segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Carlos Pereira - Bolsonaro, governe enquanto há tempo

- O Estado de S.Paulo

Sem mecanismos de resolução de conflitos, o protagonismo do Legislativo não é funcional no Brasil

Um maior ativismo ou mesmo protagonismo do Legislativo brasileiro durante o governo Bolsonaro tem sido interpretado como uma alternativa positiva para um governo que se recusa a utilizar suas armas legislativas e governar por meio de coalizões majoritárias. Alguns, inclusive, chamam esse modelo de “parlamentarismo informal” ou “semipresidencialismo branco”, situação na qual um presidente minoritário não seria o real chefe do governo, mas os líderes no

Como o Legislativo seria a representação mais direta da democracia, por congregar os mais variados interesses na sociedade, poderia parecer, inicialmente, que o seu fortalecimento seria algo benéfico para a própria democracia.

Mas, no nosso mundo real, de presidencialismo multipartidário, não seria bem assim.

Por que um Legislativo proeminente e proativo não seria funcional?

A concentração de poderes nas mãos do presidente e o protagonismo político do Executivo, que no passado eram vistos como ameaças à democracia, em função dos potenciais riscos de tirania ou de comportamentos autoritários do chefe do Executivo, são, hoje, interpretados como precondições para a efetividade governativa do presidente, especialmente em um ambiente multipartidário.

Por mais paradoxal que possa parecer, o presidencialismo multipartidário requer que o presidente seja constitucionalmente forte para que tenha condições de governar. Influenciar ou mesmo controlar a agenda do Legislativo é uma prerrogativa para o funcionamento adequado desse sistema que privilegia a representação.

Marcus André Melo* - Presidente fraco?

- Folha de S. Paulo

Mudança no padrão do regime presidencial não significa parlamentarização

Há uma nova expressão no léxico político: a parlamentarização. Estaríamos vivendo um parlamentarismo branco: o poder Legislativo autonomizou-se, e o poder Executivo vem perdendo protagonismo. A intuição da parlamentarização vai na direção correta, mas no fundo a expressão é enganosa.

O traço distintivo do parlamentarismo é que a origem e a sobrevivência do chefe do poder Executivo depende do Parlamento. No presidencialismo, o presidente é eleito diretamente e o mandato é fixo, independe de confiança parlamentar.

Um conflito entre os dois poderes não tem arbitragem fácil devido à legitimidade dual: ambos têm mandato popular. Sob o parlamentarismo, há uma válvula de escape para o conflito: a moção de confiança seguida de novas eleições. A estrutura de incentivos no presidencialismo pode levar sob certas condições a uma situação de confronto radical.

A ideia de parlamentarização ignora que há grande variação dentro do presidencialismo: há presidentes com amplos poderes constitucionais (Brasil, com escore de 0,46 no índice Elgie/Doyle; ou Chile, com 0,57) e com escassos poderes —EUA e Costa Rica (ambos 0,28). O apoio que recebe do seu partido também importa à análise. Nos EUA, o presidente tem estado em situação minoritária em uma das casas legislativas em 59% dos anos de 1945 a 2020.

Celso Rocha de Barros* - O impeachment no Oscar

- Folha de S. Paulo

Os fatos estão do lado de documentário de Petra Costa

Em minha cena favorita de “Democracia em Vertigem”, a diretora Petra Costa mostra funcionários preparando o Palácio do Alvorada para a chegada de Temer. Na hora, lembro de ter pensado “eu queria ouvir a opinião dessa senhora da limpeza”. A documentarista também quis, e ouviu a seguinte resposta: se o PT não tivesse culpa, aquele movimento todo não teria acontecido. Mas a saída escolhida para a crise não foi democrática, e o ideal teria sido a realização de novas eleições.

A opinião da senhora que cuida da limpeza do Palácio da Alvorada é muito semelhante à opinião majoritária em 2016. A mesma ampla maioria que apoiava o impeachment de Dilma também apoiava o de Temer, e a proposta de realizar novas eleições era amplamente popular. O clima era de mobilização, e o discurso era de que, se Temer decepcionasse, também seria derrubado.

