*Fernando
Henrique Cardoso, sociólogo, foi presidente da República, em sua rede social.
Política e cultura, segundo uma opção democrática, constitucionalista, reformista, plural.
*Fernando
Henrique Cardoso, sociólogo, foi presidente da República, em sua rede social.
A
consultoria Macroplan, do economista Claudio Porto, especializada em cenários
prospectivos, mapeou os dez fatores que vão influenciar os rumos do país na
próxima década no estudo recém lançado “O que será do Brasil pós-COVID: um
Ensaio Prospectivo até 2030”. O resultado é baseado em uma pesquisa junto a 139
pessoas qualificadas, entre executivos, gestores, acadêmicos e especialistas
dos setores privado, público e do 3º setor.
Os
“aceleradores de transformações” têm, na visão da Macroplan, um forte potencial
de impacto sobre Brasil nos próximos 10 anos. Se forem bem compreendidos e
manejados por lideranças racionais e progressistas, o país tem grande chance de
retomar uma rota saudável de recuperação sustentada.
Na
frente de quatro chefes de Estado, o presidente do Brasil disse algo do qual
recuou 24 horas depois. O fato mostra que não houve assessor, ministro,
qualquer pessoa no gabinete ou na estrutura do Palácio que o alertasse de que
ele não deveria ameaçar revelar uma lista de países supostamente cúmplices do
desmatamento, porque não teria capacidade de sustentar o que dizia. O episódio
mostra que o país não tem apenas um presidente irresponsável, tem uma
presidência irresponsável.
Em
qualquer governo há uma estrutura em torno do chefe de Estado que o alerta,
informa e assessora. O Brasil de Bolsonaro não tem isso. Ou é falta de
qualificação de quem está em torno dele ou é falta de coragem de enfrentar um
presidente temperamental. Não se sabe se aquela estultice estava escrita no
texto que ele lia ou se foi um improviso inconsequente. Mas o fato é que dois anos
depois de assumir a presidência ele continua desrespeitando o papel de
representante do país nos seus encontros internacionais.
A
Amazônia não está em chamas. O aquecimento global é uma ficção. O Brasil nunca
teve ditadura. A Covid é só uma gripezinha. Não há mais corrupção no governo.
Na
sexta-feira, o vice-presidente Hamilton Mourão deu uma nova contribuição à
galeria de mentiras oficiais. “No Brasil não existe racismo. Isso é uma coisa
que querem importar”, afirmou o general.
O
negacionismo é um dos pilares do bolsonarismo. O capitão e seus aliados travam
uma guerra permanente contra a verdade. Não se trata de discordar do
politicamente correto. A ordem da extrema direita é desacreditar os fatos, a
ciência e as instituições que fiscalizam o poder: imprensa, universidades,
organizações não governamentais.
Mourão
negou a existência do racismo no Dia da Consciência Negra, criado para lembrar
o que figuras como ele tentam esconder. Neste ano, a data foi banhada de
sangue. Na véspera do feriado, dois seguranças brancos espancaram um homem
negro até a morte numa filial do Carrefour em Porto Alegre.
Existe
uma realidade social indelével, que explode na nossa cara, principalmente
quando a exclusão, o preconceito e a violência contra os negros atingem níveis
absurdos
No
livro Escravidão, primeiro volume,
de Laurentino Gomes, Zumbi dos Palmares é descrito como um herói em construção.
Encurralado e morto no dia 20 de novembro de 1695, pelo capitão André Furtado
de Mendonça, estava acompanhado de 20 guerreiros, dos quais somente um foi
capturado vivo; os demais lutaram até a morte. “Decepada e salgada”, a cabeça
do líder quilombola foi enviada para Recife, onde ficou exposta no Pátio do
Carmo. Em carta ao rei de Portugal, o governador Mello e Castro registrou para
a história a origem do mito:
“Determinei
que pusessem sua cabeça em um poste no lugar mais público desta praça, para
satisfazer os ofendidos e injustamente queixosos e atemorizar os negros que
supersticiosamente julgavam Zumbi um imortal, para que entendessem que esta
empresa acabava de todo com os Palmares”.
Hoje,
quase ninguém sabe quem foi o ex-governador de Pernambuco Mello e Castro, seu
sobrenome é associado ao engenheiro, escritor, artista plástico e poeta
experimentalista português Ernesto Manuel Geraldes de Melo e Castro, que se
radicou em São Paulo, onde morreu em agosto passado . Zumbi, não; a data de sua
morte rivalizava com o Dia da Abolição, 13 de Maio de 1888, como marco da luta
dos negros no Brasil. O Treze de Maio foi feriado nacional durante toda a
República Velha; o 20 de novembro somente em 2011 foi oficializado como o Dia
Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, mas é considerado feriado somente no
Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Ceará, Pernambuco, Pará e Rondônia.
Longe
vá temor servil
Racismo
não existe. Tampouco desmatamento da Amazônia e, nesse caso, embaixadores de
países europeus puderam conferir ao vivo. Pantanal em chamas? Que é isso?
Começou a chover por lá. Quanto à pandemia, não passou de exagero da
Organização Mundial de Saúde. Foi uma gripezinha. Só os mais fracos, que mais
dia, menos dia, morreriam, de fato morreram.
E
antes de dar por findo o rol de fake news criadas pelos verdadeiros inimigos do
Brasil – sim, os extremistas de esquerda -, acrescente-se que ditadura militar,
por aqui, nunca houve. Nem assassinatos de inimigos de um regime que, no
limite, pode ser chamado de autoritário. Necessariamente forte na época em que
o comunismo ameaçava a civilização ocidental e cristã.
Resta
desmentir o apagão que deixou às escuras 13 dos 16 municípios do Amapá
esquecido durante 14 anos pelos governos do PT e de Michel Temer. Exagero
chamar de apagão o que ocorreu por lá. Um raio queimou duas subestações de
energia. Quem pode prever um raio e o local onde ele vai cair? De imediato, o governo
federal tomou as providências cabíveis.
Por
mais absurdo, Camargo faz sentido num governo negacionista e 'daltônico'
O
presidente Jair Bolsonaro e o vice Hamilton
Mourão têm posições divergentes numa série de questões, inclusive
na política externa e na importância das vacinas contra a covid-19, mas em algo
eles estão perfeitamente em sintonia: ambos dizem abertamente que não
há racismo no
Brasil. Nesse caso, o negacionismo não é exclusividade do presidente.
Ao se dizer “daltônico”, Bolsonaro admite que não consegue ver
a realidade, os fatos e estatísticas, mostrando, por exemplo, que 75% das
mortes violentas no país que governa são de pretos e pardos. Para disfarçar,
tira pilhas de fotos com o deputado Hélio Negrão. E Mourão, que já chocou ao falar em “malandragem dos africanos”, voltou
à carga. Quando? No dia da Consciência Negra, quando João Alberto foi
assassinado brutalmente, como George Floyd nos EUA, por... ser negro.
“Digo com toda a tranquilidade: não existe racismo no Brasil”, declarou Mourão, que chama negros de “pessoas de cor” e, depois de morar nos Estados Unidos, garante que “racismo tem é lá”, aqui “a sociedade é misturada”. Como não é ignorante, muito pelo contrário, deveria olhar os dados oficiais sobre desigualdade, escolas, prisões, violência policial, mercado de trabalho. O racismo é real, massacrante.
Casos
de grande comoção às vésperas de pleitos podem influenciar o voto
Casos
como o assassinato
de João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, por espancamento seguido de
asfixia numa loja do Carrefour em Porto Alegre,
ocorrido na última quinta-feira, quando acontecem próximos de eleições,
costumam ter o condão de virar tema das campanhas e mobilizar setores do
eleitorado.
O exemplo recente mais rumoroso vem dos Estados Unidos e tem muitos pontos de contato com o caso João Alberto: foi o assassinato de George Floyd por asfixia por policiais em Minneapolis, em maio. Lá como aqui, a ação dos assassinos foi filmada. A frase repetida por Floyd, “I can’t breath”, que significa “Eu não posso respirar”, virou mote de manifestações que cobriram o país.
O
movimento Black Lives Matter, ou Vidas Pretas Importam, surgido anos
antes, ganhou dimensão nacional e deu força a grupos locais, que tiveram grande
engajamento nas eleições presidenciais e peso real na vitória de
Joe Biden sobre Donald Trump em Estados como a Geórgia.
No
Brasil, os casos mais conhecidos de comoção nacional às vésperas de pleitos são
a greve da siderúrgica CSN em Volta Redonda, em 1988, e o massacre do
Carandiru, em 1992, em que 111 presos foram chacinados pela Polícia Militar
para conter uma rebelião.
