0 ministro Ayres
Britto, que presidiu o julgamento do mensalão, diz que o STF foi corajoso ao
vedar atitudes antijurídicas. Em entrevista a Valdo Cruz e Felipe Seligman, ele
afirma que o PT e o PSDB "perderam o que os gregos chamam de Deus dentro
da gente, entusiasmo."
A vida começa aos
70
Entrevista: Ayres Brito
Ayres Britto se aposenta e colhe os louros do julgamento do mensalão
Valdo Cruz, Felipe Seligman
RESUMO "A impunidade no Brasil sofreu um duro revés, um tranco",
diz Ayres Britto, que presidiu o STF durante o julgamento do mensalão. O
ministro, que hoje completa 70 anos, aposentando-se compulsoriamente, comenta o
processo e suas convicções filosóficas, como o vegetarianismo e a meditação
diária.
"Em estado contemplativo", revela o ministro Carlos Ayres Britto
em entrevista exclusiva à Folha, "eu observo coisas interessantíssimas".
Uma delas, diz, "é que nenhum pássaro carnívoro canta. Nunca vi ninguém
dizer isso. Os pássaros carnívoros, corujas, águias, falcões, ou crocitam, ou
piam, ou grasnam, nenhum deles canta". E completa: "Todos os animais
herbívoros, mesmo os mastodontes, elefantes, por exemplo, nenhum agride."
Quem ouvisse apenas essa conversa sobre passarinhos e animais herbívoros
poderia imaginar que não se tratava do mesmo Ayres Britto que presidiu o
Supremo Tribunal Federal nos últimos sete meses, do qual se afasta ao completar
hoje 70 anos de idade, limite para a aposentadoria compulsória.
Foi, porém, da condição de herbívoro -ou melhor, de vegetariano- que tirou
forças para contemplar e conduzir uma "coisa interessantíssima" a que
assistiu de camarote, na mais alta cadeira da mais alta corte do país: o maior
julgamento da história do Supremo, o do mensalão, um dos maiores escândalos da
era republicana.
Os últimos três meses, marcados por tensões e explosões no plenário, foram o
auge da carreira do pacato Britto, a quem coube apaziguar os ânimos das aves
carnívoras -advogados, réus, testemunhas, ministros- que crocitavam, piavam,
grasnavam ao seu redor.
Autor de seis livros de poesia, ele diz conciliar "atenção e
descontração" em suas meditações diárias, que infundem uma boa dose de
espiritualismo na rigidez habitual da ciência jurídica. É mais fácil vê-lo
citar místicos indianos como Krishnamurti e Osho do que juristas canônicos.
Para explicar os conflitos no tribunal, recorre a frases como "sem o
eclipse do ego, ninguém se ilumina". Em sua visão de mundo (ou
"mundivisão", como prefere), é preciso "expulsar de si o
ego" para que o espaço dentro de você seja "preenchido pelo universo,
pelo Cosmos, pela existência, que outros preferem dizer por Deus".
Carlos Augusto Ayres de Freitas Britto recebeu a Folha na última
segunda-feira (12), em seu gabinete. Já com ar de saudosismo, foi até a janela,
que dá para a praça dos Três Poderes, e elogiou a "linda vista", da
qual desfrutou nos sete meses em que presidiu o tribunal, ao qual chegou há
nove anos, por indicação do ex-presidente Lula.
Durante a entrevista, tomou água e café. Só interrompeu a conversa para
atender uma ligação do relator Joaquim Barbosa, que o informou da inversão da
pauta do dia: em vez do núcleo financeiro, como estava previsto, Barbosa
decidiu começar a semana fixando as penas do núcleo político do mensalão. A
surpresa voltou a acirrar os já inflamados ânimos entre o relator e o revisor
do processo, Ricardo Lewandowski.
Horas depois, Ayres Britto acompanharia o voto de Joaquim Barbosa e ajudava
a fixar a pena do ex-ministro José Dirceu (Casa Civil) em dez anos e dez meses,
o que deve custar ao petista pelo menos um ano e nove meses na prisão.
Foi sua penúltima sessão no comando do julgamento do mensalão, que não tem
data para terminar, mas já condenou 25 réus, entre deputados e ex-deputados,
empresários e ex-ministros, por crimes como corrupção, formação de quadrilha e
lavagem de dinheiro. Ele faz uma avaliação realista e entusiasmada do
resultado.
