sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

É preciso rapidez e rigor para punir Daniel Silveira – Opinião / O Globo

É ao mesmo tempo uma surpresa e um alento que, segundo relato do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), ao presidente Jair Bolsonaro, o plenário da Câmara pareça disposto a confirmar a prisão do deputado bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ) e possa até cassar seu mandato. Não é admissível nenhuma transigência com um parlamentar que profere injúrias e ameaças contra ministros do Supremo, além de agredir os fundamentos da democracia, atitude que não é protegida nem pelas prerrogativas do mandato parlamentar, nem pelo direito à liberdade de expressão. É preciso agilidade e rigor na punição de Silveira.

Até o momento, mantém-se o peso da decisão unânime do Supremo pela prisão. A reunião de custódia realizada ontem o manteve detido. Só falta a Câmara decidir seu destino. O plenário dos deputados deverá fazer isso hoje. Ou bem o tratará com o corporativismo e o compadrio contumazes no Parlamento ou, ao contrário, seguirá o voto da Corte, como aventou Lira.

A surpresa positiva na audiência de custódia sucedeu a especulação de que Silveira seria solto de tornozeleira eletrônica, em troca a Mesa da Câmara encaminharia o caso ao Conselho de Ética, desativado desde o início da pandemia. Na verdade, era uma manobra para garantir a impunidade, a julgar pela leniência e lentidão com que o Conselho atua nas duas Casas do Congresso. Para afastar o temor, foi encaminhado ontem pela Mesa ao presidente do Conselho, Juscelino Filho (DEM-MA), o pedido de cassação de Silveira, que será analisado terça-feira.

Vera Magalhães - Governo normal faz diferença

- O Globo

Mais que o tradicional “bom dia” nos grupos de WhatsApp das famílias, uma expressão se espalhou pelas redes sociais no Brasil em tempos de governo Bolsonaro: “Não se tem um dia de paz”.

A constatação ganhou especial significado durante a pandemia. Nos aproximamos de forma célere dos 250 mil mortos, a vacinação se dá em ritmo de tartaruga, o auxílio emergencial ainda é um esboço, mas o país parou na Quarta-Feira sem Cinzas para acompanhar a prisão de um deputado da linha de frente da base bolsonarista que não via outra prioridade diante deste quadro que não fosse pregar a volta do AI-5, agressões físicas a ministros do Supremo e a troca sumária de todos os integrantes da Corte.

O chilique do valentão se deu porque o ministro Edson Fachin fez o óbvio: protestar contra a interferência indevida que o general Villas Bôas confessou ter sido feita com aval do Alto-Comando das Forças Armadas na decisão que o STF teria de tomar sobre um recurso do ex-presidente Lula em 2018.

A prisão do deputado ainda mobiliza os três Poderes da República três dias depois. Os deputados, antes prontos a correr em socorro do colega, agora entenderam que ele foi longe demais e que salvar sua pele pode implicar comprometer a própria. Da mesma maneira, Bolsonaro, sempre tão boquirroto quanto Daniel Silveira, fez boca de siri quando o amigo foi em cana. Natural: sabe que tem seus próprios passivos, que incluem os do filho Flávio e os do ministro Eduardo Pazuello, com o Supremo e não vai se queimar por um deputado de 31 mil votos que se notabilizou por rasgar uma placa com o nome de Marielle Franco.

Fernando Gabeira - O capitão vence no jogo da morte

- O Estado de S. Paulo

Quanto mais tempo se perde por falta de vacinas, mais vidas são levadas pelo vírus

Recentemente, um grupo de cientistas publicou na revista The Lancet um estudo calculando que 40% das mortes por covid-19 nos EUA poderiam ter sido evitadas se não fosse a desastrada política de Donald Trump. Um estudo semelhante colocaria Jair Bolsonaro em situação mais difícil.

Bolsonaro é mais negacionista que Trump e na questão das vacinas se afasta radicalmente de seu ídolo americano. Afinal, Trump financiou a produção de vacinas e Bolsonaro é o único chefe de Estado do mundo que expressou uma visão negativa sobre elas.