Desigualdade
não explica assassinato de Beto Freitas em Porto Alegre
Só
na semana que vem será possível medir o impacto eleitoral do assassinato
de João Alberto Silveira Freitas pela milícia formalizada da rede
francesa Carrefour em Porto Alegre. No dia 9 de novembro de 1988 uma tropa do
Exército matou três operários que ocupavam a usina de Volta Redonda. Seis
dias depois, para surpresa geral, a petista Luiza
Erundina foi eleita para a Prefeitura de São Paulo.
Como
disse o vice-presidente, Hamilton Mourão, João Alberto, o Beto, era uma “pessoa
de cor”. Seu assassinato aconteceu no mesmo dia em que o Carrefour
anunciava na França sua disposição de boicotar os produtos brasileiros vindos
de áreas desmatadas do cerrado. Beleza, em Paris milita-se na defesa das
árvores enquanto em Porto Alegre mata-se gente.
Esse
tipo de comportamento é velho e disseminado. Em 2001 a milícia formalizada da
rede Carrefour prendeu duas
mulheres no Rio de Janeiro e entregou-as à milícia informal de traficantes de
Cidade de Deus. Foram espancadas, mas os bandidos não cumpriram a ameaça de
queimá-las vivas. Quando o caso foi denunciado, o embaixador francês era o
professor Alain Rouquié, um conhecido intelectual parisiense. Ele foi ao
governador Anthony Garotinho e reclamou do noticiário que prejudicava a imagem
internacional do Carrefour.
Ministros
já consideram 'inevitável' tentativa de Bolsonaro de contestar eleição se
perder em 2022
Autoridades
responsáveis pelo planejamento das próximas eleições já consideram inevitável
uma investida
do grupo político de Jair Bolsonaro contra o processo de votação em
2022. Ministros de tribunais superiores começaram a trabalhar para conter a
tentativa crescente de desacreditar esse sistema.
A
contestação sem provas da estrutura de votação no primeiro turno das eleições
municipais foi o sinal de que a orquestração começou. Ainda no domingo (15),
informações falsas sobre a segurança das urnas nasceram no submundo das redes e
foram abraçadas
por políticos da base radical do presidente.
A
semana terminou com um dos ataques mais intensos e infundados do próprio
Bolsonaro contra as eleições. "Fui roubado demais", disse o
presidente a apoiadores, na sexta (20), sobre a disputa que ele mesmo venceu em
2018. "Ninguém acredita nesse voto eletrônico", declarou.
'No Brasil não existe racismo', fala de Mourão, é a mais racista das frases
“No Brasil não existe racismo.” Essa é a mais
racista das frases entre nós. Seu autor
é um general, um dia eleito presidente do Clube Militar como reconhecimento
às suas manifestações extremistas. Com a elevação à liderança do radicalismo de
direita, no mesmo ano foi indicado pelo comando do Exército para completar a
candidatura de Jair Bolsonaro, assim chegando à mais alta condição atual de um
militar brasileiro —general-vice-presidente da República.
Considerar
que inexiste racismo no Brasil é dizer que toda a discriminação social
sofrida pela negritude, sua desvalorização remuneratória, a maior
vitimação nas ações policiais, a proporção maior na pobreza, e tanto mais,
compõem um tratamento
correto aplicado pelos brancos e merecido pelos negros. Em tal caso, o que
é racismo, raiz da violência mais disseminada no tempo e no planeta, seria
considerado o humanamente normal e o legalmente adequado para os negros. É o
que a sentença do general-vice proclama.
Nos
últimos anos, temos convivido com uma forma de poder em que se combinam a
anti-ideia, a obturação dos canais da percepção, a disfunção da experiência, a
recusa ao conhecimento e à compreensão. Não é exclusividade do Brasil, Trump e
metade dos Estados Unidos mostram-se com autenticidade, para engasgo dos que
jamais quiseram vê-los como são. Aqui, porém, chega a parecer que os últimos
anos cumprem programas perversos para exibir as cruezas da realidade.
Empresas
terceirizam responsabilidades para fugir da culpa, na Vale ou no Carrefour
Quando a
lama da Samarco matou 19 pessoas em Mariana, em 2015, a Vale disse:
"A Vale é apenas uma mera acionista da Samarco, sem nenhuma interferência
operacional na administração dessa companhia, de modo direto ou indireto,
próximo ou distante".