"Eu não posso dizer que a impunidade está com os dias contados, eu
estaria dourando a pílula, sendo ufanista. Agora, diria que a impunidade sofreu
um duro revés, um tranco", afirmou. Em sua opinião, o Supremo está
"quebrando paradigmas ultrapassados", exercendo a "sabedoria da
coragem, do desassombro, para vedar comportamentos antijurídicos".
Nascido em 1942, na pequena Propriá (SE), filho de um juiz e de uma
professora de francês, Britto sonhava em ser jogador de futebol profissional.
Acabou na profissão do pai e virou poeta nas horas vagas, tendo publicado
livros como "Ópera do Silêncio" e "Varal de Borboletras"
(sim, "borboletras").
Casado, pai de cinco filhos, ele diz não querer seguir a carreira política:
seria um retrocesso para quem já militou no PT por 18 anos e chegou a tentar
uma vaga na Câmara dos Deputados. Foi com o amargo "gosto de jiló, de
mandioca roxa ou de berinjela crua", como disse recentemente, que ele
puniu inclusive antigos colegas de partido, como José Dirceu e José Genoino. E
recorre novamente à sua formação eclética para resumir sua visão tanto sobre o
PT como o PSDB: "Eles perderam o que os gregos chamam de Deus dentro da
gente, entusiasmo".
Na segunda parte da conversa de quase duas horas (veja em
folha.com/ilustrissima), Britto comentou questões jurídicas como o aborto e
descriminalização das drogas (para a qual afirma ter uma "tendência, não
ponto de vista formado"). Também falou da rotina de meditações e pequenos
prazeres, como tocar MPB ao violão -e cantar, presume-se.
Pois foi ele quem disse: é "como se a natureza dissesse "só tem
direito de cantar se for herbívoro"".
"No olhar de um herbívoro, não tem chispa, não tem estresse. Todos os
carnívoros são estressados no olhar."
Folha - Quando foi sua iniciação no campo da meditação?
Carlos Ayres Britto - De uns 20 anos para cá, tanto a meditação quanto o
cardápio vegetariano. Eu tinha em torno de 50 anos, um pouco antes, até.
Como o sr. se converteu?
Eu recebi influências positivas, de, por exemplo, [Jiddu] Krishnamurti
[1895-1986, guru indiano], Osho [Rajneesh, 1931-90, místico indiano], Eva
Pierrakos [1915-79, médium austríaca], Eckhart Tolle [pseudônimo de Urich
Leonard Tolle, escritor espiritualista nascido em 1948], autor do livro "O
Poder do Agora", e a pessoa que mais me influenciou, Heráclito [de Éfeso,
c. 540-c. 480 a.C., pré-socrático que elegeu o fogo e a permanente
transformação como princípio da ordem universal]. Depois, de uns 12 anos para cá, comecei a me interessar por física quântica,
e ela me pareceu uma confirmação de tudo o que os espiritualistas afirmam. A
física quântica, sobretudo os escritos de Dannah Zohar [especializada em
aconselhamento espiritual e profissional]. Venho lendo os livros dessa mulher,
uma americana que escreveu uma trilogia maravilhosa: "O Ser
Quântico", "A Sociedade Quântica" e "QS - Inteligência
Espiritual". Também passei a me interessar muito por neurociência.
O sr. tinha religião?
Católica, só que, de 20 anos para cá, me tornei um espiritualista.
Houve um momento de transformação?
Foi meio gradativo. Fui abolindo carne, depois abolindo frango, depois aboli
peixe.
Há países que reconhecem em suas leis os direitos dos animais de forma mais
abrangente. Podemos chegar a isso?
É possível que haja uma consciência maior. Pelo menos nas técnicas de abate,
mais humanizadas, isso já se observa hoje em dia. Por exemplo, vocês sabem que
os frangos são criados sobre um tratamento hormonal intenso e sem possibilidade
de dormir? Uma luz acesa em cima dele para ele ficar acordado, o frango de
granja? Isso é de uma violência...
O sr. condena a forma como o gado é abatido?
Condeno. Tudo. Vou dizer uma coisa, é uma observação minha, não falei em
lugar nenhum. Sou contemplativo. Não confundir atenção com contemplação. Atenção
é um foco, uma centralização do sentido tão intensa, que o mais das vezes
resvala para a tensão. A tensão está muito próxima da atenção. Eu sou um
contemplativo, porque na contemplação você concilia atenção e descontração.