Nada disso aconteceu.

Apoiadores sinceros do impeachment não se viram retratados no documentário de Petra Costa. Eles não quiseram acordão, eles deixaram de apoiar os políticos de direita acusados de corrupção, eles defenderam a queda de Temer. Mas os fatos estão do lado de “Democracia em Vertigem”: quem tinha essas posições perdeu.

Quem ganhou com a derrubada de Dilma Rousseff foram aqueles senhores que votaram no plenário e queriam coisas bem diferentes.

Fernando Gabeira - Vocabulário da crise

- O Globo

Chegamos a uma situação difícil de superar. Não só os milhões de litros de esgoto, mas as estações de tratamento paralisadas

Ao chegar ao Rio, fui a um restaurante e na hora do café senti um gosto estranho. Era geosmina, palavra grega. Lembrei-me de que o arroz também já não era mais o mesmo. A geosmina não se limitava a transformar a água de banho. Agora seria um novo componente do próprio corpo.

Andando pelas ruas de Ipanema, vejo que a chuva alagou as ruas; o esgoto, em alguns pontos, está de novo a céu aberto.

Ocorre-me uma outra palavra nova. Foi criada pelo escritor americano Glenn Albrecht: solastalgia. É uma combinação em inglês que une duas palavras, solace, consolo, com nostalgia do conforto, sentimento de desolação diante da perda de uma paisagem familiar por incêndio, inundação ou outro desastre. No caso do Rio, a corrupção endêmica.

No meio da semana, escrevi um artigo sobre coronavírus, afirmando que vivemos um novo tempo. Os negacionistas vão dizer sempre que nada mudou, houve pestes no passado, falta de água no Rio; o mundo para eles é apenas uma repetição mecânica.

Refleti um pouco sobre o grande livro de Albert Camus, “A peste”. Ele volta à agenda de discussões porque é uma alegoria da ocupação nazista de Paris, uma referência à guerra. No livro, Camus, através de um personagem, afirma que o bacilo da peste nunca morre, ele adormece nas gavetas, nas nossas roupas, esperando o momento para ressurgir.

Cacá Diegues - A prova dos nove

- O Globo

O mundo não está dividido entre comunistas e fascistas. Haverá sempre, entre os dois, uma enorme escala de valores

Foi o Modernismo de 1922 que introduziu, na cultura brasileira, o elogio da alegria. Não só a alegria funcional de estar experimentando uma estética nova, mais livre e mais aberta, mas a própria alegria de viver, de valorizar a existência por sua própria natureza, valorizá-la por existir. É claro que não foram os modernistas que inventaram o humor, ele já se manifestara em nossa cultura, de um modo feroz em Gregório de Matos ou de um modo carinhoso nos músicos populares alimentados pelo carnaval. Segundo Oswald de Andrade, o humor seria a prova dos nove de uma cultura nova, de uma nova perspectiva de civilização que valia a pena.

Essas reflexões esbarram sempre na polarização radicalizada e inconciliável de nossas ideias políticas. Qualquer pessoa que defenda saídas consideradas de esquerda é chamada de comunista. Assim como os que defendem qualquer saída de direita são chamados de fascistas. Uma discriminação política e ideológica que não aceita conflitos de ideias, detalhes contraditórios como todo pensamento justo e honesto nunca deixará de ter. O mundo não está dividido entre comunistas e fascistas. Haverá sempre, entre os dois, uma enorme escala de valores que não serão nem uma coisa, nem outra.

Um país que sempre teve o carnaval como sua festa máxima, não pode deixar de celebrá-la como a alma e o corpo de nosso ser e estar no mundo. Em seu livro “Uma história do samba”, Lira Neto nos conta como o Catumbi tratava Sinhô, um dos inventores do samba no início do século XX, chamando-o de “o chorão das molecas chorosas”. E, no entanto, Sinhô iluminou nossa civilização carioca com tantas canções inesquecíveis, tristes e cheias de alegria.