Era
verdade. A Vale tinha "responsabilidade limitada" por lambanças da
Samarco, embora essa limitação se torne mais e mais controversa. Já a
“responsabilidade social e ambiental” foi logo para o vinagre tinto de sangue.
O negócio era pegar a grana de acionista e terceirizar a imundície. Tanto era
esse o caso que, em 2019, a Vale largou centenas de pessoas no caminho da lama
da morte em Brumadinho.
Terceirizar
a imundície é um negócio, na contratação de empresas selvagens de segurança ou
de feitores que escravizam imigrantes costureiros de roupa de ricos, mas não
só. O
Carrefour terceirizou sua segurança para uma empresa
de policiais, propriedade ilegal. Um funcionário dessa Vector matou
João Alberto Freitas, aos 40 anos.
“Ah, essas empresas são quase todas assim”,
talvez de milícias. Sim. Então, bota a boca no trombone, chama a Lava Jato, se
vira. Para apoiar governo que sabota a democracia, faz propaganda do vírus,
queima floresta e insulta “viado” vocês têm tempo e disposição, certo?
O
governo tem de gastar, diz o seu líder, para ter seus projetos aprovados
Votos
custam dinheiro, muito dinheiro, no Congresso Nacional. Por isso o governo
precisa gastar para ampliar sua base e conseguir aprovação de projetos. Quem
diz isso é o líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR). Diz
em público, e suas falas têm sido noticiadas. Na terça-feira ele acusou órgãos
de controle de causar um “apagão das canetas”, impedindo a liberação de verbas
para obras de interesse de parlamentares. A discussão continuou e na
quinta-feira já se falava, em Brasília, de negociações com o Tribunal de Contas
da União. A ideia era obter autorização para empenhar recursos, neste fim de
ano, para investimentos em 2021. Tudo foi dito abertamente, como se fosse
normal e saudável, numa democracia, abrir o cofre em troca de apoio parlamentar.
Nenhum
sinal de hipocrisia, até aí. A propósito, a hipocrisia, repetia-se em outros
tempos, lembrando La Rochefoucauld, é a “homenagem que o vício presta à
virtude”. Pressupõe-se no hipócrita, portanto, alguma noção de virtude, assim
como algum respeito aos costumes valorizados numa sociedade. A fala aberta, sem
subterfúgios, seria um sinal ainda mais certo da reverência àqueles valores.
Será possível, no entanto, sustentar esse pressuposto no caso dos protestos
contra o “apagão das canetas”? É duvidoso. Os envolvidos podem ter simplesmente
usado em público, sem autocensura, a linguagem própria do seu meio e dos seus
costumes.
Demagogia
em conluio com utopia foi o erro de deputados e senadores eleitos em 1986
É
impossível fazer vista grossa para a crise que assola o País e a
responsabilidade que recai sobre a Constituição da República.
Exceto
raros ex-integrantes da Assembleia Nacional Constituinte, é opinião
generalizada que a oitava Carta Magna teve o prazo de validade ultrapassado.
Não porque pequeno grupo conspire para derrubá-la. A morte virá por falência
múltipla dos órgãos, decorrente de septicemia.
Poderoso
argumento utilizado contra a convocação de nova constituinte consiste no receio
da perda de direitos sociais, relacionados no Capítulo II do Título II, que
trata dos Direitos e Garantias Fundamentais.
Afinal,
o que é a Constituição, também denominada Lei Fundamental? Os especialistas na
matéria não costumam pôr-se de acordo acerca da correta definição. Pinto
Ferreira, após citar uma dezena, define-a como “conjunto de normas
convencionais ou jurídicas que, repousando na estrutura econômico-social e
ideológica da sociedade, determina de uma maneira fundamental e permanente o
ordenamento do Estado” (Da Constituição, Ed. José Konfino, 1956).
Poderia
ter dito apenas “conjunto de normas fundamentais que regem a organização do
Estado”.
