejamento e ação diante de emergências epidemiológicas, como H1N1, dengue e zica vírus, mas não se coordenou de pronto todo esse cabedal de conhecimento para preparar o SUS para lidar com a nova emergência.

Construiu-se essa tragédia porque, pelo mau exemplo dado pelo chefe do Executivo, milhões de brasileiros se sentiram seguros para furar a quarentena e provocar aglomerações porque, acreditando nele, não acreditaram na gravidade da doença ou confiaram no curandeirismo presidencial. O que dizer de um presidente que demitiu dois ministros da Saúde em meio à pandemia apenas porque ambos tiveram a ousadia de contrariar suas perigosas posições por prescrições com argumentos baseados na melhor ciência? O que dizer de um presidente que anda com uma caixa de cloroquina a tiracolo – medicamento ineficaz contra a covid-19 – ofertando-a até para uma ema como a panaceia de todos os males? Jair Bolsonaro pôde contar com o apoio do STF e do Congresso Nacional para adotar as melhores medidas de combate à pandemia, mas não o fez por cálculo político, frieza ou birra. Ou tudo isso junto.

Construiu-se essa tragédia porque muitos governadores e prefeitos sucumbiram às pressões de toda sorte para reabrir o comércio e espaços públicos antes que houvesse segurança para isso. Uns por negarem a gravidade da pandemia, como o presidente. Outros pelo receio das implicações eleitorais da manutenção das restrições.

Por fim, construiu-se essa tragédia porque falta a muitos cidadãos um espírito de coletividade, o reconhecimento do passado formador comum e a comunhão de aspirações ao futuro. Com tristeza, viu-se que não raras vezes a fruição imediata de alguns se sobrepôs ao recolhimento exigido para o bem de todos. Aí está o resultado.

O prazo dos juros – Editorial | Folha de S. Paulo

BC indica taxa baixa até 2021, mas pressão por gasto público ameaça expectativa

Mesmo diante dos riscos que cercam a economia brasileira, é notável o espaço para redução dos juros que se abriu nos últimos anos. Agora, a profunda recessão ocasionada pela pandemia reforçou a tendência baixista da inflação, o que permite ao Banco Central testar novas mínimas para a Selic.

Além de reduzir a taxa básica para 2% ao ano, o Comitê de Política Monetária inovou ao indicar que não pretende reverter o movimento antes do final do ano que vem. As razões citadas são as incertezas da conjuntura e os riscos de desaceleração da atividade quando cessarem os auxílios emergenciais.

Com as expectativas de inflação bem abaixo das metas até 2022, o BC viu margem para experimentar esse tipo de comunicação, comum em países em que os juros já estão perto de zero.

Trata-se de uma forma de influenciar as taxas de mercado de prazos mais longos e reforçar a percepção da sociedade de que o custo do dinheiro permanecerá baixo por um período extenso.

Em tese, tal condição deve ser em parte repassada ao custo financeiro das empresas e estimular decisões de consumo e investimento. No Brasil, contudo, as coisas não se dão de maneira tão simples.

Os juros baixos ainda não chegam ao consumidor —e péssimas ideias começam a proliferar, caso da limitação, aprovada pelo Senado, de taxas do cheque especial e do cartão de crédito na pandemia.

Intervenções desse tipo nunca têm o efeito desejado. Contribuem para elevar a insegurança jurídica e limitar a oferta de crédito, o que tende a prejudicar justamente os que mais dele precisam.

O BC também condicionou o compromisso monetário à manutenção do regime fiscal. Em outras palavras, à permanência do teto de gastos inscrito na Constituição. O alerta, explícito, mostra-se oportuno às vésperas do início da discussão do Orçamento de 2021 e diante das pressões pela flexibilização dos limites para as despesas.

Além de objetivos meritórios, como a ampliação da transferência de renda aos mais pobres, há propostas temerárias em circulação, como um grande programa de investimentos públicos.

No governo Jair Bolsonaro e no Congresso se nota a inclinação por relaxar a política de austeridade, na crença renitente de que o aumento dos gastos públicos trará a prosperidade sem os sacrifícios das reformas econômicas.

Insistir nessa receita, deixando de lado a busca por equilíbrio orçamentário e maior produtividade, colocará em risco a solvência do Estado. Cedo ou tarde, teríamos de volta a instabilidade financeira, inflação e juros em alta.

100 mil mortos, uma tragédia do tamanho do Brasil – Editorial | O Globo

Nenhum deles pode ‘tocar a vida’; nem Bolsonaro pode ‘se safar’ da responsabilidade pela vergonha nacional

Em 17 de março, quando o Brasil registrava 290 casos e apenas uma morte pelo novo coronavírus, o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, previu que os números cresceriam exponencialmente até o fim de junho. Em julho estabilizariam e, em agosto, começariam a cair. Num cenário em que os fatos correm mais que o tempo, quase cinco meses depois, não há mais Mandetta, exonerado pelo presidente Jair Bolsonaro em 16 de abril. Agosto está aí — e o panorama é um país ainda perdido em meio ao avanço da Covid-19. Os infectados passam de 2,9 milhões, e os mortos chegam à marca macabra de 100 mil. Para ter ideia da dimensão da catástrofe, o contingente supera a soma de duas conhecidas tragédias nacionais: todos os óbitos no trânsito (40.721) e todos os assassinatos (41.635) em 2019.

