Entrevista Carlos Pereira
• Cientista político que vê razões para impeachment diz que o país não deveria desperdiçar 'oportunidade' de mudança
Ricardo Mendonça - Folha de S. Paulo (16/8/15)
Para o cientista político Carlos Pereira, setores empresariais que nos últimos dias fizeram apelos por moderação estão cometendo um erro que poderá sair mais caro para o Brasil no longo prazo.
Defensor da abertura de um processo de impeachment contra Dilma Rousseff, ele diz que há uma oportunidade para mudanças que não pode ser desperdiçada, ainda que tenha custos imediatos, como o a turbulência econômica.
Pereira reconhece que é difícil dizer qual é exatamente o crime de responsabilidade que justificaria impeachment. Mas ressalta que se trata de um processo político, lembrando o caso de Fernando Collor, depois absolvido no Supremo Tribunal Federal.
Pessimista com o futuro do PT, ele acha que o PSDB tende a herdar o "espólio" da crise. E terá como principal rival, em 2018, o PMDB.
Folha - Qual é o seu balanço sobre os atos deste domingo?
Pereira - Vejo como um movimento. Algo que começou de forma difusa, sem foco, com uma insatisfação generalizada. A sociedade não conseguia identificar qual era a fonte desse mal-estar. Uma classe média que viu a situação melhorar na vida privada, renda, crédito, mas não viu melhoria no serviço público. Isso vem desde 2013. Agora, fica claro que a população identifica, como a fonte dessa insatisfação, a presidente Dilma, o PT e, o mais surpreendente, o ex-presidente Lula. A mobilização pelo impeachment tem de ser ininterrupta, é de longo prazo. Nessa perspectiva, acho que foi muito bem sucedida.
Em São Paulo, a manifestação reuniu 135 mil pessoas. Mais que abril, menos que março.
O número é importante. Mas não só. Hoje, fruto do resultado do julgamento do mensalão e mesmo do petrolão, que vem se desenvolvendo muito rapidamente, há uma expectativa muito positiva em relação à Polícia Federal, o Ministério Público, o Judiciário. Então talvez a eficiência desses mecanismos de controle tenha arrefecido a manifestação. Uma delegação do eleitor aos órgãos de controle, é uma sofisticação.
Desde o apelo do vice Michel Temer por união percebe-se uma movimentação de setores empresariais pedindo moderação. Como avalia?
Pereira - Percebo uma tentativa de construção de um acordo para sair da crise com o argumento da necessidade para que as elites sejam responsáveis, evitem o aprofundamento da crise econômica. Há notícias de reuniões do presidente da Globo com líderes do governo e da oposição com apelos sobre esta suposta responsabilidade. A pergunta fundamental hoje é saber o que de fato significa ser responsável. A história oferece janelas de oportunidade para mudanças. Identifico que estamos vivendo uma dessas janelas. O Brasil sendo chamado a decidir se quer se transformar mesmo em um país desenvolvido. Todos os países que alcançaram padrão de desenvolvimento reforçaram seu estado de direito e suas instituições democráticas e de controle.
Essas escolhas não são destituídas de custo. Entretanto, quando sociedades optam pagar esse custo de curto prazo são beneficiadas no futuro. Portanto, ser responsável hoje é não compactuar com comportamentos oportunistas. Transigir sob o argumento de caos político e econômico acarretará maiores custos, pois estará se alimentando um cinismo cívico de que tudo vale.
Na sua opinião, há razão para abertura de um processo de impeachment contra Dilma?
Acredito que sim. Há vários elementos que suscitam a formação de maioria no parlamento pelo impeachment. Lembrando que é um processo político. Há vários indicativos de crimes eleitorais e de responsabilidade. O Tribunal de Contas da União está em vias de analisar as contas. Pareceres preliminares foram muito críticos. O relator apresenta consistência em suas declarações. Vários economistas mostram que esse comportamento de maquiar contas foi recorrente. E as evidências de delações. Ainda não se sabe o conteúdo de tudo. Mas o que eu depreendi da decisão do procurador-geral para não abrir inquérito contra Dilma é que não foi por falta de evidências, mas porque isso foi estranho ao mandato atual. E a interpretação que ele faz é que só é suscetível ao impeachment quando o delito é cometido no mandato em vigor.
Mas isso está expresso na Constituição, não é bem uma interpretação.
É, exatamente. Mas há juristas de muito calibre que têm interpretações distintas, como Ives Gandra, Miguel Reali. É aberto para o debate.
Então qual é, exatamente, o crime de responsabilidade cometido pela presidente?
