• Crise do estado já atingiu 12 hospitais da sua rede e 15 UPAs, além de ter atrasado salários
Paula Ferreira - O Globo
A crise financeira que atinge o estado tem revelado sua face mais cruel na área da saúde. Pelo menos 12 hospitais da rede já foram afetados, principalmente por falta de insumos e por atrasos no pagamento de pessoal. O resultado são cirurgias suspensas — algumas de alta complexidade, como de coração e transplantes de órgãos — e emergências em estado precário, em que médicos se veem sem ter como prestar socorro.
Até garis foram para dentro dos hospitais fazer a limpeza. Instaladas a partir de 2007, as UPAs, que também funcionam com pessoal terceirizado, enfrentam situação igualmente dramática. De acordo com queixas de pacientes e profissionais, 15 das 29 unidades administradas pelo estado estão no limite. Muitas se mantêm abertas com restrições de atendimento e outras já fecham as portas à noite, embora o projeto seja conhecido pelo funcionamento 24h.
Atingidas em cheio pela falta de recursos, essas unidades, criadas para desafogar os hospitais gerais, estão indo na contramão de seus princípios. Em meio a um surto de zika, funcionários das UPAs da Zona Sul sugeriam, no fim de semana, que os pacientes procurassem o Hospital Miguel Couto, do município.
A gravidade do quadro fica ainda mais explícita na conduta inédita do diretor do Hospital Albert Schweitzer, Dilson da Silva Pereira, que, no domingo, foi à delegacia deixar registrada a penúria da unidade em Realengo e se prevenir, para que médicos e enfermeiros não sejam responsabilizados por danos a pacientes. Segundo fontes do governo ouvidas pelo GLOBO, a pasta da Saúde fecha o ano sem R$ 1,3 bilhão para pagar despesas — ou seja, responde pela maior parte da dívida do estado com fornecedores, estimada em R$ 2 Do total, R$ 700 milhões são de repasses devidos a organizações sociais que assumiram a administração de unidades de saúde.
Ao mesmo tempo, o governo do estado tirou vários coelhos da cartola para pagar os salários dos servidores e a segunda parte do 13º. Mas, a considerar a confusão de ontem nas agências bancárias, o ano ainda não terminou. Para 2016, o cenário não parece muito melhor, e a Alerj aprovou medidas, como o aumento de ICMS, cujo objetivo principal é só minimizar a crise que se seguirá no ano que vem.
Grávidas enfrentam calvário
• Grávidas são recusadas na porta da unidade na Baixada que deixou de receber este ano R$ 187,7 milhões do estado
Com R$ 187,7 milhões em repasses atrasados, o Hospital da Mulher, na Baixada, foi ontem para o centro da crise financeira do estado. Grávidas que chegaram passando mal à unidade foram recusadas e orientadas a procurar postos de saúde e outros hospitais. O governo estadual deixou de repassar pelo menos R$ 1,3 bilhão para a saúde este ano.
O secretário estadual de Fazenda, Julio Bueno, diz que 2016 já começa com déficit de R$ 10 bi. A agonia de Leninha durou cerca de uma hora e meia. Sozinha, com seis meses de gestação, a jovem de 18 anos se contorcia de dor em frente ao Hospital da Mulher Heloneida Studart, em São João de Meriti, na manhã de ontem, sob um calor intenso. Após ter o atendimento negado na unidade, que amanheceu de portas fechadas devido à “falta de recursos” — como explicavam cartazes fixados na entrada —, a gestante sentou-se num canteiro para esperar que o mal-estar passasse. A informação repassada no local era a de que o hospital só atenderia pacientes em estado grave.
O governo estadual deve à Organização Social de Saúde Hospital Maternidade Therezinha de Jesus, que administra o Hospital da Mulher, R$ 187,7 milhões, segundo dados do Sistema de Informações Gerenciais do Estado (SIG).
— Estou com muita dor, uma dor que vai e volta. Não estou aguentando — disse a grávida, rompendo o silêncio que fazia para suportar as pontadas no abdômen.
A única assistência à gestante, que não quis dar seu nome completo, vinha de PMs que faziam ronda no hospital e, de tempos em tempos, levavam um copo d’água para Leninha. Durante os longos minutos em que a moradora de Nova Aurora, em Belford Roxo, esperou do lado de fora, ninguém saiu para lhe prestar atendimento. Tampouco foi oferecida uma ambulância para levá-la a outro hospital. A equipe do GLOBO chegou a entrar em contato com o Corpo de Bombeiros, que orientou a jovem a tentar novamente o atendimento e, se houvesse recusa, ligar para o 190, da PM, e prestar queixa por omissão de socorro.
Enquanto diversas gestantes davam com a cara na porta, o superintendente estadual de Gestão das Unidades Hospitalares, Rogério Casemiro da Silva, visitava o hospital para avaliar o cenário. Ao sair, ele deu uma informação totalmente diferente da que era passada pelos profissionais da unidade.
— Foi uma visita para ver como estão as condições do hospital. A emergência continua de portas abertas, o que é o mais importante. Acredito que o hospital esteja funcionando na sua normalidade — afirmou Silva.
Após ser perguntado sobre a situação de Leninha e outras grávidas que, apesar de estarem passando mal, tiveram atendimento negado, ele afirmou que desconhecia o fato:
— Vou ver com o diretor, porque desconheço essa situação. Vou falar com ele.
Minutos após a afirmação, o superintendente voltou com um funcionário, que retirou Leninha de dentro do carro da PM, onde esperava o policial que a levaria para outro hospital, e a conduziu para a emergência.
Pela manhã, outras grávidas passaram pelo mesmo calvário. Renata Marques, de 41 anos, com oito meses de gestação, chegou com contrações ao Hospital da Mulher. Deficiente física, a gestante, que não tem a perna esquerda, se locomovia com muletas e não foi atendida.
— A gente chega ao hospital e dá com a cara na porta. Estou passando mal, com pressão alta — disse. — Não sei o que fazer, porque o único dinheiro que eu tinha gastei para vir de ônibus até aqui.
Sete horas em busca de atendimento
Diretor do Sindicato dos Médicos, Ney Vallim acompanhou a visita do superintendente ao Hospital da Mulher e falou a respeito do quadro relatado por médicos e enfermeiros:
— O hospital reflete a situação crítica da saúde no Estado do Rio: falta de insumos básicos e de salário dos profissionais, embora eles permaneçam na unidade cumprindo sua carga horária.
Com nove meses de gravidez, Marcela Rodrigues fez duas viagens de ônibus em busca de atendimento. Desde as 7h, a gestante passou por postos de saúde e hospitais da região. Primeiro, foi ao PAM Abdon Gonçalves, em Jardim Meriti, onde fez um ultrassom e recebeu encaminhamento de urgência para uma cesariana no Hospital da Mulher. Com o pedido da médica em mãos, Marcela chegou lá quase às 12h e não foi atendida. Acompanhada de uma vizinha, ela saiu do local e pegou um ônibus para retornar ao PAM de Jardim Meriti.
— Sinto que já passou da hora de o bebê nascer. Só quero um hospital para ganhar meu filho logo — disse, apreensiva, durante o trajeto.
Depois de sacolejar no coletivo por 20 minutos, ela chegou ao PAM às 12h50m, onde esperou por quase uma hora em um corredor abarrotado e quente. Submetida a novo ultrassom, Marcela recebeu o diagnóstico de que seu bebê estava bem e foi orientada a procurar o Hospital da Mãe, em Mesquita, ou o Hospital do Morrinho, em Meriti, caso as dores se intensificassem.
— É revoltante. Estamos com nossas obrigações em dia, pagamos os impostos que devemos e, quando preciso, não tenho um hospital — disse Marcela, às 13h50m, quando voltava para casa sete horas após o início de sua peregrinação.
Em nota, a Secretaria estadual de Saúde disse que o Hospital da Mulher “está aberto, no entanto o atendimento está restrito aos casos mais graves”. Disse ainda que pacientes internadas estão sendo atendidas.