Isso é fato. Quando você é contemplativo, você contempla essa água, o copo
antes de beber. O toque da sua mão no cristal. Eu estou acordado, como quem
está atento. Mas estou descontraído, como quem está dormindo.
Então, contemplação é isso, é a conciliação entre a atenção e a distração. É
impressionante. É um descarrego, um êxtase. Como vivo em estado contemplativo,
eu observo coisas interessantíssimas. Uma dessas coisas é que nenhum pássaro
carnívoro canta. Nunca vi ninguém dizer isso.
Os pássaros carnívoros, corujas, águias, falcões, ou crocitam ou piam, ou
grasnam, nenhum canta, como se a natureza dissesse: só tem direito de cantar se
for herbívoro. E todos os animais herbívoros, mesmo os mastodontes, elefantes, por
exemplo, nenhum agride. Eles não são ativos nem pró-ativos na agressão, são
reativos. No olhar de um herbívoro não tem chispa, não tem estresse. Todos os
carnívoros são estressados no olhar, todos.
Assim se dá com o ser humano?
Assim se dá com o ser humano.
Por que houve tamanha tensão entre o relator Joaquim Barbosa e o revisor
Ricardo Lewandowski?
[Se responder] eu vou dar uma de psicólogo, prefiro ficar na objetividade.
Eu quero deixar claro: fui presidente, mantive a taxa de cordialidade.
O ego prevaleceu no julgamento?
Não subscrevo suas palavras, de que foi o ego que deu as cartas.
Não digo que pautou, mas que se manifestou em vários momentos.
Os ministros do Supremo são seres humanos, suscetíveis a influências, a
percalços existenciais. Ora sabemos administrar esses percalços com o
consciente emocional no ponto, ora ele baixa um pouco de patamar. Mas não houve impasse, não houve pane. Tudo foi administrável. E não
precisei, em nenhum momento, suspender a sessão para ver os ânimos refluírem.
Quanto à questão de ego, ele prejudica a atuação não só de ministros do
Supremo, mas de todo ser humano. Quando Sartre disse que o inferno é o outro, ele quis dizer que o outro, com
sua diversidade, a sua mundividência, seu peculiar modo de conceber e praticar
a vida, afeta o nosso ego. Então, podemos traduzir as palavras dele como
"o inferno é outro" ou como "o inferno é o ego". Tenho dito
para mim mesmo que, sem o eclipse do ego, ninguém se ilumina.
Como o sr. definiria a atuação do Ministério Público e a do relator Joaquim
Barbosa no julgamento?
Acho que a história vai registrar que [Roberto] Gurgel e Joaquim Barbosa
foram médicos-legistas na autópsia dos fatos delituosos. Eles tiveram
merecimento extraordinário para reconstituir com fidedignidade os fatos em sua
materialidade. E o "link" entre esses fatos e respectivos autores e
partícipes.
Eu só vejo por esse prisma técnico. Joaquim Barbosa, transido de dor [nas
costas], um homem "baleado", em linguagem coloquial, a tantos meses,
conseguiu levar a termo um processo com quase 600 mil páginas, 600 testemunhas,
40 réus no ponto de partida, sete crimes teoricamente graves e imbricados no
mais das vezes.
O sr. chegou a pensar em suspender as sessões?
Pensei, houve um momento em que pensei.
Chegamos a ter ofensas pessoais.
Mas no limite palatável.
Mas nunca houve um julgamento com clima tão tenso, às vezes com atritos tão
fortes.
É que esse julgamento é peculiaríssimo. Quando dizem que o Supremo está
tomando decisões novas, eu digo que os fatos é que são novos, o imbricamento é
que novo, o gigantismo da causa é que é novo, é inédito. O Supremo Tribunal
Federal está produzindo decisões afeiçoadas ao ineditismo da causa.
Advogados reclamam da introdução de novos conceitos como a teoria do domínio
do fato [segundo a qual autor de um crime não é só quem o executa, mas também
quem detém o poder de decidir e planejar a sua realização].
Assim como o dançarino, que se disponibiliza de corpo e alma para a dança
-chega o momento em que se funde com ela, e você já não sabe quem é o dançarino
e quem é a dança, é uma coisa só-, o intérprete do dispositivo jurídico pode,
também, numa relação de profunda identidade e empatia, se fundir com esse
dispositivo. Aí você compõe uma unidade. Você é um com o dispositivo, e o
dispositivo é um com você.
