sexta-feira, 26 de março de 2021

Entrevista | FHC: Vou apoiar quem levar a trupe do centro ao segundo turno

Ex-presidente diz que volta de Lula à cena política acelera articulações de centro

Por Carolina Freitas / Valor Econômico

SÃO PAULO- Presidente de honra do PSDB, o ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso diz que não são os partidos que vão definir o nome de centro para as eleições de 2022, mas as personalidades. O tucano defende o diálogo do partido com outras legendas, em busca de consenso para levar ao segundo turno um candidato capaz de enfrentar a polarização entre PT e o presidente Jair Bolsonaro.

Em entrevista ao Valor, concedida na tarde de ontem via Zoom, FHC citou como possíveis nomes os dos governadores de São Paulo, João Doria, e do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, ambos do PSDB, e do apresentador e empresário Luciano Huck, sem partido. Mas deixou claro que o cenário está aberto a quem apresente um caminho para o Brasil pós-pandemia e que mostre capacidade de falar ao povo, especialmente via redes sociais.

“Eu vou apoiar quem tiver capacidade de juntar essa trupe toda, pelo menos esses três nomes, para o segundo turno. Quanto mais convergência melhor”, afirmou.

Fernando Henrique disse ainda que a volta do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à cena acelera as articulações do centro. Para o tucano, os desafios de se construir uma frente de centro são “ter lado” e tornar palatável ao eleitor uma posição que não seja extrema. “Não é qualquer centro anódino. Tem que ser um centro que tenha rumo, progressista econômica e socialmente, olhando para a maioria.” 

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: Como o senhor analisa o cenário atual do Brasil?

Fernando Henrique Cardoso: Estamos em uma situação melindrosa. Economicamente, vamos ter desemprego; politicamente, não se vê ainda caminhos de recuperação de confiança; e socialmente, as pessoas estão sofrendo e vão sofrer mais. O quadro sanitário é o que no momento chama mais a atenção pela gravidade. Mas quando sairmos desse pesadelo vamos nos encontrar com uma situação difícil. Não é uma situação só econômica. É uma situação política.

Valor: E como estão as condições políticas de recuperação?

FHC: Estamos com um presidente que tem apoio ainda forte, nas camadas médias e populares. Está perdendo um pouco desse apoio. Vai perder mais. Mesmo que os políticos não tenham a capacidade de vocalizar aquilo que deveriam, as pessoas sabem o que está acontecendo, pela imprensa. Não dá para saber como vai ser do ponto de vista social no momento em que as pessoas perderem a preocupação obsessiva com a sua própria saúde. Vão protestar, vão para a rua? Isso depende da reação política, do que os políticos vão dizer e de quais políticos serão críveis.

Próxima eleição deve ter caráter plebiscitário

Para cientista político, candidatos identificados como de “centro” deverão ter pouco ou quase nenhum espaço

Por Rodrigo Carro / Valor Econômico

RIO - A possibilidade do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva disputar as eleições presidenciais de 2022 cria uma polarização que está longe de ser política e deve transformar o próximo pleito numa votação plebiscitária com quase nenhum espaço para os candidatos identificados como de “centro”, sustenta o cientista político Carlos Melo. Para ele, as próximas eleições devem ser marcadas pelo antibolsonarismo e terá mais chance de êxito quem se mostrar como esta opção.

Ao fazer uma “inflexão ao centro”, no seu primeiro discurso após a decisão do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), que anulou as condenações na Lava-Jato, Lula transformou a “enorme avenida” que poderia ser percorrida por candidatos que se apresentam como centro do espectro político numa “picada no mato”, diz o professor do Insper.

“Quando você pensa em polarização, pode até pensar numa polarização de nomes, entre Lula e [o presidente Jair] Bolsonaro, mas não numa polarização política”, argumenta Melo. “O Lula tem sinalizado que aquele sujeito que deixou a cadeia, ressentido, falando mal de todo mundo, desapareceu. Desapareceu por passe de mágica a partir da decisão do Fachin.”