Pois é. É muito difícil dizer. É uma interpretação política. Collor sofreu impeachment sobre crime de responsabilidade, mas foi absolvido da acusação de crime comum no STF. Então mesmo havendo divergência de interpretação entre instâncias de deliberação sobre um processo de impeachment, o impeachment ocorreu. E para que a decisão alcance um grau de legitimidade, quanto mais aderente a acusação alcançar densidade empírica, mais substancial será o processo.
No caso, o impeachment teria que ser aberto pelo presidente da Câmara. Mas Eduardo Cunha é acusado de receber US$ 5 milhões oriundos da corrupção. Há legitimidade nisso?
É uma contradição incrível isso, né? É interessante isso. Como o presidente da Câmara e o do Senado [Renan Calheiros] são investigados, o jogo adquiriu um grau de sobrevivência individual desses atores. Assim, a estratégia dominante tem sido tentar vulnerabilizar ao máximo a presidente. É para sinalizar a ela não tem saída a não ser que esses atores também sobrevivam. Mas eu acho que o Executivo não entendeu isso e adotou uma estratégia de isolamento do Eduardo. Aí a crise se aprofundou.
O surpreendente é isso que você diagnosticou: quem tem a capacidade de abrir a investigação é um outro acusado, com evidências fortíssimas. Nesse cenário, acredito que aumentam as chances do impeachment. Meu diagnóstico é que ou esses atores sobrevivem juntos ou morrem juntos. Não vejo como um sobreviver e outro morrer.
Dilma tem falado em intolerância, golpismo, falta de diálogo. E associou isso à bomba no Instituto Lula. O que acha?
Acho que foi um infortúnio. De fato, há grupos extremos nesse movimento. Mas acredito que são marginais. A sociedade está comprometida com a democracia, não vejo nenhum risco de golpe.
Essa história de golpismo é uma estratégia de vitimização. É racional o governo se colocar nessa posição. Precisa tentar construir alguns elos de suporte na sociedade. O PT tem conexões fortes com os movimentos sociais, sindicais. Visa reconstruir tecidos de conexão com esses movimentos que outrora davam suporte mais ativo ao PT.
A política nacional é marcada pela polarização PT-PSDB desde 1994. Podemos esperar algo diferente no próximo período?
Acho que sim. Estou muito pessimista com o futuro do PT. Não acho que o PT vai acabar, até porque tem uma burocracia grande e muito distribuída que depende dessa estrutura partidária. Mas vai haver uma progressiva migração. Alguns vão criar novos partidos de esquerda. A velocidade disso vai depender diretamente da extensão das punições judiciais.
E o PSDB?
O PSDB, de certa forma, está de camarote nesse jogo. Vai tentar pegar o espólio disso. Teve um candidato muito competitivo em 2014 e, de acordo com as pesquisas, tem uma dianteira sólida agora. Então o PSDB corre menos riscos. Acredito que o jogo vai ficar entre PSDB e PMDB na próxima eleição. Daí porque, no caso de um impeachment, vejo a dificuldade do PSDB em apoiar um novo governo [com Temer]. O PSDB já começa a identificar o PMDB como seu principal rival. Mas vai ser muito pouco crível que o PSDB não participe de um governo de transição sob a liderança do PMDB.
A oposição é cobrada por estar votando contra medidas que ela defendia só para atrapalhar Dilma. Como vê isso?
Quem faz essa crítica não percebe que para a oposição, numa situação de polarização, não há espaço para um comportamento responsável no curto prazo. Ser responsável hoje significa aumentar o tempo que vai continuar na oposição. A estratégia para a oposição é vulnerabilizar ao máximo a presidente. E sabendo que ela está muito constrangida do ponto de vista fiscal, e sabendo que a probabilidade dessas medidas passarem é baixa, pois, em última instância, a oposição sabe que ela vai vetar, o que a oposição está fazendo é o jogo de transferir a responsabilidade do veto à presidente.
Mas não é esse o tipo de comportamento que, no fim, vai distanciar ainda mais os eleitores? Isso é um cinismo. Não seria, com sinais invertidos, um estelionato da oposição?
Não resta dúvida. O ponto é saber até onde a oposição pode ir com isso. Até quanto o custo gerado para a presidente compensa o custo da perda de grau de legitimidade com a sociedade em função de fazer isso? Mas queria destacar que a opinião pública pode não estar vendo esse componente estratégico, vê só o componente de princípios.
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Carlos Pereira, pós-doutorado em ciência política pela Universidade de Oxford, mestrado em sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco e graduação em medicina pela mesma universidade. Professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas