domingo, 18 de novembro de 2012

OPINIÃO DO DIA – Ayres de Britto: Os políticos terão mais cuidado, com o risco de irem para a prisão?

Se respondesse sim, estaria fazendo um corte abrupto, radical, de que essa decisão é, sim, um divisor de águas. Não quero ser categórico. Eu digo que essa decisão do Supremo vem num crescendo, que agora alcança o plano criminal. Sinaliza uma nova época, de mais qualidade na vida política.

Eu não posso dizer que a impunidade está com os dias contados, eu estaria dourando a pílula, sendo ufanista, não posso dizer isso. Agora, eu diria que a impunidade sofreu um duro revés, um tranco, por efeito dessa decisão.

Na minha opinião, não tem nada a ver com julgamento de um partido. Não é o julgamento do PT, são réus, que alguns ocuparam cargos de direção no PT.

Ayres de Britto, ex-presidente do STF, entrevista na Folha de S. Paulo, 18/11/2012.

Manchetes dos principais jornais do País

O GLOBO
Ecos do mensalão: Brasil sofre pressão para punir empresas corruptas
Esplanada em expansão: Em 10 anos, Ministério quase dobrou
A epidemia se espalha: Crack já preocupa interior do estado
Efeitos da crise: Saldo comercial em marcha a ré
Cultura com cota

FOLHA DE S. PAULO
Dilma usa BNDES para ajudar Estados e cidades
Governo de SP também deu verba a jornal que não existe
Israel aumenta ofensiva e destrói sede do Hamas
'Impunidade sofreu tranco’, diz Ayres Britto sobre mensalão
Rodoanel tem arrastão; chacina deixa 5 mortos

O ESTADO DE S. PAULO
Israel destrói prédio do alto comando do Hamas em Gaza
Falta de sondas para o pré-sal ameaça metas de produção
Fidelidade da Câmara a Dilma cai ao menor nível
Repatriação de dólares na Ilha de Jersey pode demorar

CORREIO BRAZILIENSE
O poder sob bombas
Dilma critica duramente a austeridade
Até vizinho vira fiscal de servidor

ESTADO DE MINAS
Dilma ataca rigor fiscal e pede inclusão

ZERO HORA (RS)
Por que o RS é menos vulnerável a atentados
Barbosa, o implacável colecionador de rusgas
A reinvenção do jogo do bicho

JORNAL DO COMMERCIO (PE)
Fifa cheia de direitos na Copa do Mundo
O Sertão da Classe Seca


O que pensa a mídia - Editoriais dos principais jornais do País

http://www2.pps.org.br/2005/index.asp?opcao=editoriais

Academia vê pós-mensalão com cautela

Escolas de Direito discutem se as decisões do STF no julgamento representam exceção ou levarão a um real endurecimento contra a corrupção

Isadora Peron

As consequências do julgamento do mensalão no ambiente jurídico brasileiro ainda são uma interrogação para as principais faculdades de Direito do País. As sessões do Supremo Tribunal Federal e as decisões dos ministros da Corte viraram tema de discussão na academia, mas, entre professores e coordenadores de cursos de renomadas instituições, somente o tempo dirá se as condenações impostas pelo Supremo aos réus vão representar uma exceção ou um real endurecimento na hora de julgar crimes ligados à corrupção.

Entre os docentes de Direito ouvidos pelo Estado, é consensual a opinião de que ainda é cedo para fazer uma análise mais aprofundada sobre o legado da ação penal do mensalão e os seus verdadeiros impactos na jurisprudência brasileira.

Segundo o professor Renato de Mello Jorge Silveira, diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), é preciso deixar o julgamento terminar para debater temas que causaram divergências até mesmo entre os próprios ministros da Corte. Dos assuntos que merecerão um olhar mais atento no futuro, o professor destaca a aplicação da chamada teoria do domínio de fato e os novos entendimentos em relação aos crimes de lavagem de dinheiro e formação de quadrilha.

A interpretação dada pelo Supremo da teoria do domínio de fato foi, até aqui, a que mais gerou discussões acaloradas dentro e fora do tribunal. No entendimento da maioria dos ministros da Corte, é possível condenar uma pessoa que não tenha executado diretamente um crime se houver indícios de que ela tinha conhecimento do ocorrido.

O professor de direito público da Universidade de Brasília (UnB) Mamede Said é um dos que discordam dessa interpretação. Para ele, não basta que haja evidências de que a pessoa sabia do ilícito que estava sendo praticado. É necessário que o envolvimento no caso seja provado.

"A questão agora é se o Supremo vai ter a mesma consistência para julgar casos semelhantes no futuro. Essa será a prova dos nove. Só com o tempo nós vamos ver se esse foi um julgamento muito duro por uma razão circunstancial ou se a Corte está indicando que a tolerância com os crimes de corrupção vai ser muito baixa daqui para a frente", diz Oscar Vilhena, professor de Direito Constitucional e diretor da Direito GV.

Na semana que passou, o PT divulgou uma nota na qual acusou o STF de ter feito um julgamento "político" e de ter desrespeitado garantias constitucionais e imputado "penas desproporcionais" a José Dirceu, José Genoino e Delúbio Soares.

Os critérios adotados para a fixação das penas no processo têm gerado reações entre os membros da Corte. Na sessão da última quarta-feira, o ministro do Supremo José Antonio Dias Toffoli comparou as penas impostas aos réus às punições aplicadas no período da Inquisição.

Na sessão do dia 7, Marco Aurélio Mello, durante um bate-boca com o relator Joaquim Barbosa, afirmou que o mundo acadêmico estava estarrecido com os mais de 40 anos de prisão dados ao empresário Marcos Valério.

A dosimetria das penas é um outro ponto que os professores destacam que precisará ser revisitado no futuro. Para Said, a postura do STF de dar aos réus penas mais próximas ao limite máximo para que não haja prescrição do crime é uma atitude questionável. "Tem que aplicar a pena com base no grau de culpabilidade da pessoa, e não ficar fazendo simulações para tomar uma decisão."

Fonte: O Estado de S. Paulo

Ecos do mensalão: Brasil sofre pressão para punir empresas corruptas

Países ricos querem que governo cumpra convenção e aprove lei rígida sobre o tema

No Congresso, é forte o lobby contra o endurecimento da legislação; empreiteiras temem o efeito do julgamento no Supremo

O Brasil sofre pressão para aprovar lei que prevê até a extinção de empresas adeptas do suborno para ganhar contratos públicos, revelam Vinícius Sassine e Roberto Maltchik. O governo assumiu o compromisso em 2000, ao assinar uma convenção da OCDE, entidade que reúne 34 países, a maioria ricos. A OCDE ameaça recomendar às empresas de seus países que não negociem com as brasileiras. Deputados dizem que o lobby das empreiteiras contra o projeto aumentou com o julgamento do mensalão e a nova interpretação para condenar corruptos.

Lei anticorrupção em xeque

Brasil sofre cobrança para punir empresas corruptas; projeto se arrasta no Congresso

Vinicius Sassine, Roberto Maltchik

BRASÍLIA e RIO - O Brasil se tornou alvo de pressão internacional porque protela a aprovação de uma lei anticorrupção que puna até mesmo com a extinção empresas que pagam suborno para fechar negócios dentro e fora do país. O governo levou a proposta ao Congresso em 2010, mas a tramitação se arrasta em uma Comissão Especial da Câmara desde setembro do ano passado. Deputados da comissão, ouvidos pelo GLOBO na última semana, afirmam que o atraso é provocado pelo lobby de empresas de engenharia e de construção civil, contrárias ao texto do Executivo.

Por trás do embate está a responsabilização administrativa e judicial das empresas - e não só seus representantes flagrados em atividades ilícitas. Se já estivesse em vigor, a lei poderia, em tese, sepultar a Delta Construções, empreiteira cujos ex-diretores foram presos sob acusação de negociar ilicitamente contratos públicos, até mesmo sob o comando do bicheiro Carlinhos Cachoeira. Entre as penalidades previstas na lei em debate está multa de até 20% do faturamento bruto do último exercício anterior à instauração do processo administrativo. Em 2011, só em contratos com o governo federal, a Delta faturou R$ 862 milhões.

Os parlamentares da comissão, sob a condição do anonimato, revelam que, além do caso Delta, o desfecho do julgamento do mensalão, com identificação da cadeia de comando do esquema, pôs diretores e representantes de empreiteiras em alerta. O movimento contrário ao texto do relator, deputado Carlos Zarattini (PT-SP), defende o substitutivo apresentado pelo deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que, na avaliação do governo, desfigura o projeto e retira a responsabilização objetiva das empresas na esfera judicial.

- É preciso definir melhor o limite da responsabilidade. A empresa não pode ser responsabilizada, por exemplo, por um ato individual de um office-boy que não tenha tido o conhecimento da direção - sustenta Cunha.

Planalto já identificou lobby

O articulado lobby na comissão especial vem dando certo até agora. Não há qualquer acordo para a votação do projeto. Cunha é o interlocutor procurado pelo governo para negociar concessões à proposta.

O Brasil se comprometeu em aprovar a lei contra a corrupção ao se tornar signatário da Convenção da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) contra o Suborno Transnacional, no ano 2000. A OCDE é um órgão de desenvolvimento formado por 34 países, a maioria ricos da Europa e da América do Norte.

Em 8 de outubro, durante reunião em Paris, o presidente do grupo de trabalho da convenção, Mark Pieth, afirmou que o Brasil corre sério risco por não cumprir integralmente os compromissos da convenção. E alertou que a OCDE poderia recomendar às empresas de países-membros que não façam negócios com empresas daqui. Além do Brasil, considerado parceiro-chave da OCDE, a Argentina é o único país signatário que não tem uma lei para punir empresas corruptas.

- A aprovação desse projeto dará ao poder público um instrumento muito mais eficaz para se defender das empresas fraudadoras e desonestas, alcançando-as naquilo que lhes é mais sensível, o patrimônio. A lei vai retirar o Brasil da desconfortável situação de devedor inadimplente de uma obrigação solenemente assumida quando ratificou a Convenção da OCDE contra o Suborno Transnacional - diz o ministro-chefe da Controladoria Geral da União (CGU), Jorge Hage.

A lei anticorrupção foi elaborada pela CGU, em parceria com a Advocacia Geral da União (AGU) e com a Casa Civil da Presidência. Levantamento do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) mostra que US$ 6 bilhões (R$ 12 bilhões) foram recuperados em países com leis de combate ao suborno transnacional. O Brasil, por não ter uma lei própria, ficou fora do levantamento.

A movimentação das empreiteiras para barrar a proposta já foi detectada pela Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República. Um dos deputados integrantes da comissão contou ao GLOBO ter recebido a ligação de um empresário preocupado com as novas interpretações do STF sobre o crime de corrupção. A ligação foi para pedir o veto ao projeto anticorrupção. Os primeiros telefonemas, no entanto, começaram após a crise da Delta.

Presidentes de associações de empresas de engenharia e de construção civil procuraram outro deputado em seu gabinete na Câmara. Também pediram que não apoiasse o projeto.

A lei brasileira, hoje, permite a punição apenas de gestores acusados de pagamento de propina em território nacional. A punição máxima possível é o que a CGU fez, por exemplo, com a Delta: a declaração de inidoneidade e a consequente impossibilidade de firmar novos contratos com a União. Nas contas do governo, se o texto do relator Zarattini for aprovado na comissão, em caráter terminativo, a oposição silenciosa ao projeto deve reunir 52 assinaturas para levar o texto ao plenário, onde o Planalto teme ser derrotado.

Fonte: O Globo

Concentração de poder no início da gestão

Ao assumir a presidência do STF na terça-feira, Joaquim Barbosa vai acumular também a função de relator da Ação Penal 470. Prática não é inédita e tem previsão no Regimento Interno da Casa

Helena Mader

O ministro Joaquim Barbosa, que assume a presidência do Supremo Tribunal Federal (STF) na próxima terça-feira, não será o primeiro a comandar a Corte e relatar um processo de grande repercussão ao mesmo tempo. Apesar das preocupações de alguns advogados com o andamento da Ação Penal 470 por conta das mudanças na gestão do STF, a concentração de poderes está de acordo com o Regimento Interno do Supremo e não deve afetar a conclusão do processo.

Em 2009, Gilmar Mendes estava à frente da Corte quando ficou responsável pela análise da denúncia da Procuradoria Geral da República contra Antônio Palocci. Gilmar votou pelo arquivamento do inquérito, em que o ex-ministro da Fazenda era suspeito de envolvimento com a quebra do sigilo bancário do caseiro Francenildo Costa. A maioria dos magistrados acompanhou Gilmar Mendes e, dessa forma, o STF entendeu que não havia indícios de que Palocci tivesse participação na divulgação dos dados confidenciais do caseiro.

Advogado do deputado João Paulo Cunha (PT-SP), Alberto Toron acredita que a posse de Joaquim Barbosa na presidência antes da conclusão da Ação Penal 470 não vai afetar o andamento do processo. “No caso do Francenildo, por exemplo, funcionou muito bem. Espero que a concentração de poderes, que é absolutamente legal, não prejudique o julgamento”, comentou Toron.

O ministro Ayres Britto, que presidia a Corte, se aposentou na última sexta-feira. Conhecido por seu jeito sereno, ele apaziguou o plenário em várias situações, principalmente por conta de bate-bocas entre o relator do mensalão, Joaquim Barbosa, e o revisor, Ricardo Lewandowski. Os dois principais magistrados responsáveis pela condução da Ação Penal 470 divergiram sobre o fatiamento do processo, sobre a participação de alguns réus no esquema e até sobre o cronograma do julgamento.

Rusgas

Na última quarta-feira, depois do julgamento do mensalão, Ayres Britto falou sobre as rusgas entre os colegas e disse que as divergências não atrapalharão o desfecho do caso depois de sua aposentadoria. “A temperatura sobe eventualmente no plenário, mas nos bastidores, nos gabinetes, nos ambientes que frequentamos juntos, como solenidades e restaurantes, todos nós nos reconciliamos. Inclusive os dois”, disse Britto, em referência a Joaquim Barbosa e Lewandowski. “Todos os ministros se falam, cumprimentam-se, porque são ministros que exercitam o contraditório argumentativo, mas que separam o lado pessoal do lado profissional. O presidente tem que manter a taxa de cordialidade alta para que o processo flua”, aconselhou Ayres Britto.

Luiz Francisco Corrêa Barbosa, que é advogado do ex-deputado Roberto Jefferson, lembra que Barbosa tem “estilo muito diferente dos outros ministros”, mas ele acredita que os atritos e bate-bocas constantemente protagonizados no plenário do Supremo não vão afetar a conclusão do julgamento. “Acho que, ao assumir a presidência, ele mesmo vai se policiar. De qualquer forma, as fricções entre os ministros não interferem no resultado”, acrescenta.