Demétrio Magnoli - O partido rasgado

- O Globo

O plano A é disputar com Sanders, que se descreve como um ‘socialista democrático’ e parece inelegível no panorama político americano

Na noite de 4 de fevereiro, Nancy Pelosi, a democrata que preside a Câmara dos EUA, rasgou as páginas do discurso provocativo de Donald Trump sobre o Estado da União. Simultaneamente, emergiam os resultados da apuração atrasada das primárias democratas de Iowa, evidenciando tanto o duplo triunfo de Pete Buttigieg e Bernie Sanders quanto a humilhante derrota de Joe Biden. O gesto extremo de Pelosi revelou a vontade do Partido Democrata de encerrar a “era Trump”. Iowa, por outro lado, revelou que o Partido Democrata está rasgado, para sorte de Trump.

Os assessores de Trump não fazem segredo da tática que empregam nas primárias do partido rival: concentram o fogo em Biden, o principal candidato moderado, e disseminam o rumor de que a direção democrata trapaceia contra Sanders, o nome mais forte da esquerda. A tese da trapaça cala fundo na ala esquerda democrata, pois é elemento crucial do discurso do próprio Sanders desde a contenda interna de quatro anos atrás com Hillary Clinton.

Sanders compartilha com Trump inclinações políticas isolacionistas e ideias econômicas protecionistas. Mas a preferência do presidente não se deve à comunhão ideológica pontual. O Plano A é disputar a Casa Branca com Sanders, que se descreve como um “socialista democrático” e parece inelegível no panorama político americano. O Plano B é ajudar o esquerdista a caminhar até a convenção democrata, provocando uma cisão tão amarga quanto a de 2016, quando o núcleo de eleitores de Sanders preferiu a abstenção ao voto em Hillary.

A crise dos trabalhistas britânicos, que sofreram sua pior derrota eleitoral desde 1935, ilumina a encruzilhada dos democratas americanos. Há cinco anos, o Partido Trabalhista foi tomado de assalto pelo Momentum, uma organização esquerdista inspirada no exemplo dos partidos Syriza (Grécia) e Podemos (Espanha). O desastre eleitoral é o resultado previsível do giro à esquerda dos trabalhistas.

Almir Pazzianotto Pinto* - A era da mediocridade

- O Estado de S. Paulo

Por sua causa somos subdesenvolvidos, analfabetos, pobres, sem saúde e educação...

“Sempre há medíocres. São perenes. O que varia é seu prestígio e sua influência”
José Ingenieros

A mediocridade é ardilosa. Não ataca repentinamente. Avança sem pressa, como insidioso câncer. Apodera-se dos partidos, espraia-se pela economia, invade a mídia, explora as redes sociais. Ao nos darmos conta, os espaços públicos e privados já foram ocupados. Sobreviverão ilhas de inteligência e de caráter, habitadas por mulheres e homens capazes, cuja inferioridade numérica lhes dificulta a reação. Derradeiras esperanças são depositadas no aparecimento de alguém disposto a arregimentar o povo para campanha comprometida com a recuperação ética, cultural e econômica da Nação.

José Ingenieros (1877-1925) escreveu: “A psicologia dos homens medíocres caracteriza-se por um traço comum: a incapacidade de conceber uma perfeição, de formar um ideal. São rotineiros, honestos e mansos; pensam com a cabeça dos demais, compartilham a alheia hipocrisia moral e ajustam seu caráter às domesticidades convencionais (...). Não vivem para si mesmos, senão para o fantasma que projetam na opinião dos semelhantes. Carecem de linha; sua personalidade se borra como um traço de carvão sob o esfuminho, até desaparecer”. Registra Ingenieros que, ao se associarem, tornam-se perigosos, pois “a força do número supre a debilidade individual: juntam-se aos milhares para oprimir quantos desdenham encadear sua mente com os grilhões da rotina” (O Homem Medíocre, Ed. Ícone, SP, 2006).