E isso não é invencionice, decola de um juízo de Einstein, que em 1905,
físico quântico que era, cunhou uma expressão célebre: "efeito do
observador". Ele percebeu que o observador desencadeava reações no objeto
observado.
Ele disse que o sujeito cognoscente, em alguma medida, faz o objeto
cognoscível, a depender do grau da intensidade interacional entre eles. Claro
que quando você joga teoria quântica para a teoria jurídica, se expõe a uma
crítica mordaz. O sujeito diz: "Mas isso não é ciência jurídica".
O julgamento também é inédito pelo desfecho, com políticos condenados à
prisão em regime fechado?
Sabe por que está sendo inédito? Porque vocês esquecem, a sociedade esquece,
[mas] nós, ministros, não esquecemos. Isso vem num crescendo, só que agora é no
campo penal. No campo científico, liberamos o uso das células tronco
embrionárias. No dos costumes, decidimos em prol da homoafetividade, da
interrupção da gravidez de feto anencéfalo, no ético cortamos na própria carne
proibindo o nepotismo no Judiciário. No campo político, afirmamos a Lei da Ficha Limpa. Isso é um crescendo, o
Supremo vem tomando decisões que infletem sobre a cultura do povo brasileiro. E
agora chegou o campo penal.
O Brasil muda?
Não se pode dizer que muda, sinaliza mudanças. Há um vislumbre de mudanças.
Ninguém pode garantir nada. Agora, há uma sinalização. Mas a decisão não tem
nada a ver com reverência à opinião pública, com submissão à opinião pública,
com uma postura de cortejamento à opinião pública.
Os políticos terão mais cuidado, com o risco de irem para a prisão?
Se respondesse sim, estaria fazendo um corte abrupto, radical, de que essa
decisão é, sim, um divisor de águas. Não quero ser categórico. Eu digo que essa
decisão do Supremo vem num crescendo, que agora alcança o plano criminal.
Sinaliza uma nova época, de mais qualidade na vida política. Eu não posso dizer que a impunidade está com os dias contados, eu estaria
dourando a pílula, sendo ufanista, não posso dizer isso. Agora, eu diria que a
impunidade sofreu um duro revés, um tranco, por efeito dessa decisão.
Este é o julgamento de um partido?
Na minha opinião, não tem nada a ver com julgamento de um partido. Não é o
julgamento do PT, são réus, que alguns ocuparam cargos de direção no PT.
O sr. foi um dos fundadores do PT?
Sabe que não fui? Fazia conferências em aulas e congressos, em seminários, e
advogava para coletividades. Só entrei mesmo no PT acho que em 1988, não fui
fundador. Passei lá quase 18 anos.
O sr. costuma dizer que é página virada, mas, olhando no que o PT se
transformou ao chegar ao poder, isso de certa forma o entristece?
É interessante. A resposta não seria "me entristece". Vou dizer
por quê. Eu vejo a vida por um prisma muito do dinamismo, heracliticamente, meu
filósofo preferido. Veja o que aconteceu: qual dos dois partidos que encarnaram a resistência ao
regime de exceção [1964-85]? São, hoje, o PSDB e o PT. Esses dois, que
encarnaram a resistência, foram premiados, chegaram ao poder. O primeiro, por
intermédio de Fernando Henrique. O que aconteceu com esse partido, que teve
origem no MDB, no PMDB? Foi perdendo um pouquinho do elã, do entusiasmo na sua
militância de esquerda. Aí, a sociedade disse: está na hora do outro. Qual foi o outro que encarnou
a resistência? O PT. Então, vejo por um prisma do exaurimento de fases. A fase
ideológica do PSDB se exauriu, a do PT também se exauriu. Não de todo, não
podemos ser injustos, porque o PT continua com quadros muito bons. Um desses
quadros chegou a escrever um artigo a favor do Supremo, o Tarso Genro
[governador do RS]. Vejo isso como parte de um processo histórico previsível.
Os dois partidos se contaminaram?
Não vejo por esse prisma negativista. Eles perderam o que os gregos chamam
de "Deus dentro da gente", entusiasmo. Aquele ímpeto depurador das
instituições, aquela ânsia de voltar à democracia. Com o retorno à democracia,
você chega à conclusão: foi mais fácil alcançar o objetivo do que preservá-lo.