Expectativa na Corte

Apesar de os advogados acreditarem que não haverá alterações no andamento do processo do mensalão, há expectativa sobre como será a postura do ministro Joaquim Barbosa na presidência, uma vez que o magistrado é conhecido por, muitas vezes, se exaltar ao defender um ponto de vista. “Já percebemos que o ministro Joaquim Barbosa tem nervos à flor da pele. Ou ele se tempera ou ele terá uma gestão muito ruim à frente do Supremo, que é o que a gente não deseja, não só pelos réus da Ação Penal 470, mas por todos os jurisdicionados do Brasil”, explicou o advogado do ex-presidente do PT José Genoino, Luiz Fernando Pacheco. Ele acredita, entretanto, que Barbosa agirá de forma mais diplomática à frente da Corte. “Creio que ele terá postura equilibrada e que contará com a ajuda e admoestação dos próprios colegas se eventualmente vier a extrapolar os limites a sua função.”

Já o ministro Marco Aurélio Mello demonstrou preocupação quanto ao estilo de Joaquim Barbosa. “Deus queira que ele entenda que o presidente coordena, e não enfia goela abaixo o quer que seja. Não estamos ali para o relator colocar a matéria e sermos vaquinhas de presépio para dizer amém”, disse o ministro na semana passada. Em uma viagem recente a Aracaju para participar de um encontro da magistratura, Joaquim Barbosa garantiu que nada mudará no julgamento.

Prisões

Como durante o recesso judiciário o presidente fica responsável pelas decisões urgentes do Supremo, a defesa de alguns réus chegou a temer que Joaquim Barbosa deliberasse sozinho a respeito de um novo pedido de prisão. Advogado de Marcos Valério, Marcelo Leonardo não acredita nessa possibilidade. “Agora mesmo nesta fase, como relator, ele poderia tomar decisões monocráticas, como fez no caso dos passaportes. Mas a tradição do tribunal e a jurisprudência do Supremo, que é seguida pelo Judiciário, é no sentido de que a execução só começa depois do trânsito em julgado”, explica Marcelo Leonardo.

O criminalista Nabor Bulhões cita outra possibilidade de conjuntura do tribunal durante o mensalão. Ele lembra que o ministro Joaquim Barbosa poderia passar a presidência para o ministro Ricardo Lewandowski, novo vice-presidente, ou para o decano, Celso de Mello, enquanto estivesse relatando o processo em plenário. “Isso pode acontecer, quando ele for relatar um embargo, por exemplo. Poderia passar a presidência ao vice. O relator precisa de um presidente para tomar os votos, para mediar”, explica o criminalista. Ele lembra que isso ocorre com frequência no Superior Tribunal de Justiça (STJ), nos casos em que o presidente acumula também a relatoria.

Fonte: Correio Braziliense

'Impunidade sofreu tranco’, diz Ayres Britto sobre mensalão

0 ministro Ayres Britto, que presidiu o julgamento do mensalão, diz que o STF foi corajoso ao vedar atitudes antijurídicas. Em entrevista a Valdo Cruz e Felipe Seligman, ele afirma que o PT e o PSDB "perderam o que os gregos chamam de Deus dentro da gente, entusiasmo."

A vida começa aos 70

Entrevista: Ayres Brito

Ayres Britto se aposenta e colhe os louros do julgamento do mensalão

Valdo Cruz, Felipe Seligman

RESUMO "A impunidade no Brasil sofreu um duro revés, um tranco", diz Ayres Britto, que presidiu o STF durante o julgamento do mensalão. O ministro, que hoje completa 70 anos, aposentando-se compulsoriamente, comenta o processo e suas convicções filosóficas, como o vegetarianismo e a meditação diária.

"Em estado contemplativo", revela o ministro Carlos Ayres Britto em entrevista exclusiva à Folha, "eu observo coisas interessantíssimas". Uma delas, diz, "é que nenhum pássaro carnívoro canta. Nunca vi ninguém dizer isso. Os pássaros carnívoros, corujas, águias, falcões, ou crocitam, ou piam, ou grasnam, nenhum deles canta". E completa: "Todos os animais herbívoros, mesmo os mastodontes, elefantes, por exemplo, nenhum agride."

Quem ouvisse apenas essa conversa sobre passarinhos e animais herbívoros poderia imaginar que não se tratava do mesmo Ayres Britto que presidiu o Supremo Tribunal Federal nos últimos sete meses, do qual se afasta ao completar hoje 70 anos de idade, limite para a aposentadoria compulsória.

Foi, porém, da condição de herbívoro -ou melhor, de vegetariano- que tirou forças para contemplar e conduzir uma "coisa interessantíssima" a que assistiu de camarote, na mais alta cadeira da mais alta corte do país: o maior julgamento da história do Supremo, o do mensalão, um dos maiores escândalos da era republicana.

Os últimos três meses, marcados por tensões e explosões no plenário, foram o auge da carreira do pacato Britto, a quem coube apaziguar os ânimos das aves carnívoras -advogados, réus, testemunhas, ministros- que crocitavam, piavam, grasnavam ao seu redor.

Autor de seis livros de poesia, ele diz conciliar "atenção e descontração" em suas meditações diárias, que infundem uma boa dose de espiritualismo na rigidez habitual da ciência jurídica. É mais fácil vê-lo citar místicos indianos como Krishnamurti e Osho do que juristas canônicos.

Para explicar os conflitos no tribunal, recorre a frases como "sem o eclipse do ego, ninguém se ilumina". Em sua visão de mundo (ou "mundivisão", como prefere), é preciso "expulsar de si o ego" para que o espaço dentro de você seja "preenchido pelo universo, pelo Cosmos, pela existência, que outros preferem dizer por Deus".

Carlos Augusto Ayres de Freitas Britto recebeu a Folha na última segunda-feira (12), em seu gabinete. Já com ar de saudosismo, foi até a janela, que dá para a praça dos Três Poderes, e elogiou a "linda vista", da qual desfrutou nos sete meses em que presidiu o tribunal, ao qual chegou há nove anos, por indicação do ex-presidente Lula.

Durante a entrevista, tomou água e café. Só interrompeu a conversa para atender uma ligação do relator Joaquim Barbosa, que o informou da inversão da pauta do dia: em vez do núcleo financeiro, como estava previsto, Barbosa decidiu começar a semana fixando as penas do núcleo político do mensalão. A surpresa voltou a acirrar os já inflamados ânimos entre o relator e o revisor do processo, Ricardo Lewandowski.

Horas depois, Ayres Britto acompanharia o voto de Joaquim Barbosa e ajudava a fixar a pena do ex-ministro José Dirceu (Casa Civil) em dez anos e dez meses, o que deve custar ao petista pelo menos um ano e nove meses na prisão.

Foi sua penúltima sessão no comando do julgamento do mensalão, que não tem data para terminar, mas já condenou 25 réus, entre deputados e ex-deputados, empresários e ex-ministros, por crimes como corrupção, formação de quadrilha e lavagem de dinheiro. Ele faz uma avaliação realista e entusiasmada do resultado.

"Eu não posso dizer que a impunidade está com os dias contados, eu estaria dourando a pílula, sendo ufanista. Agora, diria que a impunidade sofreu um duro revés, um tranco", afirmou. Em sua opinião, o Supremo está "quebrando paradigmas ultrapassados", exercendo a "sabedoria da coragem, do desassombro, para vedar comportamentos antijurídicos".

Nascido em 1942, na pequena Propriá (SE), filho de um juiz e de uma professora de francês, Britto sonhava em ser jogador de futebol profissional. Acabou na profissão do pai e virou poeta nas horas vagas, tendo publicado livros como "Ópera do Silêncio" e "Varal de Borboletras" (sim, "borboletras").

Casado, pai de cinco filhos, ele diz não querer seguir a carreira política: seria um retrocesso para quem já militou no PT por 18 anos e chegou a tentar uma vaga na Câmara dos Deputados. Foi com o amargo "gosto de jiló, de mandioca roxa ou de berinjela crua", como disse recentemente, que ele puniu inclusive antigos colegas de partido, como José Dirceu e José Genoino. E recorre novamente à sua formação eclética para resumir sua visão tanto sobre o PT como o PSDB: "Eles perderam o que os gregos chamam de Deus dentro da gente, entusiasmo".

Na segunda parte da conversa de quase duas horas (veja em folha.com/ilustrissima), Britto comentou questões jurídicas como o aborto e descriminalização das drogas (para a qual afirma ter uma "tendência, não ponto de vista formado"). Também falou da rotina de meditações e pequenos prazeres, como tocar MPB ao violão -e cantar, presume-se.

Pois foi ele quem disse: é "como se a natureza dissesse "só tem direito de cantar se for herbívoro"".

"No olhar de um herbívoro, não tem chispa, não tem estresse. Todos os carnívoros são estressados no olhar."

Folha - Quando foi sua iniciação no campo da meditação?

Carlos Ayres Britto - De uns 20 anos para cá, tanto a meditação quanto o cardápio vegetariano. Eu tinha em torno de 50 anos, um pouco antes, até.

Como o sr. se converteu?

Eu recebi influências positivas, de, por exemplo, [Jiddu] Krishnamurti [1895-1986, guru indiano], Osho [Rajneesh, 1931-90, místico indiano], Eva Pierrakos [1915-79, médium austríaca], Eckhart Tolle [pseudônimo de Urich Leonard Tolle, escritor espiritualista nascido em 1948], autor do livro "O Poder do Agora", e a pessoa que mais me influenciou, Heráclito [de Éfeso, c. 540-c. 480 a.C., pré-socrático que elegeu o fogo e a permanente transformação como princípio da ordem universal]. Depois, de uns 12 anos para cá, comecei a me interessar por física quântica, e ela me pareceu uma confirmação de tudo o que os espiritualistas afirmam. A física quântica, sobretudo os escritos de Dannah Zohar [especializada em aconselhamento espiritual e profissional]. Venho lendo os livros dessa mulher, uma americana que escreveu uma trilogia maravilhosa: "O Ser Quântico", "A Sociedade Quântica" e "QS - Inteligência Espiritual". Também passei a me interessar muito por neurociência.

O sr. tinha religião?

Católica, só que, de 20 anos para cá, me tornei um espiritualista.

Houve um momento de transformação?

Foi meio gradativo. Fui abolindo carne, depois abolindo frango, depois aboli peixe.

Há países que reconhecem em suas leis os direitos dos animais de forma mais abrangente. Podemos chegar a isso?

É possível que haja uma consciência maior. Pelo menos nas técnicas de abate, mais humanizadas, isso já se observa hoje em dia. Por exemplo, vocês sabem que os frangos são criados sobre um tratamento hormonal intenso e sem possibilidade de dormir? Uma luz acesa em cima dele para ele ficar acordado, o frango de granja? Isso é de uma violência...

O sr. condena a forma como o gado é abatido?

Condeno. Tudo. Vou dizer uma coisa, é uma observação minha, não falei em lugar nenhum. Sou contemplativo. Não confundir atenção com contemplação. Atenção é um foco, uma centralização do sentido tão intensa, que o mais das vezes resvala para a tensão. A tensão está muito próxima da atenção. Eu sou um contemplativo, porque na contemplação você concilia atenção e descontração. Isso é fato. Quando você é contemplativo, você contempla essa água, o copo antes de beber. O toque da sua mão no cristal. Eu estou acordado, como quem está atento. Mas estou descontraído, como quem está dormindo.
Então, contemplação é isso, é a conciliação entre a atenção e a distração. É impressionante. É um descarrego, um êxtase. Como vivo em estado contemplativo, eu observo coisas interessantíssimas. Uma dessas coisas é que nenhum pássaro carnívoro canta. Nunca vi ninguém dizer isso.
Os pássaros carnívoros, corujas, águias, falcões, ou crocitam ou piam, ou grasnam, nenhum canta, como se a natureza dissesse: só tem direito de cantar se for herbívoro. E todos os animais herbívoros, mesmo os mastodontes, elefantes, por exemplo, nenhum agride. Eles não são ativos nem pró-ativos na agressão, são reativos. No olhar de um herbívoro não tem chispa, não tem estresse. Todos os carnívoros são estressados no olhar, todos.

Assim se dá com o ser humano?

Assim se dá com o ser humano.

Por que houve tamanha tensão entre o relator Joaquim Barbosa e o revisor Ricardo Lewandowski?

[Se responder] eu vou dar uma de psicólogo, prefiro ficar na objetividade. Eu quero deixar claro: fui presidente, mantive a taxa de cordialidade.

O ego prevaleceu no julgamento?

Não subscrevo suas palavras, de que foi o ego que deu as cartas.

Não digo que pautou, mas que se manifestou em vários momentos.

Os ministros do Supremo são seres humanos, suscetíveis a influências, a percalços existenciais. Ora sabemos administrar esses percalços com o consciente emocional no ponto, ora ele baixa um pouco de patamar. Mas não houve impasse, não houve pane. Tudo foi administrável. E não precisei, em nenhum momento, suspender a sessão para ver os ânimos refluírem. Quanto à questão de ego, ele prejudica a atuação não só de ministros do Supremo, mas de todo ser humano. Quando Sartre disse que o inferno é o outro, ele quis dizer que o outro, com sua diversidade, a sua mundividência, seu peculiar modo de conceber e praticar a vida, afeta o nosso ego. Então, podemos traduzir as palavras dele como "o inferno é outro" ou como "o inferno é o ego". Tenho dito para mim mesmo que, sem o eclipse do ego, ninguém se ilumina.

Como o sr. definiria a atuação do Ministério Público e a do relator Joaquim Barbosa no julgamento?

Acho que a história vai registrar que [Roberto] Gurgel e Joaquim Barbosa foram médicos-legistas na autópsia dos fatos delituosos. Eles tiveram merecimento extraordinário para reconstituir com fidedignidade os fatos em sua materialidade. E o "link" entre esses fatos e respectivos autores e partícipes.
Eu só vejo por esse prisma técnico. Joaquim Barbosa, transido de dor [nas costas], um homem "baleado", em linguagem coloquial, a tantos meses, conseguiu levar a termo um processo com quase 600 mil páginas, 600 testemunhas, 40 réus no ponto de partida, sete crimes teoricamente graves e imbricados no mais das vezes.

O sr. chegou a pensar em suspender as sessões?

Pensei, houve um momento em que pensei.

Chegamos a ter ofensas pessoais.

Mas no limite palatável.

Mas nunca houve um julgamento com clima tão tenso, às vezes com atritos tão fortes.
É que esse julgamento é peculiaríssimo. Quando dizem que o Supremo está tomando decisões novas, eu digo que os fatos é que são novos, o imbricamento é que novo, o gigantismo da causa é que é novo, é inédito. O Supremo Tribunal Federal está produzindo decisões afeiçoadas ao ineditismo da causa.

Advogados reclamam da introdução de novos conceitos como a teoria do domínio do fato [segundo a qual autor de um crime não é só quem o executa, mas também quem detém o poder de decidir e planejar a sua realização].

Assim como o dançarino, que se disponibiliza de corpo e alma para a dança -chega o momento em que se funde com ela, e você já não sabe quem é o dançarino e quem é a dança, é uma coisa só-, o intérprete do dispositivo jurídico pode, também, numa relação de profunda identidade e empatia, se fundir com esse dispositivo. Aí você compõe uma unidade. Você é um com o dispositivo, e o dispositivo é um com você.

E isso não é invencionice, decola de um juízo de Einstein, que em 1905, físico quântico que era, cunhou uma expressão célebre: "efeito do observador". Ele percebeu que o observador desencadeava reações no objeto observado.

Ele disse que o sujeito cognoscente, em alguma medida, faz o objeto cognoscível, a depender do grau da intensidade interacional entre eles. Claro que quando você joga teoria quântica para a teoria jurídica, se expõe a uma crítica mordaz. O sujeito diz: "Mas isso não é ciência jurídica".

O julgamento também é inédito pelo desfecho, com políticos condenados à prisão em regime fechado?

Sabe por que está sendo inédito? Porque vocês esquecem, a sociedade esquece, [mas] nós, ministros, não esquecemos. Isso vem num crescendo, só que agora é no campo penal. No campo científico, liberamos o uso das células tronco embrionárias. No dos costumes, decidimos em prol da homoafetividade, da interrupção da gravidez de feto anencéfalo, no ético cortamos na própria carne proibindo o nepotismo no Judiciário. No campo político, afirmamos a Lei da Ficha Limpa. Isso é um crescendo, o Supremo vem tomando decisões que infletem sobre a cultura do povo brasileiro. E agora chegou o campo penal.

O Brasil muda?

Não se pode dizer que muda, sinaliza mudanças. Há um vislumbre de mudanças. Ninguém pode garantir nada. Agora, há uma sinalização. Mas a decisão não tem nada a ver com reverência à opinião pública, com submissão à opinião pública, com uma postura de cortejamento à opinião pública.

Os políticos terão mais cuidado, com o risco de irem para a prisão?

Se respondesse sim, estaria fazendo um corte abrupto, radical, de que essa decisão é, sim, um divisor de águas. Não quero ser categórico. Eu digo que essa decisão do Supremo vem num crescendo, que agora alcança o plano criminal. Sinaliza uma nova época, de mais qualidade na vida política. Eu não posso dizer que a impunidade está com os dias contados, eu estaria dourando a pílula, sendo ufanista, não posso dizer isso. Agora, eu diria que a impunidade sofreu um duro revés, um tranco, por efeito dessa decisão.

Este é o julgamento de um partido?

Na minha opinião, não tem nada a ver com julgamento de um partido. Não é o julgamento do PT, são réus, que alguns ocuparam cargos de direção no PT.

O sr. foi um dos fundadores do PT?

Sabe que não fui? Fazia conferências em aulas e congressos, em seminários, e advogava para coletividades. Só entrei mesmo no PT acho que em 1988, não fui fundador. Passei lá quase 18 anos.

O sr. costuma dizer que é página virada, mas, olhando no que o PT se transformou ao chegar ao poder, isso de certa forma o entristece?

É interessante. A resposta não seria "me entristece". Vou dizer por quê. Eu vejo a vida por um prisma muito do dinamismo, heracliticamente, meu filósofo preferido. Veja o que aconteceu: qual dos dois partidos que encarnaram a resistência ao regime de exceção [1964-85]? São, hoje, o PSDB e o PT. Esses dois, que encarnaram a resistência, foram premiados, chegaram ao poder. O primeiro, por intermédio de Fernando Henrique. O que aconteceu com esse partido, que teve origem no MDB, no PMDB? Foi perdendo um pouquinho do elã, do entusiasmo na sua militância de esquerda. Aí, a sociedade disse: está na hora do outro. Qual foi o outro que encarnou a resistência? O PT. Então, vejo por um prisma do exaurimento de fases. A fase ideológica do PSDB se exauriu, a do PT também se exauriu. Não de todo, não podemos ser injustos, porque o PT continua com quadros muito bons. Um desses quadros chegou a escrever um artigo a favor do Supremo, o Tarso Genro [governador do RS]. Vejo isso como parte de um processo histórico previsível.

Os dois partidos se contaminaram?

Não vejo por esse prisma negativista. Eles perderam o que os gregos chamam de "Deus dentro da gente", entusiasmo. Aquele ímpeto depurador das instituições, aquela ânsia de voltar à democracia. Com o retorno à democracia, você chega à conclusão: foi mais fácil alcançar o objetivo do que preservá-lo. Às vezes você conquista uma mulher dos seus sonhos e não sabe manter o amor dela. Isso é um processo histórico.

Alguns ministros me disseram, reservadamente, terem recebido reclamações, cobranças, de que, indicados pelo ex-presidente Lula, acabaram traindo-o. O sr. acha que traiu Lula, que o indicou?

Em nenhum momento me senti assim. Ninguém nunca me cobrou, menos ainda o presidente Lula, ele nunca se acercou de mim, se aproximou de mim para cobrar, fazer queixa. Até porque, vamos convir, cargo de ministro não é cargo de confiança. Não é. Você não pode ser grato a quem nomeia com a toga. O modo de você, pelo contrário, de honrar a indicação é sendo independente, é transformar os pré-requisitos de investidura no cargo em requisitos de desempenho no cargo. Fui nomeado a partir de dois pré-requisitos, reputação ilibada e notável saber jurídico. Eu transformei isso, como me cabia, em requisitos de desempenho. Então, eu honrei minha nomeação.

Dos dez ministros no julgamento, sete foram nomeados por Lula ou por Dilma. Essa independência conta a favor deles? Os presidentes petistas erraram nas nomeações?

Isso honra os nomeantes. A nossa postura técnica, independente, isenta, desassombrada, é uma postura que honra os nomeantes. Não só os nomeados.

Apesar de membros do PT afirmarem que o julgamento foi político?

Sim, a despeito disso. Isso faz parte da liberdade de expressão. Esse tipo de queixa eu recebo como pura liberdade de expressão, aceito sem maiores queixas.

Como foram os três meses de julgamento? Sua rotina mudou?

Não mudou em nada. Continuei meditando todos os dias, tocando violão quase todos os dias. Eu apenas diminuí muito, o que foi ruim para mim, minhas saídas de casa para me deleitar com espetáculos públicos, teatro, música.

O vegetarianismo é um passo para a iluminação?

Não chegaria a isso, não. Agora, tudo tem uma lógica elementar. É claro que não vou explicar tudo pela lógica, porque o mundo do mistério existe e o mistério está fora da lógica convencional. Quando você olha para você e diz: "Não há ninguém dentro de mim, o meu corpo não está abrigando ninguém", quando você diz "eu sou um vazio", você enxota o ego. Mas não há vácuo na natureza. O que acontece? O vácuo vai ser preenchido pelo universo, pelo Cosmos, pela existência, outros preferem dizer por Deus. Expulse de si o ego que o espaço deixado por ele vai ser instantaneamente ocupado pela existência. Aí você dialoga com a existência, isso é elementar. Aí você tem um vislumbre do eterno, do definitivo, mais clarividente, você abre os poros da lógica, do seu cartesianismo, você vê o direito por um prisma novo. Agora, você paga um preço por isso. Qual é? Quando vê as coisas por um prisma totalmente novo, a sociedade não tem parâmetro para avaliar seu prisma diante do inédito para ela. Você é um antecipado, viu antes dela. O que ela faz, lhe desanca, lhe derruba, se não ela vai se sentir menor, inferiorizada, aturdida. O que ela faz, ela lhe desanca, você está errado, ou então você não é um cientista, você é um mistificador. A sociedade não tem parâmetro para analisar os antecipados no tempo. Veja a lógica das coisas, o tempo só pode se guiar por quem anda adiante dele. São os espiritualistas, os artistas, porque eles não têm preconceitos, pré-interpretações, pré-compreensões.

Como definiria os sete meses no comando do Supremo?

Uma honra muito grande, pela oportunidade de, a partir do Supremo, servir à sociedade brasileira. Só faz sentido exaltar a figura da presidência nessa perspectiva, do serviço da coletividade. Fora disso, não é viagem de alma, é viagem de ego.

E como resumiria os nove anos que passou no Supremo?

Diria o seguinte: Em tudo o que faço, já não faço questão de ser reconhecido. O que faço questão é de me reconhecer. Fui eu mesmo nessas questões. Não perdi minha essência, minha mundividência. Eu gravitei em torno dos valores que dão sentido, dão grandeza, dão propósito à existência individual e coletiva. Eu não perdi a viagem. A frase é essa.

Fonte: Ilustríssima  / Folha de S. Paulo

Deuses e demônios - Merval Pereira

A condenação do ex-ministro José Dirceu a uma pena que implica regime de prisão fechada desencadeou uma onda de protestos por parte dos seus seguidores que está revelando os instintos mais perversos de um grupo político radicalizado, que se vê de repente atingido por uma mancha moral de que dificilmente se livrará na História.

Além do território da internet, onde tudo é permitido e muitos espaços pagos para uma propaganda política ignóbil, lê-se na imprensa tradicional, que os petistas tentam desqualificar, mas à qual recorrem para dar legitimidade às suas teses, ora que é preciso rever a pena dada a Dirceu por corrupção ativa e formação de quadrilha porque nesse último item houve uma suposta divisão do plenário do STF, ora que os juízes do Supremo não têm estatura moral para condenar um herói nacional, que colocou a vida em risco na luta pela democracia.

Ou que a condenação de Dirceu, Genoino e Delúbio não significa que os poderosos estão sendo alcançados pela Justiça, pois eles não seriam tão poderosos assim. Fora a patética tentativa de transformar os membros do núcleo político petista em meros mequetrefes, ou simples ladrões sem intenções políticas de controlar o Congresso, é espantoso que tentem ainda agora, depois de mais de três meses em que foram revelados os detalhes do golpe armado de dentro do Palácio do Planalto, fazer de Dirceu um herói nacional, intocável por seu passado político de resistência à ditadura.

Um conhecido intelectual orgânico petista teve o desplante de escrever que enquanto Dirceu lutava contra a ditadura, os ministros do STF viviam suas vidas burguesas à sombra do governo ditatorial, seguindo uma vidinha medíocre que acabou levando-os ao Supremo. Outro, citando um artigo do historiador Keneth Maxwell, comparando o julgamento do mensalão ao dos inconfidentes pela Alçada criada por d. Maria, assumiu a absurda comparação como fato.

Maxwell escreveu que "os membros da Alçada estavam sujeitos a influências externas - em um caso, inclusive, pelo pagamento de um grande suborno em ouro. Ao final, Tiradentes foi sacrificado. E, se por acaso os processos da Alçada começam a lhe parecer estranhamente semelhantes com o mensalão, isso não deveria causar surpresa: de fato, são. Algumas coisas nunca mudam".

No espírito de endeusamento que começa a se revelar entre os petistas, podem querer comparar Dirceu a Tiradentes quando, como bem destacou o historiador José Murilo de Carvalho em recente entrevista ao Estado de S. Paulo, "o que está em julgamento no mensalão não é Tiradentes, mas dona Maria I, não são os rebeldes, mas a tradição absolutista da impunidade dos poderosos". Historiadores e intelectuais enviaram mensagens a Maxwell rebatendo a esdrúxula tese.

Com relação à condenação de Dirceu por formação de quadrilha, de fato houve quatro votos contrários - dos indefectíveis ministros Dias Toffolli e Lewandowski e mais as ministras Cármem Lúcia e Rosa Weber -, o que permitirá embargo infringente. Mas não houve uma divisão do plenário, e sim uma maioria condenatória.

As tentativas de desmoralizar o Supremo Tribunal Federal, de maneira institucional através de nota oficial do PT, ou de pronunciamentos de elementos isolados ligados ao partido, são demonstrações de que um movimento político de tendência totalitária, vendo-se denunciado em suas ações antidemocráticas, busca reverter o quadro negativo demonizando seus condenadores e endeusando os condenados.

Mais uma vez colocam os interesses partidários acima dos da democracia, e a reação causada pela condenação do "chefe da quadrilha" José Dirceu reforça apenas que ele era mesmo quem detinha "o domínio do fato", como parece dominar até este momento, sendo capaz de mobilizar seguidores para tentativa de desqualificar o Poder Judiciário do país.

O ministro Joaquim Barbosa não inovou, nem deu demonstração de não seguir a tradição, ao escolher o ministro Luiz Fux para saudá-lo em sua posse, em vez do decano ministro Celso de Mello. Não há regra, nem força de tradição, que faça relação direta entre o orador da posse do novo presidente ser o decano da corte. É uma escolha livre e pessoal do presidente.

Fonte: O Globo

Eterno enquanto dure - Eliane Cantanhêde

Com a saída de Ayres Britto e a chegada de Teori Zavascki, volta a discussão sobre o caráter vitalício do cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal. Se não se despedem voluntariamente antes -como já fizeram Nelson Jobim e Ellen Gracie-, eles são despejados compulsoriamente aos 70 anos.

É assim que o decano Celso de Mello e o peculiar Marco Aurélio jogaram a toga sobre os ombros aos 43 anos para se enfurnarem no Supremo por um quarto de século. O mundo dá voltas, a política brasileira faz piruetas e lá estão os dois sobrevivendo a Collor, Itamar, FHC e Lula -e convivendo com Dilma.

Dias Toffoli assumiu aos 41 anos e, sendo bom ou ruim, se quiser ou aguentar, poderá ficar lá até outubro de 2037, num total de 28 anos. Há dúvidas sobre o quanto isso é bom para o tribunal e para o próprio juiz. Tanto que o debate vai e volta.

Na Alemanha, na Itália e em Portugal, os ministros da alta corte têm mandato fixo. No sistema alemão, que Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa conhecem bem, esse mandato era de 12 anos e foi reduzido para nove, tempo razoável para função tão importante, sem reeleição e sem coincidência com a eleição presidencial.

É um critério bem melhor do que o corte de 70 anos. Para uns, idade muito avançada. Para outros, nem tanto.

Ayres Britto foi nomeado aos 60 e sai compulsoriamente por completar 70 hoje. Pelo "amor ao STF" e pelo vigor intelectual, poderia ficar uns bons anos a mais, mas dez anos lhe parecem de bom tamanho.

Britto chegou ao tribunal maduro (de ideias, de sabedoria, de experiência) e sai ainda cheio de vida e de projetos para além-toga. Vai continuar morando em Brasília, fazendo pareceres especiais, escrevendo poesia, lendo romances. E defendendo mandato fixo para o Supremo.

Como diz Cármen Lúcia, "vitaliciedade é coisa do Império, transitoriedade é própria da República".

Fonte: Folha de S. Paulo

Algodão entre cristais - Dora Kramer

Fácil não foi. Houve mesmo momentos em que o ministro Carlos Ayres Britto achou que não conseguiria cumprir o propósito de incluir o julgamento do processo do mensalão na agenda do Supremo Tribunal Federal durante sua breve presidência.

Seriam apenas sete meses, em função da aposentadoria compulsória aos 70 anos completados neste domingo, a respeito dos quais Ayres Britto começou a pensar desde o ano anterior.

Decidiu que se empenharia no exame da Ação Penal 470 ao juntar os fatos: o caso acontecera há sete anos, a denúncia havia sido recebida há quase cinco, a instrução terminara um ano antes, a prescrição de alguns crimes batia à porta do processo.

Não obstante as condições objetivas favoráveis, Ayres Britto sentia a atmosfera desfavorável e um obstáculo concreto a ser transposto: o revisor Ricardo Lewandowski dava indicações de que não liberaria seu parecer tão cedo.

Além disso, recebia ponderações de amigos de que talvez não fosse um bom negócio se envolver numa confusão desse tamanho em tão pouco tempo de presidência.

O tribunal paralisaria os trabalhos, viveria boa parte de sua gestão em função de um único processo e ainda receberia críticas por ter feito coincidir o julgamento com as eleições municipais.

Os argumentos não pareciam consistentes ao ministro Ayres Britto. A paralisia de outros processos seria um preço inevitável e as eleições fazem parte da rotina do país. O ministro quis antecipar o julgamento para maio, mas não conseguiu devido às resistências no colegiado.

Vencidas pouco a pouco em negociações prolongadas. Foram inúmeros encontros preparatórios até que no dia 6 de junho foi anunciada oficialmente a data do início do julgamento para dali a dois meses. Lewandowski e Antonio Dias Toffoli não foram à reunião, alegando outros compromissos.

Entre as poucas pessoas que apoiavam a empreitada estava a ex-ministra do STF Ellen Gracie. Presidente da corte quando a denúncia foi aceita, em 2007, ela telefonou para Ayres Britto para dar apoio e dizer que ele era a pessoa certa, no lugar certo.

A combinação de suavidade, persistência e firmeza faziam dele o perfil ideal para levar adiante o processo.

Ainda assim houve um momento, mais ou menos um mês antes de conseguir bater o martelo, em que o ministro viu a coisa feia e achou que não seria possível fazer o julgamento a tempo de evitar a prescrição de alguns crimes, tamanha era a pressão. Implícita, jamais explícita.

Ele perdeu a conta das vezes em que ouviu a pergunta "por que julgar?". À qual rebatia com um "por que não julgar?" que deixava o interlocutor sem resposta.

Olhando os últimos três meses no retrovisor o ministro evita qualquer crítica aos colegas, mas aponta que os desentendimentos entre eles foram responsáveis pelas situações mais difíceis que teve de enfrentar durante o julgamento. Principalmente quando as divergências resvalavam para o campo pessoal, beirando ao insulto.

Nessas ocasiões Ayres Britto via a coisa realmente feia – "um verdadeiro sarapatel de coruja", na expressão da Sergipe natal – e improvisava.

Quando era possível cuidava de elevar a "taxa de cordialidade" no plenário com alguma tirada poética, mas quando não havia jeito suspendia a sessão e promovia um entendimento informal que se traduzia na restauração da formalidade na volta dos ministros ao plenário.

Carlos Ayres Britto deixa o Supremo Tribunal Federal sem nostalgia – "tenho facilidade para virar a página", diz – e absolutamente tranquilo quanto ao dever cumprido pela corte.

Não vê sentido nas críticas de que o STF deixou de lado a ortodoxia jurídica para se comportar como tribunal de exceção.

"Heterodoxo foi o caso. A novidade não está no julgador, mas no processo julgado, na quantidade de réus, na gravidade dos crimes e na ousadia dos criminosos. O Supremo fez o que deveria ser feito."

Fonte: O Estado de S. Paulo

Britto, um homem de bem com a vida - Elio Gaspari

Foi-se embora do Supremo Tribunal Federal o ministro Carlos Ayres Britto. Ocupou a presidência da Casa por apenas sete meses e presidiu o maior julgamento de sua História, engrandecendo a Corte e o país. Sua maestria esteve na habilidade com que costurou em silêncio vaidades, conflitos e manobras. Em 2003, quando Lula nomeou-o para a Corte, para os leigos sua biografia resumia-se a um viés regionalista e pitoresco: era sergipano e poeta. Depois, soube-se que era também vegetariano. Antes de assumir a presidência do tribunal, ele fixou outra característica: seus votos indicavam um jurista convicto de que a Constituição tem um espírito. Num país onde a Carta é emendada como se fosse uma lista de compras, acreditar que há nela um indicador da alma da sociedade foi a maior das suas contribuições. Com esse entendimento, matou a Lei de Imprensa da ditadura com tamanho vigor que até hoje o Judiciário não digeriu direito seu voto.

Presidindo o julgamento do mensalão, deu um exemplo aos costumes nacionais mostrando que na política brasileira há espaço para a suavidade. Nunca elevou a voz, jamais acrescentou arestas a debates crispados. Num tribunal que passara pela presidência alegórica de Gilmar Mendes e pela irritadiça de Cezar Peluso, ele descalçava as meias sem tirar os sapatos. Britto aposentou-se dias depois da morte do mestre-sala Delegado, da Mangueira, outro campeão da suavidade. Na política, ecoou a serenidade de Tancredo Neves e Fernando Henrique Cardoso, dois mágicos, capazes de fazer com que as crises entrassem grandes e barulhentas em seus gabinetes e saíssem menores, em surdina.

De bem com a própria vida, Carlos Ayres Britto melhorou a dos outros.

Papai Noel. O doutor Vinicius Couto, presidente da Associação dos Servidores do Superior Tribunal de Justiça, avisa:

"Informamos aos associados e demais servidores que foi deferido no Conselho de Administração, nesta manhã, e por unanimidade, requerimento da ASSTJ solicitando que o feriado natalino e de final de ano fosse instituído para o período de 20 de dezembro a 6 de janeiro, conforme preceitua o inciso I do art. 62 da lei 5.010 de 20 de maio de 1996".

O STJ intitula-se "Tribunal da Cidadania", mas só seus cidadãos-servidores usufruem esse presente.

Isso dá cadeia. Uma parte do empresariado brasileiro está assustada com as sentenças do STF que mandaram para a cadeia diretores de bancos e de agências de publicidade. Entendem que a jurisprudência aplicada no caso das teias do mensalão cria um clima de insegurança para seus executivos.

Os doutores poderiam passar os olhos num manual oferecido na semana passada pelo governo americano às empresas que operam no exterior. Chama-se "A resource guide to the U.S. foreign corrupt practices act". Ele ensina as empresas a tomarem cuidado com contratos de consultoria, com pagamentos feitos em contas existentes em terceiros países e com mimos em geral. Mostra o risco que um empresário corre quando prefere não saber o que há por baixo do negócio.

O manual avisa que cada propina pode custar à empresa uma multa de até US$ 2 milhões. Diretores e funcionários arriscam canas de até 20 anos.

Feriadão. Para quem foi apanhado desprevenido no feriadão e gostaria de perder tempo com um grande livro. Está na rede "The last Lion" ("O último Leão - O defensor do reino", por US$ 19,99). É a biografia de Winston Churchill, do historiador americano William Manchester. Vai de 1940, quando o Leão assumiu o governo da Inglaterra, até 1965, quando morreu.

Manchester foi-se em 2004 e escreveu só uma parte do livro. A obra foi terminada, a seu pedido, pelo jornalista Paul Reid, que se baseou no seu roteiro e nas notas que deixou. No papel, é um cartapácio de 1.232 páginas, mas ninguém precisa se assustar. O primeiro capítulo, "O Leão caçado", com umas 120 páginas, é um magnífico retrato de Churchill, com sua obstinação, seus hábitos, charutos e bebidas. Entornava champanhe, conhaque e uísque, mas não chegava ao porre. Egocêntrico, não dava ordens verbais, tudo por escrito, para que ninguém pudesse falar em seu nome. Detalhista, mandou que se cuidasse dos bichos do zoológico, porque as bombas alemãs podiam soltá-los. Era cruel ("eu não desejo mal a Stanley Baldwin" - que ocupou o cargo de primeiro-ministro -, "mas teria sido melhor se ele não tivesse existido") e antiquado, dizia "Pérsia", jamais Irã, e, quando passaram a chamar a capital da Turquia de Ancara, insistia em dizer Angorá, pois não mudaria a designação dos gatos. Detestou "Cidadão Kane" e, depois que Frank Sinatra pegou em sua mão para festejá-lo, perguntou: "Quem é esse sujeito?"