As
definições convergem, todavia, na afirmação de que compete à Constituição
determinar regras fundamentais. Tudo o que não for fundamental pertence à
esfera da legislação ordinária. Assim o dizia o artigo 178 da longeva Carta
Imperial de 1824, que vigorou por 65 anos e recebeu emenda uma única vez: “É só
Constitucional o que diz respeito aos limites e atribuições dos respectivos
Poderes Políticos e aos Direitos Políticos e individuais dos cidadãos. Tudo o
que não for constitucional pode ser alterado, sem as formalidades requeridas,
pelas Legislaturas ordinárias”. A Constituição republicana de 1891 foi a que
mais se aproximou do salutar princípio. Daí ter durado 40 anos, com poucas
mudanças, feitas de uma só vez, em 3/9/1926.
De
início, Carrefour decretou o fechamento da unidade por um dia em respeito ao
morto. Não parece ter entendido o tamanho do estrago
"Quando
crimes se empilham, eles se tornam invisíveis", escreveu Bertolt Brecht às
vésperas da Segunda Guerra. O dramaturgo alemão referia-se a crimes do Terceiro
Reich que apenas pressentia. A extensão do horror só ficou explicitada quando
os campos de concentração foram escancarados. E fotografados. Naquele tempo, 75
anos atrás, o telefone celular ainda estava longe de fazer parte da mão humana.
Hoje tornou-se extensão do nosso existir, e a realidade parece só existir se
houver seu comprovante instantâneo, de preferência com imagem em movimento. Um
grande salto de engenhosidade, progresso tecnológico, totem de um futuro sem
fronteiras. Ficou faltando aprimorar o essencial: o próprio bípede humano,
ainda tão imperfeito e cego.
O
assassinato do cidadão negro João Alberto Silveira Freitas na garagem de um
supermercado Carrefour gaúcho, à noite, tinha tudo para permanecer obscurecido.
Só deixou de depender de versões dissonantes, querelas circunstanciais ou
imprecisas, porque alguém gravou a cena esclarecendo a natureza do crime pelo
celular. Assistimos assim a um assassinato a sangue quente, primitivo, sem a
intermediação sequer de uma arma. O homem negro já subjugado foi espancado na
cabeça e rosto até lhe faltar vida. Sua morte teve por testemunha a esposa
impedida de socorrê-lo, uma penca de seguranças e funcionários do Carrefour,
além da plateia global que foi se inteirando do fato. No chão da garagem
respingada de sangue, sobrou de João Alberto um solitário chinelo de dedo.
Não
foi, portanto, um crime invisível. Ou será que foi? Na pergunta está embutido o
horror maior: apesar de saberem que estavam sendo filmados, os dois matadores
profissionais (um PM e um segurança, ambos brancos) não interromperam o ato.
“Quando crimes se empilham, eles se tornam invisíveis”, repetiria Brecht sobre
o crime contra a raça negra que, de tanto sustentar a construção do Brasil, se
tornou invisível — mesmo quando visível.
Partidos
sem estratégia para o Brasil
Na mesma semana em que Donald Trump afirmou sua vitória contra Biden, dirigentes do PT comemoraram vitória nacional do partido nas eleições municipais. Sofrem da mesma doença: o negacionismo. Mas não são os únicos. Nos mesmos dias, outros comemoraram o fim do PT, negando duplamente a realidade: primeiro, porque este partido tem uma base sólida, está longe de acabar; segundo, porque estes que comemoram a derrota do PT, não têm vitória a comemorar, ao negar a verdadeira dimensão de nossa crise de falta de coesão e rumo, e não terem alternativa para o futuro do país.
O
PSOL que se apresenta como vencedor sobre o PT e os partidos conservadores, é
uma simpática novidade no nome e na sigla, mas não traz novo rumo para um
Brasil sintonizado com o futuro: eficiente na economia, justo na sociedade e
sustentável na natureza. Tem a mesma matriz ideológica do PT, sem o ônus de ter
passado pelo poder. É a mesma concepção negando as mudanças que ocorrem na
civilização industrial: os limites ecológicos ao crescimento, o esgotamento
fiscal do Estado, o reacionarismo do corporativismo, a globalização, a
instantaneidade nas comunicações, a elitização das classes trabalhadoras do
setor formal, a mudança no perfil da pirâmide etária, a robotização e a
inteligência artificial. A vitória fez bem ao cenário nacional do presente, mas
não aponta uma esperança para o futuro.