Como definir o medíocre? Eça de Queiroz traçou-lhe o perfil na figura do talentoso Pacheco, José Joaquim Alves Pacheco. Em resposta à imaginária carta enviada pelo sr. E. Mollinet, interessado em saber quem é esse compatriota “cuja morte está sendo tão vasta e amargamente carpida nos jornais de Portugal”, escreveu Eça de Queiroz: “Eu casualmente conheci Pacheco. Tenho presente, como num resumo, a sua figura e a sua vida. Pacheco não deu ao seu país nem uma obra, nem uma fundação, nem um livro, nem uma ideia. Pacheco era entre nós superior e ilustre unicamente porque tinha um imenso talento. Todavia, meu caro Mollinet, este talento, que duas gerações tão soberbamente aclamaram, nunca deu, da sua força, uma manifestação positiva, expressa, visível! O talento imenso de Pacheco ficou sempre calado, recolhido, nas profundezas de Pacheco” (A Correspondência de Fradique Mendes).

Ricardo Noblat - A morte do miliciano que ficou de fora da lista dos mais procurados

- Blog do Noblat | Veja

Para que suspeitas não manchem a reputação de inocentes

Se foi queima de arquivo ou se não foi, só o futuro dirá. Ou não dirá. Mas para que suspeitas não manchem a reputação de inocentes, ao governo federal deveria interessar que fossem logo esclarecidas as circunstâncias da morte, ontem, na Bahia, do ex-capitão do BOPE do Rio de Janeiro, Adriano Magalhães da Nóbrega, miliciano e um dos líderes do grupo de matadores de aluguel conhecido como “O Escritório do Crime”.

Em 2003, Adriano e Fabrício Queiroz, que trabalharam juntos no 18º Batalhão da Polícia Militar, em Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio, mataram Anderson Rosa de Souza durante uma ronda na Cidade de Deus. No mesmo ano, por iniciativa do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, a Assembleia Legislativa do Rio aprovou uma moção de louvor a Adriano “pelos inestimáveis serviços” prestados por ele à PM.

Adriano foi condenado por homicídio em 2005. Dias depois, na Câmara, o deputado federal Jair Bolsonaro fez um longo discurso em sua defesa. E outra vez por iniciativa de Flávio, a Assembleia Legislativa do Rio concedeu a Adriano a Medalha Tiradentes, sua mais alta honraria. À época, já havia a suspeita de que Adriano tivesse ligações com milicianos. Sempre amigos, Adriano e Queiroz voltariam a se encontrar em 2018.

Por indicação de Bolsonaro, pai, Queiroz trabalhava como motorista e chefe de gabinete de Flávio na Assembleia. Ali, foram empregadas a filha e a ex-mulher de Adriano. Há menos de um mês, as duas foram acusadas pelo Ministério Público de terem devolvido a Queiroz 203 mil reais, parte dos seus salários. Queiroz, Flávio e outros ex-servidores da Assembleia são investigados pelo que ficou conhecido como “o esquema da rachadinha”.

Leandro Colon* - Perguntas sem respostas

- Folha de S. Paulo

Sobram pontos de interrogação sobre o envolvimento do clã com Adriano da Nóbrega

A morte do ex-PM Adriano da Nóbrega, apontado como chefe de uma das principais milícias do Rio, pode deixar sem respostas uma série de perguntas sobre suas relações nebulosas com a família Bolsonaro.

A prisão de um dos homens mais procurados do país era importante para esclarecer o esquema das "rachadinhas" no gabinete de Flávio Bolsonaro, filho do presidente da República, nos tempos de deputado na Assembleia do Rio.

Hoje senador, Flávio empregou até novembro de 2018 a mãe e a mulher de Nóbrega. Na época da exoneração, cada uma ganhava um salário de R$ 6.490,35. A mãe do miliciano, Raimunda, repassou dinheiro para Fabrício Queiroz, policial aposentado e homem de confiança dos Bolsonaros há mais de 30 anos.

Queiroz recebeu R$ 92 mil em 18 depósitos feitos em uma agência próxima a um restaurante de Raimunda e na mesma rua onde seu filho também tinha negócio. Segundo o Ministério Público, contas controladas por Nóbrega abasteciam Queiroz.