Depois desse esplêndido retrato, sobra o gigante na Segunda Guerra, mas isso pode ficar para outro dia.

Os tablets do comissário Mercadante. O governo da Índia anunciou que distribuirá milhões de tabuletas Aakash para estudantes ao preço de US$ 21 por unidade. Trata-se de uma venda subsidiada, pois no mercado as peças custam até US$ 80.

Grande notícia para quem achava que não se conseguiria produzir computadores por menos de US$ 100. É verdade que essas tabuletas não podem ser chamadas de computadores, mas dão para o gasto dos projetos pedagógicos a que pretendem atender.

No Brasil, está em curso a seguinte gracinha: em fevereiro passado, o comissário Aloizio Mercadante anunciou que a Viúva compraria até 600 mil tablets para serem entregues a professores do ensino médio. O que eles fariam com os equipamentos, não se sabe, pois não havia projeto pedagógico para acompanhá-los. Nove meses depois, a Boa Senhora já comprometeu R$ 115 milhões para a compra de 380 mil tabuletas.

Eremildo, o idiota, fez a conta: cada uma sairá por R$ 302, ou US$ 150. Essa compra resulta de um pregão vencido por fornecedores que ofereceram quatro modelos, indo de R$ 277 a R$ 462. Tomando-se o preço do mercado indiano (US$ 80) e o mais baixo do pregão nacional (US$ 138), o cretino operou o Milagre de Simonsen. Brilhante economista e ministro da Fazenda de 1974 a 1979, Mario Henrique Simonsen enunciou uma lei segundo a qual, em certos casos, é preferível pagar a comissão para que se esqueça o projeto. Sem julgar o que houve na compra dos tablets, o cretino propõe o seguinte: reservam-se 10% dos R$ 115 milhões para despesas imprevistas. Sobram R$ 103,5 milhões, e gasta-se esse dinheiro comprando 647 mil tabuletas de US$ 80, em vez de 380 mil a US$ 150.

Mesmo sem saber o que fará com elas, a Viúva ganha mais 267 mil tabuletas, e, como sobraram os 10%, ficará todo mundo feliz.

Fonte: O Globo

Charge de Aroeira - presidentes

Fonte: O Dia: Aroeira

Maquiavel versão província - José de Souza Martins

No projeto de poder do PT, militantes julgaram lícito o ilegal em nome do que consideravam legítimo

O julgamento dos réus do mensalão nem faz a República mais republicana nem de fato põe fim à corrupção. O processo não toca no essencial, apenas no formal. Na despolitização endêmica que nos torna politicamente menores de idade, porque partidarizados, mas, de fato, não politizados, é pouco provável que em algum momento se chegue à raiz do problema. Ao senso comum a desinformação sugere que, na política, mais um bando de batedores de carteira tentou assenhorear-se do dinheiro público em proveito próprio.

Para compreender a questão é preciso voltar aos tempos do regime militar, que preferiu manter a formalidade da lei para meros fins rituais. Cassou políticos, expurgou o Parlamento, exilou dissidentes, prendeu adversários, censurou críticos, calou discordantes, torturou e matou. Remendou e manteve a Constituição. Adaptou leis, revogou as inconvenientes e manteve as convenientes. Quando isso não bastou, criou os decretos secretos. Desmoralizou a concepção de lei.

De vários modos, os inconvenientes ocultos das leis convenientes iam mostrando a cara, a lei como instrumento de violação de direitos. O legalismo ditatorial teve um efeito perverso: disseminou a convicção de que a lei era legal, mas não era legítima. Germe da concepção de que expropriar quem tem, para constituir o poder de quem não tem, é que é legítimo. Em nome do poder, comprar a consciência dos venais, também.

Com isso, o regime autoritário abriu uma fratura fatal em nossa realidade política. A ditadura foi combatida pela falta de legitimidade de suas leis, às quais eram atribuídas, com razão, todas as injustiças, sobretudo aquelas que vitimavam os pobres e desvalidos. Os longos anos do regime foram os do arrocho salarial, que abateu as condições de vida da classe trabalhadora e se tornou um dos fatores da grande transformação de mentalidade e de conduta política do operariado. Foram, também, os anos de transformação nas relações de trabalho no campo, com a disseminação do trabalho precário de boias-frias e clandestinos. Foram os anos do revigoramento do trabalho escravo na Amazônia. Estimativas indicam que, no mínimo, 200 mil peões escravizados trabalharam na derrubada da mata e na formação de pastagens naquela região. Foram os anos do amplo crescimento no número de cortiços e favelas em cidades como São Paulo. Foram os anos do indiscriminado e genocida contato com um grande número de populações indígenas isoladas, o que lhes acarretou degradação e desidentificação, como ocorreu com os crenacarores e os uaimiris-atroaris.

Não foi, portanto, estranha a multiplicação dos movimentos populares, motivados pela consciência de que o que era legal não era legítimo. Não se reconheciam nas leis do regime. A convicção popular apontava que, por trás de tudo, estava o dinheiro. Lembro um caboclo pobre na Amazônia explicando-me sua repulsa ao dinheiro: somando o valor das notas em circulação chegava ele ao 666 apocalíptico da Besta-Fera. O dinheiro e Satanás eram face e contraface da mesma coisa.

Nesse meio, a pedagogia política dos movimentos sociais acabaria fundada na doutrina da legitimidade contra a legalidade. Uma articulada cultura política de fundo místico se constituiu e se difundiu. A política transitava agora no âmbito do que o historiador Edward Thompson chamou de economia moral, a mesma que movera o comportamento coletivo na Revolução Francesa. Nos grupos populares foi difícil aceitar que mesmo a política partidária, resultante da distensão e da abertura, fosse uma alternativa legítima de expressão das carências sociais.

Boa parte dos que aderiram ao Partido dos Trabalhadores, nesses grupos, a ele chegaram divididos quanto aos limites de transigência do partido com o Estado e as leis. Todos lembram que o PT votou contra a Constituição de 1988, mas a assinou. Essa ambiguidade custaria ao partido o distanciamento em relação ao poder e a crescente consciência de que para chegar ao governo teria que pagar um preço moral: a revogação de seu veto ao capitalismo e às leis que no entender de muitos de seus membros eram apenas instrumentos da iniquidade social.

O PT chegou à Presidência em nome de uma ambiguidade política fundante, a dessa cultura da legitimidade contra a legalidade. Nos primeiros dias do governo Lula, um conspícuo representante dos setores religiosos do PT deixou claro que o partido chegara ao governo, mas ainda não conquistara o poder. O País já não tinha um projeto de nação. Mas o PT tinha um projeto de poder. Essas fraturas demarcarão a tortuosa trajetória do partido até os autos do processo judicial e o recinto da Suprema Corte. Houve militantes que julgaram lícito o ilegal em nome do que consideravam legítimo, o poder a ser conquistado e mantido. Maquiavel em versão de província. Enveredaram pelo caminho do que à luz da lei é corrupção, supondo que não o seria se em nome da legitimidade da revolução, na conquista da equivocada eternidade do poder.

José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP, autor, entre outros, de A Política do Brasil Lúmpen, Místico (CONTEXTO)

Fonte: Aliás / O Estado de S. Paulo