Dificuldade é construir candidatura única

Sem candidatura natural para 2022, lideranças de partidos de centro e direita postergam decisão sobre quem lançarão como terceira via entre Lula e Bolsonaro

Por Carolina Freitas e Cristiane Agostine / Valor Econômico

São Paulo - Os partidos de centro e de centro-direita têm enfrentado dificuldades para definir quem será a chamada terceira via de 2022. Com a volta do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao cenário eleitoral, dirigentes de legendas como PSDB, DEM, PSD, MDB e Cidadania afirmam que é preciso construir uma candidatura única para o grupo ter viabilidade eleitoral. No entanto, não há consenso sobre qual nome poderá chegar às urnas com força para ir a um eventual segundo turno em uma disputa que tende a ser polarizada entre Lula e o presidente Jair Bolsonaro.

Há dúvidas e desconfianças sobre os nomes já colocados como pré-candidatos desse campo político: os governadores do PSDB João Doria (SP) e Eduardo Leite (RS); o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta (DEM); o ex-governador Ciro Gomes (PDT) e o apresentador Luciano Huck (sem partido). Nenhum deles é visto como um candidato natural, com viabilidade para quebrar a polarização.

Vera Magalhães - Fogo no parquinho

- O Globo

Jair Bolsonaro achou por bem fazer do Itamaraty e da política externa brasileira um playground ideológico do que há de pior no olavismo. O problema é que agora assiste ao parquinho pegar fogo sem muita margem de ação.

O Senado Federal demitiu o chanceler Ernesto Araújo do posto na última quarta-feira. Ele segue no cargo, enquanto o presidente decide para onde despachá-lo e tenta uma engenharia para substituí-lo que não implique total derrocada da brinquedoteca que montou ali para o filho Eduardo Bolsonaro.

Bernardo Mello Franco - Diplomacia do desatino

- O Globo

No dia em que assumiu o Ministério das Relações Exteriores, Ernesto Araújo citou a Bíblia em grego, rezou a Ave Maria em tupi e viajou na maionese em português. Num discurso delirante, o chanceler misturou Tarcísio Meira, Renato Russo, Dom Sebastião e Raul Seixas. A performance espantou a plateia e inaugurou uma era de vexames no Itamaraty.

Discípulo de Olavo de Carvalho, Araújo aplicou a cartilha da extrema direita na diplomacia. Prometeu uma “política externa do povo”, mas subordinou o interesse nacional às crenças de uma seita radical.

O chanceler hostilizou nações amigas, endossou teorias conspiratórias e isolou o Brasil em fóruns internacionais. Na ONU, o país passou a boicotar resoluções que defendiam os direitos humanos. Alinhou-se a teocracias que oprimem mulheres e perseguem minorias.

Eliane Cantanhêde - Jair sempre será Jair

- O Estado de S. Paulo

O cerco se fecha, o Congresso aperta e os palpiteiros querem que Bolsonaro deixe de ser Bolsonaro

Todo mundo sabia que a reunião de presidentes dos três poderes com governadores era só para tirar foto e reforçar o blablablá da “união nacional”, mas restava uma dúvida: seria uma demonstração de força do presidente Jair Bolsonaro, ou a confirmação de que Legislativo e Judiciário se articulam para cobrir o vácuo de poder – e de competência e bom senso – deixado por Bolsonaro?

A resposta veio rápido: Bolsonaro armou tudo para ser a estrela no palco, cercado por ministros e governadores amigos, mas os presidentes da CâmaraArthur Lira, e do SenadoRodrigo Pacheco, recusaram o papel de coadjuvantes de um presidente cada vez mais isolado. Horas depois, Lira usou o plenário da Câmara para dizer que “o remédio legislativo (para erros e incompetência) pode ser fatal”. Ou seja: lembrou que tem a caneta do impeachment.

Já o senador Pacheco desistiu de ser diplomático quando o nada diplomático assessor internacional da Presidência, Filipe Martins, foi filmado, também no mesmo dia da reunião palaciana, fazendo um gesto obsceno durante sua fala na presidência do Senado. Pacheco sentiu na pele a beligerância, a grosseria e o descaso com a institucionalidade da turma que está no poder. E não gostou.

Cristian Klein - Vira, Lira, mira e tira

- Valor Econômico

Será novidade se processo for adiante sem as ruas

O analfabetismo e o alienamento político no Brasil nos últimos anos foram substituídos ou rivalizados por um tipo de comportamento orgulhoso que opera por meio de comandos simples, toscos, sem vergonha do próprio desconhecimento. A ignorância não se resume à falta de saber. É insensibilidade, truculência, brutalidade, desumanidade. Está no poder, nas ruas e nas redes sociais, onde conseguiu transformar o verbo compartilhar em informação falsa e ameaça à vida.

Em 1999, nos tempos de deputado do baixo clero, Jair Bolsonaro, em sua fixação pela morte e pelo autoritarismo, defendeu um novo golpe militar e uma guerra civil para matar “uns 30 mil”, “começando com [o então presidente] FHC”. Durante a atual pandemia, em que o adjetivo de genocida vai grudando na imagem do ocupante do Planalto, os óbitos pelo coronavírus passaram dos 300 mil, depois de um ano de descaso.

Luiz Carlos Azedo - Move-se o Centrão

- Correio Braziliense

Houve uma mudança na correlação de forças políticas e sociais em decorrência do agravamento da crise sanitária e das complicações do cenário econômico

O presidente Jair Bolsonaro nem desconfia de que o saldo macabro da pandemia da covid-19 no Brasil, que já passa dos 300 mil mortos, é todo dele. Não há mais com quem dividir essa conta. A tentativa de responsabilizar governadores e prefeitos fracassou. Os militares, com a saída do general Eduardo Pazuello do Ministério da Saúde, estão se livrando da mala sem alça. A tentativa de jogar nas costas do Congresso o que ainda vem pela frente (estima-se que podemos chegar a 500 mil mortos) não colou. Muito pelo contrário, está provocando um deslocamento perigoso dos políticos do Centrão, cuja solidariedade desprezou, ao descartar a indicação da médica goiana Ludhmila Hajjar e nomear Marcelo Queiroga.

Ricardo Noblat - Preparem-se para os dias piores de sua vida com a pandemia

- Blog do Noblat / Veja

Sistema de saúde colapsou

E a História vai registrar que no dia 25 de março de 2021, quando foi batido mais um recorde no número de mortes e de novos casos de coronavírus no Brasil, pelo menos 6.370 pessoas estavam à espera de um leito de UTI, muitas sem conseguir respirar direito por falta de oxigênio e de equipamentos de ventilação mecânica.

O número foi levantado pelo Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde. Em São Paulo, são 1.500 pessoas na fila por um leito. Em Minas Gerais, 714. No Rio, 582. E no Paraná, 501. O sistema público e privado de saúde entrou em colapso. A doença está em alta em 25 dos 27 Estados, e mais no Distrito Federal.

Segundo a Associação Nacional de Hospitais Privados, a maioria das unidades particulares do país tem estoque só para mais três ou quatro dias de medicamentos usados no atendimento de pacientes da Covid-19. “Isso significa que a gente chegou ao limite”, disse em tom de desespero Carlos Lula, o presidente do Conselho.

Bruno Boghossian – O pária

- Folha de S. Paulo

Bolsonaro transformou política externa em aparelho de recreação da direita radical

Não era possível esperar muito de uma política externa que tinha como prioridades brigar com a China, mudar a embaixada brasileira em Israel para atender aos evangélicos, lutar contra uma conspiração globalista e conseguir um posto diplomático para o filho do presidente. O fracasso de Ernesto Araújo como chanceler não é acidente.

O Itamaraty se tornou um obstáculo no combate à pandemia porque Jair Bolsonaro instalou ali uma estrutura que não trabalha pelos interesses do país. Explorada como um aparelho de recreação da ultradireita, a diplomacia brasileira não conseguiu produzir resultados num momento de crise aguda.

Hélio Schwartsman - Não vai dar certo

- Folha de S. Paulo

Adoraria estar errado, mas com Bolsonaro não há muita chance

Adoraria estar errado, mas creio que, com Jair Bolsonaro na Presidência, não há muita chance de que venhamos a ter um plano nacional de enfrentamento da Covid-19 minimamente coerente e eficaz.

O problema é que não dá para conciliar a personalidade do presidente, em particular as ideias em relação à Covid-19 de que ele não abre mão, como a fantasia do tratamento precoce e a resistência às medidas de isolamento social, com o que precisa ser feito. Não são comitês de emergência nem o novo ministro que irão demovê-lo de suas obstinações ou impedi-lo de interferir nas políticas de saúde.

É claro que é melhor ter um Bolsonaro pressionado, pelo centrão, por Lula, pelo PIB, pelas pesquisas de popularidade, do que um Bolsonaro solto para perseguir seus apetites naturais. Quando acuado, o presidente tende a fazer menos besteiras. Bônus extra: é divertido vê-lo contradizer-se tão flagrantemente como o fez em relação às vacinas.

Angela Alonso* - Desgoverno


- Folha de S. Paulo

Brasil é assombrado pela dissolução do Estado nas suas franjas, pela perda de suas capacidades para organizar a vida social

Três minutos presidenciais, um para cada centena de milhar de mortos, respondidos por réquiem de panelas. Foi a trilha sonora da leitura de fatos alternativos no teleprompter, em bairros de classe média em São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Brasília Goiânia, Florianópolis, Vitória, João Pessoa, Porto Alegre, Recife, Fortaleza, Natal, Salvador e até Curitiba.

Já na surdina, grupo anônimo de marqueteiros lançou vídeos didáticos, atacando primeiro pela economia —o Bolsocaro—, depois pela pandemia —o “otário”. Enquanto as panelas predominaram entre os “anti-Bozo” raiz, os filmetes miram recalcitrantes. São peças de conversão dos arrependidos.

Estes protestos solteiros ganharam companhia graúda. Artistas, intelectuais, movimentos sociais são useiros de manifestos. A novidade é a adesão à técnica dos que raramente se manifestam juntos de público porque têm acesso individual à antecâmara dos Três Poderes. Protesto do dinheiro e dos que sabem lidar com ele, que acenderia luz vermelha no Planalto, se lá houvesse juízo.

Reinaldo Azevedo - A democracia fica mais segura com Bolsonaro sob ameaça

- Folha de S. Paulo

Com uniforme, seria inútil à guerra porque lhe falta raciocínio lógico; de terno, não serve à paz

Jair Bolsonaro só entende a linguagem da ameaça, seja como agente, seja como alvo. E, nesse particularíssimo sentido, agiu bem Arthur Lira, presidente da Câmara. O “mau militar” (segundo Ernesto Geisel) está, como chefe do Executivo, abaixo da crítica: não fosse o morticínio em massa, ele não valeria nem uma boa lista de insultos.

Com uniforme, seria inútil à guerra porque lhe falta raciocínio lógico, e todo tiro sairia pela culatra. Com o terno, não serve à paz. Está talhado para a arruaça e a briga de gangues. Não por acaso, o Exército o chutou. Ocorre que a política o capturou, e a Lava Jato o elegeu presidente. “Ah, foi o povo...” Eu sei. Segundo circunstâncias que não eram de sua escolha.

Vinicius Torres Freire – Como evitar ainda mais horror nas UTis

- Folha de S. Paulo

Cidade de SP arrumou mais 292 leitos em março, mas número de internados aumento 483

Desde 1º de março, a prefeitura de São Paulo abriu mais 292 leitos de UTI para Covid-19. Aumento em 483 o número de doentes internados sob terapia intensiva. A ocupação das UTIs passou de 70% para 90%. No ritmo atual de internações extras na terapia intensiva (na média móvel de 7 dias), as UTIs lotam de fato em oito dias, caso não se arrumem mais leitos.

Antes disso, como já se antevê, começaria o caos terminal, pacientes sendo levados dali para lá, no desespero e risco ainda maior de morte.

A prefeitura diz que tem como arrumar mais alguns leitos. Espera que, com as medidas de distanciamento social, o número total de internados cresça até entre os dias 10 e 15 de abril. Mesmo nessa perspectiva otimista, trata-se de uma situação gravíssima. Se houver relaxamento, é bom nem pensar. É fácil perceber que as medidas restritivas vão durar ou deveriam durar por mais tempo.

Guedes ataca IFI e recebe críticas de economistas

A senadores ministro diz que instituição “tem errado dez em cada dez” previsões

Por Renan Truffi e Anaïs Fernandes / Valor Econômico

BRASÍLIA e SÃO PAULO - O ministro da Economia, Paulo Guedes, ironizou a atuação da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado, disse que ela “tem trabalhado muito mal” e chegou a sugerir a senadores que revejam o seu comando, desencadeando críticas em série de economistas, políticos e juristas.

O ataque ocorreu ontem em audiência pública da comissão temporária que acompanha ações contra a covid-19 no Senado, após pergunta do relator, Wellington Fagundes (PL-MT). “A Instituição Fiscal Independente estima que a paralisação de 50% das atividades econômicas por quatro semanas pode levar a uma redução do crescimento da economia em um ponto percentual - isso caso não haja medidas que compensem essa paralisação, como ocorreu em 2020. Vossa Excelência concorda com essa afirmativa?”

Em resposta, Guedes sugeriu que a IFI tem errado suas previsões. “A IFI disse que nós iríamos furar o teto [de gastos] no primeiro ano, disse que nós iríamos furar o teto no segundo ano, a IFI disse que a dívida iria chegar a 100% do PIB. Eu acho que a IFI tem previsões muito fracas, tem trabalhado muito mal. Eu acho que até o Senado deveria rever um pouco quem é que lidera a IFI, porque, aparentemente, é um economista que tem errado dez em cada dez.” Guedes também minimizou previsões do Fundo Monetário Internacional (FMI).

José de Souza Martins* - A opção do Brasil pelo atraso

- Valor Econômico

A pandemia desconstruiu e expôs contradições do modelo de capitalismo subdesenvolvido que há meio século nos puxa para baixo

A pandemia não é a causa primeira da orientação retrógrada que define a situação brasileira atual. Ela apenas agravou-lhe as tendências ao desfazimento da ordem e à institucionalização da crise. Sobretudo no retorno do Brasil à condição de país atrasado, com espasmos de economia moderna.

Fatores e interesses opostos ao desenvolvimento aqui de um capitalismo possível e diferente já vinham se manifestando há tempos. Desde os governos petistas, com uma vulnerabilidade clara aos ímpetos do capitalismo do crescimento econômico e não o do desenvolvimento econômico com desenvolvimento social.

Mas isso era coisa nascida com o golpe militar de 1964, com vários e crescentes desdobramentos para além da economia, na política, na sociedade, na cultura. Ao que as esquerdas não conseguiram antepor um projeto democrático de nação.

Claudia Safatle - Covid-19, uma guerra sem fim

- Valor Econômico

Cronograma de vacinação está sob o risco de não ser cumprido

 “Essa pode ser uma guerra sem fim”, disse o ministro da Economia, Paulo Guedes ontem, durante debate na Comissão Temporária da Covid-19 do Senado. Uma aparente frase solta no ar tem hoje mais fundamento do que parece. Os especialistas da área avaliam que a vacinação contra a covid-19 terá que ser anual e que esse tende a ser o maior gasto do governo com medicamentos, contra a doença e suas mutações. O setor de saúde passará a ser estratégico no mundo. “Temos que nos preparar para uma batalha de fôlego longo”, disse um especialista da área.

Nesse contexto, o Brasil deveria ser um dos grandes players globais, abrindo a produção de vacinas para o setor privado. Hoje, 99% das vacinas é do Ministério da Saúde. Pelos menos dois laboratórios, além das instituições públicas Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e o Instituto Butantan, tentaram entrar, mas suspeita-se que faltou apoio do governo federal. São eles a Funeb, de Minas Gerais, que começou uma conversa com a chinesa Sinofarma, que não prosperou; e o laboratório Tecpar, do Paraná, que teve contato com a produção da Sputnik V, russa, mas também não chegou a um termo. A União Química, no Distrito Federal, é, atualmente, a única empresa privada que está produzindo vacina (Sputnik V).

Pedro Doria - A cara do fascismo digital

- O Globo / O Estado de S. Paulo

Há um aspecto da composição do governo Jair Bolsonaro muito pouco discutido. É como, na linguagem que usa para se apresentar ao mundo digital, transmite uma ideologia neofascista. O motivo por que se fala tão pouco desse lado é porque esses códigos são realmente pouco conhecidos. Mas é também porque parte da lógica da extrema-direita digital está, paradoxalmente, em se disfarçar enquanto se apresenta com clareza. É o que, na internet, se chama trollagem. E é o que o assessor Filipe Martins fez esta semana no Senado Federal, durante a sabatina do chanceler Ernesto Araújo.

Essa cultura se construiu ao longo das últimas décadas nos muitos fóruns em que jovens de direita, principalmente de extrema direita, se encontram na internet. Um deles, o mais célebre, é o 4chan. Sua versão radicalizada é o 8chan. Há redes sociais exclusivas da direita, caso da Gab. E há, claro, o submundo da internet — a Deep Web. Não foi nesses ambientes que a cultura troll nasceu. Mas foi neles que ela se desenvolveu.

Flávia Oliveira - Sem o Censo, é o fim

- O Globo

O apagão estatístico sempre esteve à espreita do Brasil no governo Jair Bolsonaro. Mais de uma vez, tanto o presidente da República quanto integrantes do primeiro escalão lançaram dúvida, tentaram interferir ou desqualificaram órgãos e profissionais responsáveis pelo arcabouço de estatísticas e dados essenciais ao autoconhecimento da sociedade brasileira. Ainda anteontem, o Ministério da Saúde, recém-assumido pelo cardiologista Marcelo Queiroga, tentou alterar o sistema de registro de óbitos por Covid-19 — recuou por pressão de secretários estaduais e municipais. Por complexa, a manobra alteraria, para baixo, o total de vítimas, retardando a confirmação da marca macabra de 300 mil pessoas mortas em um ano de pandemia, atestado da incompetência e da indiferença genocida do mandatário federal e de seus aliados civis e militares.

Ruy Castro - 'Sim, se houver demanda'

- Folha de S. Paulo

Era o que Pazuello e Bolsonaro esperavam para decidir se compravam ou não vacina

Nesta quinta (25), ao ir ao Planetário tomar uma legítima Coronavac —engarrafada no Brasil, certo, mas composta de, entre outros, autênticos cloreto de sódio, hidróxido de alumínio, hidrogenofosfato dissódico e 600 SU de antígeno do vírus inativado Sars-CoV-2 vindos da China—, lembrei-me de uma, entre tantas, imortal passagem do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello. Ao ser várias vezes perguntado sobre se o Brasil compraria a Coronavac, e já sem poder fugir à resposta, ele ejaculou a contragosto: "Sim. Se houver demanda".

Nelson Motta - A mitologia do mito Jair Bolsonaro

- O Globo

Presidente, com seu negacionismo, sua incompetência e seu autoritarismo, já ajudou a matar mais de 300 mil brasileiros

Soldados são treinados para matar, e, eventualmente, morrer pela pátria. Não têm adversários, têm inimigos a exterminar, missões a cumprir e ordens a obedecer. Foi essa a formação de Bolsonaro, que, com seu negacionismo, sua incompetência e seu autoritarismo, já ajudou a matar mais de 300 mil brasileiros. Como teve 55% do eleitorado, mais de 160 mil mortos eram seus eleitores. Esses mortos não são números, têm famílias, amigos, companheiros de trabalho, que também morrem um pouco a cada perda, atingidos pela dor individual e coletiva. Já que a realidade está insuportável, vamos estudar a mitologia do mito.

O mito da integridade — Foi acusado de planejar explodir bombas em quartéis por aumento de salário, chegou a ser preso, foi julgado, considerado culpado numa instância inferior e, inocentado pelo Superior Tribunal Militar, acabou na reserva. Já em seu mandato de deputado, empregou um batalhão de parentes e amigos e há indícios do esquema de rachadinha, que anos depois ganhou evidência, administrado por seu amigo de longa data Fabrício Queiroz, com seu filho.

Ruth de Aquino - A varanda conspurcada de tinta azul

- O Globo

A imagem era de uma explosão de tinta azul. Uma mistura dos respingos de Jackson Pollock com o azul cobalto de Yves Klein. Paredes, chão, vidros, fotos, fachada, tapete, esquadrias, material de pilates, tudo respingado e manchado na minha varanda. Caído, jazia um copo de plástico com tinta seca, responsável pela bagunça pictórica. Arremessado com violência a partir do playground contra o apartamento, na minha ausência. Na trajetória, até aterrissar, quebrou também um abajur.

Eu chegava de fora do Rio. Só pode ter sido um moleque, pensei. Não, não pode. Para ser jogado com essa força e nessa altura, um andar acima, não foi uma criança entediada com o isolamento. Antes fosse. Era uma tinta espessa e cara. Só pode ter sido alguém que sabia do apartamento vazio, e à noite. De dia, ninguém assumiria o risco de ser visto, disseram vizinhos que têm se confinado em varandas. O play hoje é frequentado por criancinhas que brincam de casinha e correm pelo espaço. À noite, só adultos usam sauna e piscina.

Mas por que isso? Por que essa agressão em meio a uma pandemia? Amigos, filhos e vizinhos me convenceram. É o que você escreve, Ruth. Todos do prédio sabem que você critica o Bolsonaro. Essa turma, quando não xinga em redes sociais, parte para a intimidação. Quem agiu assim sabia também que não havia câmeras, o que é absurdo. Todo prédio precisa ter câmeras no play, para proteger as crianças e o patrimônio. 

Ignácio de Loyola Brandão* - Um Brasil poético e solidário

- O Estado de S. Paulo

O caminhão chegou em casa seguido por um bando de gente disposta a ajudar a descarregar

Para Thomaz Souto Corrêa

Alci, Miguelzinho e Lazinho trouxeram espigas de milho, as primeiras colhidas no milharal de Ivo e Sueli, amigos e vizinhos, e Rosilene colocou na panela. Mais tarde, Alci voltou com imensa abóbora logo transformada em doce e ainda será quibebe e sopa, tudo em fogão de lenha. Neste recanto do sul de Minas, descoberto há cinco anos, conseguimos construir um pequeno refúgio. Marcia, arquiteta, decidiu que a casa teria grandes janelas e portas de vidro, abrindo para a floresta, para vales e montanhas e, do lado direito, para o Pico do Papagaio, um dos símbolos de Minas Gerais.

Fugimos de São Paulo e aqui estamos, evitando o colapso da covid. Momento exato. Minha idade me torna vulnerável e quero ainda gozar os anos que me restam. Não professo a teoria do genocida. Aqui, aos poucos, viemos penetrando na atmosfera da comunidade, lentamente porque é preciso ir com jeito. O mineiro é bom, solidário, generoso, mas confia com cautela. Marcia e Rita já apanharam o modo de eles falarem, as contrações, prêle, os termos próprios, o LI quando querem dizer ALI, e dezenas de expressões poéticas. Nossa casa é conhecida como a casa da dona Marcia e foi construída velozmente por três homens, não mais. Das fundações aos acabamentos, hidráulica, pintura, Marcinho, Geovanni e Genildo cuidaram de tudo. O muro de pedra foi erguido pelo Fortunato, que manejou pedras pesadíssimas. José Messias se encarrega da horta e ali buscamos couve, feijão, alface, almeirão, vagem macarrão, couve chinesa e já temos limão plantado. Ele é daqueles que têm mão santa, planta, germina, cresce. Os governantes não conhecem o interior do Brasil, é outro mundo distante de Brasília, ninho de escorpiões.

Música | Adoniran Barbosa - Despejo na Favela

 

Poesia | Joaquim Cardozo - Não tenho pátria, nem glória

(...)

O RETIRANTE

Não tenho pátria, nem glória...
Embora — sinal da fome —
Nas páginas secas da história
Haja o meu nome e renome.

Mateus, Bastião e Catirina entrando outra vez em cena,
encontram o retirante e a ele se dirigem.

MATEUS

Como é que vens acabado
Velho amigo, meu irmão
Há tanto tempo largado
Pelas sendas do sertão.

RETIRANTE

Sou, de acabado, tão pouco...
A pouco estou reduzido,
Ouve cantar galo rouco
Meu coração comovido...

(pausa)

RETIRANTE
(continuando):

Sou uma sombra sem corpo,
Sou um rosto sem pessoa,
Um vento sem ar soprando,
Sem som, um canto, uma loa.

Nem as palavras definem
O meu tão grande vazio,
Todo o gesto que me exprime
Todo o meu gesto é baldio.

Todo o ardor que em mim renasce
Se extingue com um assovio...
Em mim não há claridades
Sou, apagado, um pavio.
O tecido que me veste
Não tem trama, nem cadeia.
Meus passos são muito leves
Não deixam marca na areia.
Meu andar é curto e breve
Mas contém a vastidão
Como é leve o que me pesa
Meu ausente matolão.

Perto vou, mas vou por longe
Vou junto, mas vou sozinho
Em sombra: burel de monge
Caminho meu descaminho.

(...)


In: CARDOZO, Joaquim. O coronel de Macambira: bumba-meu-boi em dois quadros. Introd. Osmar Barbosa. Il. Poty. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d. p.68-69. (Prestígio). Poema integrante da série 2o. quadro.