Vinicius Mota - A economia deu uma fraquejada

- Folha de S. Paulo

Estagnação de 40 anos está baseada em instrução de menos e privilégios de mais

Real desvalorizado, juro perto de zero e reservas cambiais sobrantes. Está implantada a fórmula mágica que, segundo uma escola de economistas, faria a produção nacional deslanchar.

Só que não. A indústria recuou em 2019. As exportações, que deveriam reagir ao estímulo cambial, levaram um tombo de 20% em janeiro, e a trombada foi maior na manufatura.

A turma do outro lado, a do ajuste fiscal, também não está com essa bola toda. Após o teto da despesa pública e a poda na Previdência, o espetáculo do crescimento segue adiado.

Mal começou o veranico do otimismo, terceira temporada da série "Agora Vai!", e ele já abana a mãozinha para nós. Os palpites dos profissionais, que rumavam para uma alta de 2,5% do PIB em 2020, há alguns dias voltaram a recuar.

Isso daí, em fraseado presidencial, deu uma fraquejada.

Ruy Castro* - Detalhe singelos

- Folha de S. Paulo

Safáris de araque, banho no bidê, paixão por sorvete, xixi na cama

Não por dever, mas por prazer mesmo, vivo lendo biografias, perfis e memórias de escritores, artistas, atletas, diplomatas e de quem quer que tenha tido uma vida ativa e profícua, não importa a época ou a origem. E, quase sempre, vejo-me diante de revelações surpreendentes sobre os biografados. Aliás, são os menores detalhes que trazem essas surpresas.

Ernest Hemingway, famoso por livros sobre a África, como "As Neves do Kilimanjaro", e por viver se gabando de matar leões e elefantes em suas caçadas por lá, não era assim tão macho. Hemingway ia à África por agências de viagem, e os safáris de que participava eram preparados, tendo como alvos elefantes e leões velhos e doentes. E F. Scott Fitzgerald, em plenos "anos loucos", traía certo provincianismo. Ao chegar para uma longa temporada em Paris, em 1924, hospedou-se no Ritz e, como nunca tinha visto um bidê, achou que era uma banheirinha para crianças. Pois foi no bidê do Ritz que Zelda, sua mulher, deu banho em Scottie, a filhinha do casal, pelos meses seguintes.

Bruno Carazza* - Luz e escuridão

- Valor Econômico

Saga da Light demonstra aversão ao setor privado

Na última semana o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) concluiu a venda de R$ 22 bilhões de ações ordinárias da Petrobras. A estratégia da equipe econômica é se desfazer da participação em empresas consideradas “maduras”, atingindo assim o duplo objetivo de redirecionar a atuação do banco estatal e contribuir para o ajuste fiscal, por meio do repasse de dividendos à União. Antes da Petrobras, houve a venda de 34% do capital do frigorífico Marfrig e também a zeragem de sua posição na distribuidora de energia Light.

A venda de mais de 19 milhões de ações da Light pelo BNDES, aliás, encerra uma trajetória mais do que centenária de envolvimento e intervenção do governo na empresa. Constituída em 1899 em Toronto, no Canadá, como São Paulo Tramway, Light and Power Company, a empresa começou a atuar no Brasil em 1901 com a construção da usina hidrelétrica de Parnahyba, no rio Tietê. Em 1905, os mesmos sócios canadenses criaram a Rio de Janeiro Tramway, Light and Power Company.

A presença da Light, como passou a ser conhecida, mudou a paisagem das duas maiores cidades brasileiras. Graças a seus investimentos, Rio e São Paulo migraram das carroças para o bonde elétrico e dos lampiões para a luz elétrica. A empresa obteve ainda a concessão dos serviços telefônicos nas duas capitais, e expandiu sua atuação para outras regiões e setores no país.