Não se chegou a tal número por acaso. Ele foi construído cotidianamente, por erros e omissões de um governo que trocou a Ciência pelo obscurantismo. Claro que governadores e prefeitos — com autonomia dada pelo STF para impor medidas de restrição e liberdade para fazer compras emergenciais (muitas das quais viraram caso de polícia) — também deixaram suas digitais na hecatombe. Mas é inequívoca a responsabilidade do presidente Jair Bolsonaro, a quem cabia, por meio do Ministério da Saúde, coordenar o combate à mais letal pandemia em cem anos.

Bolsonaro começou minimizando a pandemia. Tratou a doença como “gripezinha” e, questionado sobre os mortos, soltou um revoltante “E daí?”. Mais preocupado com seu projeto de reeleição, atacou o isolamento social decretado por governadores e prefeitos — eficaz para impedir o avanço da doença na falta de vacinas ou remédios — e pregou a reabertura imediata das atividades. Alegou que a população não morreria de Covid, mas de fome. Simulou um falso dilema, já que, quanto antes a epidemia estiver controlada, mais rapidamente a economia voltará a girar.

O Ministério da Saúde é o melhor exemplo do pouco caso com a epidemia. Em menos de quatro meses, foram três ministros. Mandetta e seu substituto, Nelson Teich, saíram por discordar de Bolsonaro. O general Eduardo Pazuello permaneceu por concordar, no melhor estilo “missão dada é missão cumprida”. Está há mais de dois meses no cargo como interino, prova do esvaziamento da pasta em plena pandemia. Uma de suas primeiras decisões foi liberar a cloroquina para qualquer fase do tratamento, ignorando evidências científicas de que ela não tem eficácia contra o coronavírus e pode causar sérios efeitos colaterais. O país produziu comprimidos de cloroquina aos milhões, sabe-se lá para quê. Estima-se que haja estoque para abastecer por 38 anos o mercado nacional.

A cloroquina virou obsessão de Bolsonaro, transformado em garoto-propaganda do medicamento. Ele próprio, quando contraiu o vírus, apareceu numa transmissão ao vivo com uma caixa em mãos. Numa cena bizarra que decerto ilustrará os futuros livros de história, foi flagrado exibindo uma caixa de cloroquina às emas do Palácio da Alvorada. Até elas pareciam ter consciência do ridículo. A insistência na cloroquina não foi a única ofensa à Ciência. Bolsonaro se especializou em quebrar os protocolos sanitários mais básicos para a prevenção da Covid-19. Em lugares públicos, cumprimentou transeuntes, tossiu, falou alto, desprezou o uso da máscara — chegou a ser obrigado pela Justiça a usá-la — e frequentou aglomerações.

O que o governo deveria fazer não fez: estabelecer protocolos nacionais, lançar uma campanha para incentivar o distanciamento, testar a população para identificar os infectados, isolá-los e rastrear seus contatos, seguindo exemplos de países que controlaram a epidemia, como Coreia do Sul, Austrália ou Alemanha. O Brasil testa pouquíssimo, caminha às cegas no combate à doença. Escolhe sempre o caminho errado. Em meio ao desgoverno, a epidemia avança e escancara as desigualdades gritantes do país. Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostrou que, na cidade do Rio de Janeiro, dos 6.735 óbitos até 13 de junho, 79,6% ocorreram nos bairros de menor Índice de Desenvolvimento Social (IDS). Nas áreas mais pobres, a taxa de letalidade chega a ser o dobro da de regiões ricas (20% contra 10%). Na capital paulista, não é diferente. Os 25 distritos com maior número de mortes por Covid-19 estão na periferia. Juntos, concentram 42,1% dos óbitos.

Números superlativos não devem servir para banalizar a tragédia. Por trás deles, há 100 mil histórias de brasileiros que perderam a vida para o coronavírus. Tal contingente ainda cresce ao ritmo de mais de mil mortes por dia, quase uma por minuto. Produzimos sepultamentos em escala industrial, que nos humilham perante o mundo. O Brasil de Bolsonaro fica atrás apenas dos Estados Unidos de Donald Trump no campeonato macabro da Covid-19.

Em vez de impedir a tragédia, o governo tentou escondê-la. No início de junho, quando a escalada já era desenfreada, decidiu omitir o total de mortos do boletim diário do ministério. Iniciativa inócua, pois um consórcio da imprensa profissional passou a apurar os dados, e o Supremo obrigou o governo a recuar. Bolsonaro deveria saber que não é torturando números que se muda a realidade. Ela está aí, para quem quiser ver. Na quinta-feira, ele disse lamentar a iminência das 100 mil mortes: “Mas vamos tocar a vida, tocar a vida e buscar uma maneira de se safar desse problema”. Obviamente, nenhum dos mortos terá como tocar vida nenhuma. Nem Bolsonaro tem como se safar da responsabilidade pela tragédia e pela vergonha nacional.