A Confederação Nacional de Municípios lançou um documento em que registra as hesitações e os erros do governo no campo da vacinação em massa e pede a saída do ministro da Saúde, general Pazuello. Os prefeitos estão cobertos de razão. Nunca chegaremos a vacinar adequadamente os brasileiros com Pazuello à frente do processo. Ele prometeu que vacinaria metade das pessoas até junho, uma promessa tão absurda que não sei como senadores acreditam nela.

Bolsonaro negou a pandemia. No seu processo de negação, como todo populista, precisava de uma saída fácil para o problema. Optou pela hidroxicloroquina. Sempre afirmou que acreditava mais em remédios do que em vacinas, ao contrário da maioria dos governantes do mundo.

Eliane Cantanhêde - ‘Nova política’, vade retro!

- O Estado de S. Paulo

Bolsonarista Daniel Silveira empurra os três poderes para um acordão e enterra a ‘nova política’

O presidente Jair Bolsonaro e o Exército fecharam a boca, os três poderes se articularam e prevaleceu o bom senso para evitar uma crise institucional e superar o episódio “Daniel, como é mesmo o nome dele?”. O Supremo cumpriu sua função, o Congresso reagiu com maturidade, o Planalto não atrapalhou e o resultado é que o deputado bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ) passa uns dias em cana e está isolado na Câmara

O ministro Alexandre de Moraes decretou a prisão em flagrante de Silveira, que faz apologia do AI-5 e agride violentamente os ministros do Supremo; o plenário da Corte ratificou a prisão por unanimidade e em tempo recorde; o presidente da Câmara, Arthur Lira, ouviu Planalto, Senado e líderes partidários e articulou o acordão com o próprio Supremo. Duas coisas podem atrapalhar tudo: as ligações do deputado com a milícia e os dois celulares encontrados com ele

Pelo acordo, a Câmara mantém a prisão, Moraes dá um tempo e depois usa a denúncia apresentada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) para relaxar a prisão e trocá-la por tornozeleira eletrônica. Resta saber o que de fato acontecerá com o bolsonarista Silveira, que é uma ameaça à democracia e à sociedade. Ele será investigado pelo Supremo e pelo Conselho de Ética da Câmara. Pode ser suspenso, cassado ou... nada. 

Bernardo Mello Franco – O Soldado e o capitão

- O Globo

 Bolsonarismo tenta usar armas da democracia para matá-la

Na denúncia apresentada ao Supremo, a Procuradoria-Geral da República descreve Daniel Silveira como “um ex-soldado da Polícia Militar do Rio, instituição na qual se notabilizou pelo mau comportamento”. O deputado fez da indisciplina um trampolim para trocar o quartel pelo palanque. Não é sua única semelhança com Jair Bolsonaro.

A exemplo do capitão, o ex-soldado usa a misoginia para se promover. Bolsonaro atraiu holofotes quando chamou uma colega de “vagabunda” e disse que ela “não merecia” ser estuprada. Silveira se projetou ao vandalizar uma homenagem a Marielle Franco, vereadora executada pela milícia.

Os dois descobriram que a truculência pode render votos. O mau militar enfileirou sete mandatos até chegar ao Planalto. O mau policial foi premiado com uma cadeira na Câmara.

O caso do deputado marombado impõe um teste à democracia brasileira. Desde que subiu a rampa com Bolsonaro, a extrema direita mantém as instituições sob ataque permanente. Agora surgiu uma oportunidade de frear a escalada autoritária.

Na Quarta-feira de Cinzas, o Supremo esqueceu as divisões internas e manteve a prisão de Silveira por 11 a 0. Hoje será a vez de a Câmara decidir o futuro do extremista.

Pedro Doria - O deputado, o Centrão e o algoritmo

- O Globo

Há uma lógica diretamente ligada à estrutura das redes sociais no vídeo que custou a prisão ao deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ). Silveira é, dentre os bolsonaristas, um tipo ainda mais agressivo do que o padrão do grupo, já uns tantos tons acima do normal. Mas, neste vídeo em que deseja uma surra aos ministros do Supremo embalado por atos institucionais da ditadura, sua agressividade não é apenas um ato político antidemocrático. É, também, uma técnica conhecida de fazer com que a audiência potencial do filmete seja maior. A intenção lá atrás, quando se tornou conhecido pelo gesto de quebrar a placa da vereadora assassinada Marielle Franco durante a campanha, também era a mesma.

O algoritmo, o código de computador que seleciona quem será exposto a que foto, texto, vídeo, compreende muito da natureza humana. É uma inteligência artificial que compreende nossas fraquezas. E uma delas é que, quando a pressão sobe, e a adrenalina corre, ligamos o alerta. Ficamos mais atentos quando as emoções são fortes. Quem nos deixa mais indignados, nas redes sociais, ganha mais pontos para aparecer mais.

Silveira sabe disso, como sabe Carlos Bolsonaro quando opera as contas de seu pai, o presidente da República. Como, aliás, sabem quaisquer influenciadores.

Luiz Carlos Azedo - Dispensa adversários

- Correio Braziliense

Daniel Silveira não é querido e respeitado por seus colegas, tem apenas dois anos de mandato, nenhuma experiência parlamentar e comportamento arrogante

Quem tem um aliado como o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) não precisa de adversários. É a situação do presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL), na antessala de um confronto com o Supremo Tribunal Federal (STF), absolutamente imprevisto e desnecessário, por causa dos ataques do parlamentar àquela Corte e seus ministros. Hoje, o plenário da Câmara deverá decidir se revoga a sua prisão em flagrante — motivo de grande controvérsia jurídica, porque se baseia em postagens nas redes sociais —, sobre a qual a decisão unânime do Supremo firmou jurisprudência. Ontem, a tendência da maioria dos deputados era de manter a prisão e aguardar que o próprio Supremo a relaxasse, substituindo por outras medidas, como prisão domiciliar e tornozeleira eletrônica.

O deputado foi transferido para o batalhão prisional da Polícia Militar fluminense, em Niterói, no final da tarde de ontem; antes, os policiais federais encontraram dois celulares em sua cela. Na reunião de líderes, à tarde, somente quatro partidos haviam decidido pela revogação da prisão: PSL, Pros, Novo e PSC. Manifestaram-se formalmente pela manutenção PSDB, Republicanos, Cidadania, Rede, PSB, PDT, PT, PcdoB, PSol. O deputado Carlos Sampaio (PSDB-SP), que também é a favor da manutenção da prisão, foi escolhido relator pelo presidente da Câmara, o que indica uma tendência da votação. Lira tem dado demonstrações de que não pretende tomar partido do deputado contra o Supremo, muito pelo contrário. Entretanto, também não quer se desgastar com sua base de apoio.

O fato é que Daniel Silveira conseguiu isolar os deputados de extrema-direita na Câmara, que reagiram de forma atabalhoada à prisão, com duras críticas ao STF, criando constrangimentos para os deputados contrários à prisão em flagrante por razões jurídicas. Esses parlamentares discordam da interpretação dada pelo Supremo às circunstâncias em que os ataques foram cometidos, no caso, por meio das redes sociais, para caracterizar o flagrante delito. Consideram a prisão abusiva, por supostamente desrespeitar o instituto da imunidade parlamentar. A maioria dos deputados, porém, repudia as agressões de Daniel ao Supremo e seus ministros, por representarem um atentado ao Estado de direito democrático. Muitos já se manifestam a favor da cassação do mandato do parlamentar pelo Conselho de Ética da Câmara.

Ricardo Noblat - Sinceros votos de que o deputado Daniel Silveira dê-se mal

- Blog do Noblat / Veja

Para que sirva de exemplo

Não basta que logo mais à tarde a Câmara confirme a decisão unânime do Supremo Tribunal Federal de mandar prender o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) que atentou contra o Estado de Direito em vídeo que ele mesmo gravou e postou nas redes sociais.

Para que provas a mais do seu crime? O vídeo é prova cabal, indesmentível de que ele é um criminoso confesso. Nunca antes na história democrática deste país um parlamentar pregou tão acintosamente o desrespeito à Constituição e aos seus zeladores.

Nem basta que na próxima semana o Conselho de Ética da Câmara, inativo há tantos meses, conclua que Silveira feriu o decoro parlamentar e deve ter seu mandato cassado. É preciso que o plenário da Câmara casse o mandato e que a Justiça o condene.

O tratamento dado a Silveira deve servir de exemplo aos que conspiram para cancelar mais uma vez a democracia, sejam eles vivandeiras de quartéis ou militares. Um traço no chão para além do qual ninguém se arrisque a ir imaginando que ficará impune.

Foi o bolsonarismo que pariu um feto mal formado como é Silveira. Com o agravante, no seu caso, de que ele acabou se elegendo deputado federal apesar da folha corrida repleta de antecedentes criminais. Não serviu para vestir a farda da polícia.

Reinaldo Azevedo - A nossa moral e a deles

- Folha de S. Paulo

Senhores da oposição, tomem cuidado com uma eventual cassação que poderia servir à impunidade do criminoso Daniel Silveira

O lugar de Daniel Silveira é a cadeia. Agora e depois. É preciso cuidado para não oferecer a ele uma tábua de salvação. Se cassado, seu caso vai para a primeira instância, com o risco de o desfecho ficar para as calendas gregas, aquele tempo sem tempo. A Procuradoria-Geral da República já o denunciou ao Supremo com base nos artigos 344 do Código Penal e 18 e 23 da Lei de Segurança Nacional. Que se torne logo réu.

Que seja julgado, condenado e preso em regime fechado, com consequentes perda de mandato e inelegibilidade. Tudo de acordo com o devido processo legal. Ele sonha com surras públicas de gato morto em ministros do Supremo e convoca uma guerra não só contra os magistrados, mas também contra um Poder da República. A propósito: o general Eduardo Villas Bôas e pares se deram conta da qualidade dos aliados que mobilizam? É com esses Bombadões de Plutarco que pretendem construir a terra dos "homens de bem", sobre uma montanha de quase 250 mil cadáveres? Atenham-se aos quartéis.

A correta decisão do STF gerou mais debate entre advogados do que entre os pares de Silveira. Pois é. O que une os livros "Como as Democracias Morrem" (Steven Levitsky e Daniel Ziblatt), "O Povo contra a Democracia" (Yascha Mounk) e "Fascismo "“ Um Alerta" (Madeleine Albright), com olhares e ângulos às vezes bastante diversos? Os três registram a inércia dos regimes democráticos quando confrontados com a subversão reacionária.

Prisão de deputado é forte sinal de reação das instituições ao extremismo

Detenção de Daniel Silveira por ataques ao SFT foi medida extrema e necessária — mas a batalha contra esse movimento antidemocrático será longa

Por Marcela Mattos, Gabriel Mascarenhas, Thiago Bronzatto, Juliana Castro  / Revista Veja

Com 1,90 metro de músculos e um arsenal de palavrões de fazer inveja a frequentadores de arquibancadas, o deputado federal Daniel Silveira se sente mais à vontade em meio a gritos e intimidações, armas das quais ele lança mão frequentemente, do que com a troca de ideias. No fim de 2019, por exemplo, ao ser questionado sobre o ato em que rasgou a placa que levava o nome da ex-vereadora Marielle Franco, ele jogou o telefone celular de um jornalista no chão e esbravejou: “Te bati, vai lá no STF e me processa, otário”, antes de voltar ao plenário da Câmara e regozijar-se da agressão em conversa com policiais legislativos. Em 19 de abril de 2020, Silveira era um dos mais inflamados na plateia do evento em que Jair Bolsonaro celebrou o Dia do Exército participando de uma manifestação a favor da intervenção militar. Ao término do encontro, o deputado postou um vídeo nas redes sociais: “Vocês não fazem ideia do poder que o povo tem. Se o povo sair às ruas de fato, e resolver cercar o STF, resolver cercar o Parlamento… invadir mesmo, tô falando pra invadir, não tô falando pra botar faixinha não. Tô falando pra cercar, invadir mesmo. Tô falando pra cercar lá e retirar na base da porrada”.

Irresponsável, truculento e perigoso, o parlamentar tem um histórico problemático desde os tempos em que era policial militar no Rio de Janeiro, quando acumulou investigações internas por uma série de transgressões, que incluíam faltas, mau comportamento e gravação de vídeos ofensivos, inclusive enquanto estava em patrulha. Acumulou mais de sessenta sanções disciplinares e oitenta dias de prisão. Não foi expulso da corporação em 2018 porque empilhou licenças-médicas em série por mais de noventa dias até se eleger deputado e sair da corporação. Foi com esse nível de competência e agressividade que o ex-PM e ex-cobrador de ônibus construiu sua curta carreira política (no primeiro pleito que disputou, chegou ao Congresso pelo PSL do Rio em 2018), angariando votos da direita radical no vácuo da vitoriosa onda eleitoral bolsonarista. Mas, felizmente, os tempos de glória desse tipo de comportamento bárbaro estão com os dias contados. Tanto no exterior quanto no Brasil há sinais claros de que esse extremismo, baseado na pregação da violência e contra a democracia, está começando a perder força (no voto e na reação das instituições). A união nacional que permitiu a vitória de Joe Biden e a imediata reação contra a recente invasão do Capitólio mostram que o fenômeno passou a ser combatido com firmeza nos Estados Unidos. Por aqui, a prisão do deputado na semana passada — uma medida extre­ma, mas necessária — foi um importante sinal de que tais comportamentos não serão mais tolerados.

Estava na hora. Inebriados pelo resultado das eleições e, de certa forma, sentindo-se empoderados por sinais de simpatia do presidente Jair Bolsonaro e de seus familiares, figuras como Silveira vêm fazendo do seu mandato parlamentar um palanque permanente de difusão de inverdades e ataques ao Congresso e, principalmente, ao Supremo Tribunal Federal. Com tal postura de ódio e intolerância, eles conquistam seguidores nas redes e acabam provocando ainda mais confusão num cenário político que já enfrenta inúmeros desafios. Para eles, tal jogo tem sido positivo (eles ganham holofotes e arregimentam fãs). Para o país, é uma desgraça que atrasa o entendimento político na direção que deve — a aprovação de reformas — e ainda corre o risco de terminar em tragédia. Até recentemente, Daniel Silveira nunca havia sido incomodado por suas atitudes e provocações. O jogo começou a mudar, quando ele entrou na mira do STF por meio dos inquéritos que apuram responsabilidades sobre atos antidemocráticos e fake news. Na terça 16, veio o desfecho inevitável.

Dora Kramer - Festins diabólicos

- Revista Veja

Quando multidões imitam conduta leviana de Bolsonaro, há um alerta no horizonte

À falta de uma explicação que nos ajude a compreender o inexplicável, a gente tende a qualificar as cenas de aglomeração ocorridas neste não Carnaval país afora, com especial destaque para o Rio de Janeiro, como produtos do negacionismo aliado à irresponsabilidade egoica.

Seja como for, tenha o nome que tiver esse tipo de coisa, chama atenção a semelhança das imagens de festas, bares e ruas apinhadas de gente com as fotos e vídeos do presidente da República desde o início da pandemia em franca produção de boas oportunidades para o coronavírus se espalhar, contaminar e muitas vezes matar.

Neste feriado não foi diferente, embora o comportamento das pessoas comuns (se é que podem ser chamadas assim) tenha sido bem pior. Pareciam tomadas por um apagão de consciência, como se o transcurso dos dias formalmente carnavalescos tivesse por si um efeito imunizante, quando ocorre o contrário: foi nas ruas do Leblon, nos bares da Lapa, nos bailes do Morro do Vidigal que o vírus fez sua folia, cuja conta será paga por todos daqui a alguns dias.

De folga em Santa Catarina, Jair Bolsonaro mais uma vez se dedicou à incansável tarefa de patrocinar confraternizações que lhe permitam ao mesmo tempo negar a gravidade da crise sanitária com atos — pois com palavras está temporariamente impedido para não ser acusado de trabalhar contra a vacinação — e produzir cenas de celebração popular para muito provavelmente usar na campanha à reeleição.

Monica de Bolle* - Auxílio Emergencial à deriva


- Revista Época

Com o estado crítico em que o Brasil está, ainda pandêmico e com novas variantes perigosas do vírus em circulação, o governo contempla a adoção de um novo auxílio. Mas não se enganem. A proposta em nada se assemelhará ao esforço de 2020

Em 2020, quando o vírus chegou ao Brasil, escancarou-se uma porta para que discutíssemos medidas de proteção social, a despeito do desprezo do presidente pelos direitos humanos. A porta foi escancarada por uma conjunção de fatores fortuitos: o vírus ainda era uma novidade no país, todos o temiam — exceto o presidente —, as medidas de lockdown eram mais aceitas do que hoje, as mortes na Itália e na Espanha haviam impactado o país de um modo que as mortes de centenas de milhares de brasileiros não impactariam. A sociedade aproveitou então os espaços surgidos, tendo no Congresso um aliado de ocasião devido a suas lideranças, e pressionou para que o auxílio fosse criado rapidamente. A pressão de grupos e pessoas, ao lado da disposição do Congresso, foi capaz de implantar o maior programa de proteção social da história brasileira.

Apesar dos tropeços, mais de 70 milhões de pessoas foram atendidas, a economia foi sustentada e a catástrofe foi atenuada. A queda do PIB em 2020 foi da ordem de mais de 10%, tal como eu projetava em março, e só não foi maior por causa do auxílio. Infelizmente, tanto os líderes do Congresso quanto o governo se recusaram a agir em função do que já era sabido, ou seja, que a pandemia não terminaria em dezembro. Preferiram orientar sua ação por sua vontade e deixaram o auxílio expirar. Agora, com o estado crítico em que o Brasil está, ainda pandêmico e com novas variantes perigosas do vírus em circulação, as VOCs, o governo contempla a adoção de um novo auxílio emergencial. Mas não se enganem. A proposta, qualquer que seja, em nada se assemelhará ao esforço de 2020.

Rogério Furquim Werneck - Jair, Guedes e Lira

- O Globo

Não falta agora quem queira se convencer que, com sua nova escalação, o governo passará a funcionar como um relógio suíço. E a verdade é que nem mesmo se sabe para que lado girará o relógio. Para vislumbrar com mais clareza divergências que terão de ser enfrentadas, é preciso perceber que Guedes, o Centrão e Bolsonaro acalentam visões muito distintas do que será possível extrair de 2021.

Há 12 meses, Guedes esperava que, na esteira da reforma da Previdência, 2020 fosse o ano do aprofundamento da consolidação fiscal, em que seriam aprovadas as três PECs que o governo submetera ao Congresso no final de 2019. É bem sabido que nada disso aconteceu. E, pior, entregue ao negacionismo, diante da eclosão da pandemia, o governo acabou levado de roldão por pressões políticas em favor da adoção de medidas de amenização dos desdobramentos socioeconômicos da disseminação da covid-19. E, tendo em vista a pressa e a improvisação com que foram concebidas, as medidas afinal aprovadas acabaram tendo impacto primário de mais de 8% do PIB nas contas do governo central, no ano passado.

O esforço de consolidação fiscal que agora se faz necessário afigura-se incomparavelmente mais difícil do que parecia em fevereiro do ano passado. E é mais que natural, portanto, que o ministro da Economia acalente a esperança de transformar 2021 num ano de vigorosa retomada do esforço de consolidação fiscal que teve de ser abandonado em 2020.