Os resultados do primeiro turno das
eleições municipais foram construídos nas Redes Sociais, nos Meios de
Comunicação, nos Movimentos Sociais e Suprapartidários da Sociedade Civil,
resultando na eleição de novas lideranças mais comprometidas com as agendas sociais,
culturais, econômicas , ambientais e comportamentais da Cidadania.
Segundo
os resultados da pesquisa do Instituto IDEIA, em parceria com a Revista Exame, realizada recentemente,
no período de 16 a 19 de novembro, 27% dos brasileiros ficaram indiferentes aos
resultados das eleições municipais realizadas no último 15 de novembro. Esta
indiferença está próxima ao nível de abstenção recorde de 23% registrado pelo
Tribunal Superior Eleitoral, refletindo no nível de satisfação do eleitorado:
os satisfeitos com a eleição somam apenas 41% e o nível de insatisfação
registrado é de 31%.
Quais são as causas e as
consequências desta indiferença e não participação da Cidadania no processo
político-eleitoral em curso, sendo o voto obrigatório?
Esta análise deve ser feita, para melhor conhecimento da nossa realidade
política e social. São questões a serem consideradas no caminho de construção
de uma alternativa política democrática para enfrentar os desafios eleitorais
de 2022.
Ao mesmo tempo, nesta eleição municipal houve um maior protagonismo dos movimentos sociais em defesa de uma efetiva participação política das mulheres, dos negros, dos indígenas, dos LGBT+, nas questões sociais e ambientais em geral, traduzido em uma renovação das Câmaras Legislativas e Prefeituras dos médios e grandes municípios, trazendo a voz rouca dos excluídos da Sociedade para o exercício do poder municipal. Ainda, neste cenário, há que considerar a eleição de lideranças religiosas, na maioria evangélicas, o que já vem ocorrendo no Brasil, há muitos anos.
Como
o bolsonarismo se reorganizará depois do fracasso nas urnas de 2020
Natália
Portinari e Naira Trindade, de Brasília, e Gustavo Schmitt e Guilherme Caetano
| Revista Época
SÃO PAULO - O sábado 14, um dia antes do primeiro turno das eleições municipais, foi quando o presidente Jair Bolsonaro caiu em si. Apesar de ter passado a última semana fazendo lives em prol dos candidatos que apoiaria no dia seguinte, já sabia que o desfecho que se desenhava não era promissor. Suas principais apostas, Celso Russomanno, em São Paulo, e Marcelo Crivella, no Rio de Janeiro, amargavam números desanimadores, segundo as últimas pesquisas. Sem muita modéstia, atrelou o mau resultado dos aliados a sua própria ausência da corrida eleitoral — já que suas lives se tornaram frequentes apenas às vésperas do pleito. Mas reconheceu estar preocupado mesmo com outra coisa: o desempenho de seu filho Carlos Bolsonaro, candidato à reeleição para vereador no Rio de Janeiro.
Não
se tratava, obviamente, do medo de que o zero dois não se elegesse. Carlos
tinha sido o vereador com mais votos em 2016, e sua recondução ao cargo estava
assegurada. O que deixava o presidente tenso era a possibilidade de sua votação
ser abaixo do esperado. Bolsonaro atingiu em setembro o maior índice de
aprovação numa pesquisa do Ibope desde que assumiu — 40% —, mas o respaldo dos
eleitores ao filho serviria como um termômetro atualizado da popularidade do
pai no reduto eleitoral da família. Abertas as urnas, ficou claro que os
temores do presidente tinham, sim, fundamento. Carlos, que o acompanhou em
carro aberto no dia da posse, acabou saindo menor do que entrou na campanha
municipal. Em 2016, obteve 106 mil votos. Neste ano, não passou de 71 mil, uma
queda de 33%. E, de quebra, o filho perdeu o posto de vereador mais votado da
cidade para Tarcísio Motta, do PSOL.
Esse
foi o pior recado do pleito, mas não o único. Russomanno, que contou com o
apoio expresso do presidente, largou na frente nas pesquisas. No começo da
campanha, isso encheu de esperança o Palácio do Planalto, que anseia fincar
raízes no reduto eleitoral de seu adversário, João Doria, governador de São
Paulo. Na tarde nublada de 3 de outubro, na Zona Sul de São Paulo, após um
evento de campanha de Russomanno, Fabio Wajngarten, secretário executivo da
Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom), era só otimismo. A bordo de
um jipe Mercedes preto, disse a ÉPOCA, sorridente: “Ele (Russomanno) já está eleito”.