Às vezes você conquista uma mulher dos seus sonhos e não sabe manter o amor
dela. Isso é um processo histórico.
Alguns ministros me disseram, reservadamente, terem recebido reclamações,
cobranças, de que, indicados pelo ex-presidente Lula, acabaram traindo-o. O sr.
acha que traiu Lula, que o indicou?
Em nenhum momento me senti assim. Ninguém nunca me cobrou, menos ainda o
presidente Lula, ele nunca se acercou de mim, se aproximou de mim para cobrar,
fazer queixa. Até porque, vamos convir, cargo de ministro não é cargo de
confiança. Não é. Você não pode ser grato a quem nomeia com a toga. O modo de você, pelo
contrário, de honrar a indicação é sendo independente, é transformar os
pré-requisitos de investidura no cargo em requisitos de desempenho no cargo.
Fui nomeado a partir de dois pré-requisitos, reputação ilibada e notável saber
jurídico. Eu transformei isso, como me cabia, em requisitos de desempenho.
Então, eu honrei minha nomeação.
Dos dez ministros no julgamento, sete foram nomeados por Lula ou por Dilma.
Essa independência conta a favor deles? Os presidentes petistas erraram nas
nomeações?
Isso honra os nomeantes. A nossa postura técnica, independente, isenta,
desassombrada, é uma postura que honra os nomeantes. Não só os nomeados.
Apesar de membros do PT afirmarem que o julgamento foi político?
Sim, a despeito disso. Isso faz parte da liberdade de expressão. Esse tipo
de queixa eu recebo como pura liberdade de expressão, aceito sem maiores
queixas.
Como foram os três meses de julgamento? Sua rotina mudou?
Não mudou em nada. Continuei meditando todos os dias, tocando violão quase
todos os dias. Eu apenas diminuí muito, o que foi ruim para mim, minhas saídas
de casa para me deleitar com espetáculos públicos, teatro, música.
O vegetarianismo é um passo para a iluminação?
Não chegaria a isso, não. Agora, tudo tem uma lógica elementar. É claro que
não vou explicar tudo pela lógica, porque o mundo do mistério existe e o
mistério está fora da lógica convencional. Quando você olha para você e diz:
"Não há ninguém dentro de mim, o meu corpo não está abrigando ninguém",
quando você diz "eu sou um vazio", você enxota o ego. Mas não há vácuo na natureza. O que acontece? O vácuo vai ser preenchido
pelo universo, pelo Cosmos, pela existência, outros preferem dizer por Deus.
Expulse de si o ego que o espaço deixado por ele vai ser instantaneamente
ocupado pela existência. Aí você dialoga com a existência, isso é elementar. Aí
você tem um vislumbre do eterno, do definitivo, mais clarividente, você abre os
poros da lógica, do seu cartesianismo, você vê o direito por um prisma novo. Agora, você paga um preço por isso. Qual é? Quando vê as coisas por um
prisma totalmente novo, a sociedade não tem parâmetro para avaliar seu prisma
diante do inédito para ela. Você é um antecipado, viu antes dela. O que ela
faz, lhe desanca, lhe derruba, se não ela vai se sentir menor, inferiorizada,
aturdida. O que ela faz, ela lhe desanca, você está errado, ou então você não é
um cientista, você é um mistificador. A sociedade não tem parâmetro para analisar os antecipados no tempo. Veja a
lógica das coisas, o tempo só pode se guiar por quem anda adiante dele. São os
espiritualistas, os artistas, porque eles não têm preconceitos,
pré-interpretações, pré-compreensões.
Como definiria os sete meses no comando do Supremo?
Uma honra muito grande, pela oportunidade de, a partir do Supremo, servir à
sociedade brasileira. Só faz sentido exaltar a figura da presidência nessa
perspectiva, do serviço da coletividade. Fora disso, não é viagem de alma, é
viagem de ego.
E como resumiria os nove anos que passou no Supremo?
Diria o seguinte: Em tudo o que faço, já não faço questão de ser
reconhecido. O que faço questão é de me reconhecer. Fui eu mesmo nessas
questões. Não perdi minha essência, minha mundividência. Eu gravitei em torno dos valores que dão sentido, dão grandeza, dão
propósito à existência individual e coletiva. Eu não perdi a viagem. A frase é
essa.
Fonte: Ilustríssima /
Folha de S. Paulo