O crescimento da maior multinacional estrangeira no Brasil à época, porém, esteve longe de ser bem quisto. A empresa sofria constantes acusações de que suas tarifas eram extorsivas e geravam lucros extraordinários para serem remetidos à matriz. Ao lado do discurso nacionalista de políticos e intelectuais, veio o populismo tarifário que subsidiava o consumo em detrimento dos investimentos na expansão dos serviços. O sistema de bondes acabou ficando sucateado e, depois de um longo período de intervenção federal, seu braço telefônico, a CTB, foi estatizado em 1966.

Em meados da década de 1970 a situação da Light era complicada: seu prazo de concessão estava prestes a expirar, o crescimento gerado pelo milagre econômico exigia investimentos cada vez maiores para dar conta da demanda crescente por energia elétrica e o controle das tarifas deteriorava a receita da empresa. Nessas condições, os canadenses começaram a sinalizar que queriam deixar o país.

Sergio Lamucci* - Menos crescimento e menos inflação

- Valor Econômico

Com um crescimento mais perto de 2% e uma inflação confortavelmente abaixo da meta, os juros poderão ficar baixos por um longo tempo

As projeções de crescimento e de inflação para a economia brasileira em 2020 passam por uma onda de reduções neste começo do ano. Com o surto de coronavírus e os resultados mais fracos de alguns indicadores econômicos nos últimos meses, as estimativas para a expansão do PIB têm caído para mais perto de 2%. Para a inflação, as apostas migram para um Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) mais próximo de 3%, por causa da grande ociosidade na economia e da perspectiva de continuidade da queda dos preços das carnes, depois do choque do fim do ano passado, e de um comportamento favorável das cotações de energia elétrica e combustíveis.

Na economia global, surgiu um risco novo, cujas consequências são difíceis de avaliar. A epidemia de coronavírus deve ter um efeito fortemente negativo sobre o crescimento da China no primeiro trimestre, mas há muitas dúvidas quanto ao impacto em outros países e em relação à intensidade e à duração do problema. As projeções para a expansão do PIB chinês em 2020 têm recuado da casa de 6% para 5,4%, com a avaliação dominante de que os contratempos vão se concentrar nos primeiros três meses do ano.

Na semana passada, UBS e J.P. Morgan baixaram a estimativa para o crescimento brasileiro em 2020 por causa do novo vírus. A China é o principal parceiro comercial do Brasil e os preços de commodities, com grande peso nas exportações do país, têm sido bastante afetados. O UBS cortou a projeção de 2,5% para 2,1%, enquanto o J.P. Morgan fez uma redução menor, de 2% para 1,9%.

Flávio Ricardo Vassoler* - A jornada intelectual de Schwarz

- O Estado de S. Paulo / Aliás

'Seja Como For' refaz o percurso intelectual de meio século de produção acadêmica

Seja como For (Editora 34), livro de artigos, entrevistas e documentos, homenageia os 50 anos da trajetória intelectual do crítico literário e professor Roberto Schwarz, cujas obras sobre Machado de Assis – Ao vencedor as batatas: Forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro (1977) e Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis (1990) – contribuíram sobremaneira para a fortuna crítica do autor de Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e Dom Casmurro (1899).

Roberto Schwarz estudou Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP) e fez suas pesquisas de mestrado, na Universidade de Yale (EUA), no início da década de 1960, e de doutorado, na Universidade de Paris III, na primeira metade da década seguinte. Entre 1963 e 1968, foi professor de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP, em meio ao departamento então recém-fundado pelo professor e crítico literário Antonio Candido (1918-2017), intelectual que exerceu fundamental influência sobre Schwarz. Com o recrudescimento da ditadura no Brasil a partir da implementação do Ato Institucional n.º 5 (AI-5), em fins de 1968, o marxista Roberto Schwarz decide sair do país.

Antes de dar início a seu doutoramento na França, Schwarz estabelecera uma breve troca de cartas – documentada em Seja como for – com o filósofo alemão Theodor Adorno (1903-1969), autor ligado à Escola de Frankfurt, cujos estudos seminais sobre a imbricação entre estética e história, forma literária e processo social seriam decisivos para a composição das obras de Schwarz sobre Machado de Assis. No prefácio de Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis, Schwarz revela que seu trabalho “seria impensável sem a tradição – contraditória [isto é, dialético-materialista] – formada por Lukács (1885-1971) [filósofo e crítico literário húngaro], Benjamin (1892-1940) [ensaísta, filósofo, crítico literário e tradutor alemão], Brecht (1898-1956) [poeta e dramaturgo alemão] e Adorno, e sem a inspiração de Marx (1818-1883)”. Quando de seu retorno ao Brasil, Schwarz lecionou Teoria Literária na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) entre 1978 e 1992.

O que a mídia pensa – Editoriais

Bomba-relógio fiscal – Editorial | O Estado de S. Paulo

A relutância do governo em negociar suas propostas no Congresso – ou seja, em fazer política – está pondo a máquina pública na rota do colapso. O crescimento da dívida pública funciona como uma bomba-relógio que só pode ser desmontada por amplas reformas de Estado. O desmonte começou com a reforma da Previdência e só será consumado com outras, como a administrativa e a tributária, mas enquanto não for, o País precisa de mecanismos emergenciais para desacelerar a contagem regressiva. A isso serve a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 186, alcunhada não à toa “Emergencial”. Encaminhada ao Senado em novembro, ela está há quase dois meses atolada na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania.

Duas disposições constitucionais garantem a sustentabilidade fiscal do poder público: o Teto de Gastos, pelo qual a máquina pública não pode gastar mais do que um determinado valor, e a Regra de Ouro, pela qual não se pode endividar para pagar despesas correntes. Ocorre que, devido às disfunções da máquina pública, os gastos obrigatórios com salários e aposentadorias não param de crescer, comprimindo os gastos discricionários com infraestrutura, inovação e outros. Para dar uma ideia, em 2014 os investimentos públicos corresponderam a 1,4% do PIB. Em 2019, foram inferiores a 0,5%. Ou seja, na rota em que está, a única função do Estado será cobrir os custos com o funcionalismo. Como esses custos só crescem, será preciso arrecadar cada vez mais impostos ou se endividar cada vez mais.

Música | Alceu Valença - Madeira do Rosarinho

Poesia | Carlos Drummond de Andrade - O Medo

Em verdade temos medo.
Nascemos no escuro.
As existências são poucas;
Carteiro, ditador, soldado.
Nosso destino, incompleto.
E fomos educados para o medo.
Cheiramos flores de medo.
Vestimos panos de medo.
De medo, vermelhos rios
Vadeamos.
Somos apenas uns homens e a natureza traiu-nos.
Há as árvores, as fábricas,
Doenças galopantes, fomes.
Refugiamo-nos no amor,
Este célebre sentimento,
E o amor faltou: chovia,
Ventava, fazia frio em São Paulo.
Fazia frio em São Paulo...
Nevava.
O medo, com sua capa,
Nos dissimula e nos berça.
Fiquei com medo de ti,
Meu companheiro moreno.
De nos, de vós, e de tudo.
Estou com medo da honra.
Assim nos criam burgueses.
Nosso caminho: traçado.
Por que morrer em conjunto?
E se todos nós vivêssemos?
Vem, harmonia do medo,
Vem ó terror das estradas,
Susto na noite, receio
De águas poluídas. Muletas
Do homem só.
Ajudai-nos, lentos poderes do
Láudano.
Até a canção medrosa se parte,
Se transe e cala-se.
Faremos casas de medo,
Duros tijolos de medo,
Medrosos caules, repuxos,
Ruas só de medo, e calma.
E com asas de prudência
Com resplendores covardes,
Atingiremos o cimo
De nossa cauta subida.
O medo com sua física,
Tanto produz: carcereiros,
Edifícios, escritores,
Este poema,
Outras vidas.
Tenhamos o maior pavor.
Os mais velhos compreendem.
O medo cristalizou-os.
Estátuas sábias, adeus.
Adeus: vamos para a frente,
Recuando de olhos acesos.
Nossos filhos tão felizes...
Fiéis herdeiros do medo,
Eles povoam a cidade.
Depois da cidade, o mundo.
Depois do mundo, as estrelas,
Dançando o baile do medo.