E prosseguiu em sua análise: “De um lado, a esquerda está acabada por causa da
Lava Jato. De outro, tem o PSDB desgastado em São Paulo. Ninguém aguenta mais.
Foi assim em 2018”, apostou o secretário. Russomanno amargou o quarto lugar,
com apenas 560 mil votos (10,5% do total), enquanto o adversário do tucano
Bruno Covas no segundo turno será Guilherme Boulos, do PSOL — cenário que
configura dupla derrota para o presidente, que há dois anos venceu na capital
paulista com 60% dos votos.
Em todo o país, dos 44 candidatos que ganharam o aval do presidente, apenas nove se elegeram. Entre esses poucos sortudos não estão parentes de sobrenomes considerados ilustres no bolsonarismo, como o irmão da deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP). Ela tem 1 milhão de seguidores no Twitter e 2,2 milhões no Facebook. Ele atraiu apenas 12 mil votos, abaixo da linha de corte para conseguir uma vaga na Câmara Municipal de São Paulo. O pai de Zambelli, candidato a vice-prefeito em Mairiporã, no interior paulista, tampouco prosperou. Edson Salomão, líder do Movimento Conservador e aliado do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), o zero três, ficou de fora da Câmara de Vereadores de São Paulo. No Rio de Janeiro, Rogéria Bolsonaro, ex-mulher do presidente e mãe de seus três filhos mais velhos, não foi eleita, apesar do sobrenome e do empenho, principalmente de Carlos.
Causa
comoção observar o trabalho exasperado dos analistas políticos ao tentarem
encontrar, com base nos resultados das eleições municipais, o menor indício do
que o mundo nos reservará em 2022. Valendo-se da frieza dos números, é possível
aferir que os candidatos de Jair Bolsonaro se deram mal; que o PSL emergiu como
força política há dois anos, mas não conseguiu usar as eleições municipais para
ganhar capilaridade; que o PT se reduziu a um naco do que já foi, mesmo usando
R$ 200 milhões do fundo eleitoral; e que a esquerda se recupera do baque dos
últimos anos calcada em nomes mais jovens e descolados do lulismo sindical.
Para
além do que os números mostram, há a esperança de amplos setores da sociedade
de que o brasileiro tenha majoritariamente dado seu voto de confiança às forças
moderadas da política tradicional ao ir às urnas no domingo. Essa tese encontra
lastro no fato de partidos como PSD, DEM, MDB e PP terem abocanhado a maior
parte das prefeituras do país. Mas será mesmo que, na solidão da urna, o eleitor
fez uma seleção antiextremismo?
O voto municipal talvez seja o voto mais racional de um eleitor, em qualquer democracia do mundo. Estão em jogo os postos de saúde, as praças, o saneamento básico, o asfalto e a creche das crianças. Importam menos as ameaças do além, como o marxismo cultural e o comunismo, e mais a merenda da escola infantil. Os partidos e a coloração ideológica são colocados em segundo plano e prevalece o pragmatismo. Em Salvador, onde o petista Fernando Haddad teve 70% dos votos em 2018, ganhou em primeiro turno o candidato do DEM, Bruno Reis, numa clara aprovação à gestão municipal de ACM Neto, ainda que o PT tenha lançado uma candidata na cidade.
Todas as funções da alma estão perfeitas neste domingo.
Na
tarde - lembro - uma árvore parada,
A alma caminhava para os montes,
Onde o verde das distâncias invencidas
Inventava o mistério de morrer pela beleza.
Domingo - lembro - era o instante das pausas,
O pouso dos tristes, o porto do insofrido.
Na tarde, uma valsa; na ponte, um trem de carga;
No mar, a desilusão dos que longe se buscaram;
No declive da encosta, onde a vista não vai,
Os laranjais de infindáveis doçuras geométricas;
Na alma, os azuis dos que se afastam,
O cristal intocado, a rosa que destoa.
Dos meus domingos sempre fiz um claustro.
As pétalas caíam no dorso das campinas,
A noite aclarava os sofrimentos,
As crianças nasciam, os mortos se esqueciam mortos,
Os ásperos se calavam, os suicidas se matavam.
Eu, prisioneiro, lia poemas nos parques,
Procurando palavras que espelhassem os domingos.
E uma esperança que não tenho.