Nelson Motta - Dois casais e uma quarentena

- O Globo

Além da devastação econômica e das vidas perdidas na pandemia, me lembro de duas histórias sobre os efeitos do amor à distância. Ou perto demais

Além da devastação econômica e das vidas perdidas na pandemia, a quarentena gerou todo tipo de relatos reais e ficcionais do confinamento, na TV, nos jornais, blogs e redes sociais. E me lembro de duas histórias sobre os efeitos do amor à distância. Ou perto demais.

Um casal amigo, os dois na faixa dos quarenta, que vive junto há quatro anos, há algum tempo vem se afastando e se desgastando em intermináveis DRs, e sobrevivia com cada um mergulhado em seu trabalho o dia inteiro, com pouco espaço para convivência, discussões e brigas. Eles sabiam que o casamento já era, e nenhum acreditava em um reset positivo, mas mesmo assim viviam um arranjo em que fingiam acreditar que funcionava, ainda unidos por restos, ou hábitos, de uma atração sexual. Mas o confinamento atingiu-os em cheio, com os dois em home office, tornando obrigatória a convivência 24 horas por dia, como um Big Brother sem câmeras.

Flávia Oliveira - Um ano depois, nada aprendemos

- O Globo

No Brasil, há crença de que o ano começa depois do carnaval. O calendário da festa que não houve chegou ao fim, e o país conseguiu a proeza de reiniciar o ano velho. Em março de 2020, quando a Organização Mundial da Saúde declarou que a Covid-19 era uma pandemia, o novo coronavírus já estava em transmissão comunitária no país, e a primeira morte se avizinhava. Adentramos a crise sanitária com estrutura de atendimento insuficiente, economia patinando, rede de proteção social desmontada, ambiente político instável. Quase 12 meses e mais de 242 mil mortes depois, assistimos à suspensão da vacinação por falta de imunizante, ao Produto Interno Bruto desacelerando, à inflação em alta, ao auxílio emergencial interrompido — e por ser relançado. Nada aprendemos.

Um ano atrás, evoquei o tetraedro como figura geométrica apropriada a representar o ambiente que se avizinhava. O Brasil enfrentava uma crise com quatro faces: sanitária, econômica, social, política. Sob pressão da sociedade civil e de membros do Parlamento, o governo produziu respostas importantes, mas não suficientes. Mal planejadas, elaboradas sem cuidado, tiveram impacto localizado, muito em razão da sabotagem contínua do presidente da República às recomendações de distanciamento social e isolamento. Foi possível preservar empregos formais com os acordos de redução de jornada e salário, aplacar o aumento da pobreza com parcelas do auxílio emergencial, ampliar a oferta de leitos de enfermaria e UTI. Tudo por algum tempo.

Bruno Boghossian – Informação e desinformação

- Folha de S. Paulo

Informação é pedra no sapato de autoridades que têm algo a esconder ou querem extinguir contestação

Quando um governante decide dar um passeio fora dos limites da democracia, alguns de seus primeiros alvos costumam ser os tribunais e a imprensa. O autocrata tenta intimidar as cortes porque sabe que juízes conseguem impor um freio imediato a medidas autoritárias. O jornalismo não tem esse poder nas mãos, mas é um obstáculo diante de candidatos a ditador.

Um público bem informado é uma pedra no sapato para autoridades que têm algo a esconder ou que precisam extinguir focos de contestação. Ditaduras não convivem bem com uma imprensa livre porque a circulação de informações estimula o país a discutir e decidir seus próprios rumos –algo que um tirano não consegue suportar.

É normal que um político fique incomodado com o que lê nos jornais. Pode reclamar da postura crítica de um veículo, de uma reportagem que teve um peso maior do que ele gostaria ou até de uma informação errada. Ainda que jornalistas possam ficar contrariados, esse debate faz parte das regras democráticas. O problema ocorre quando as autoridades preferem jogar outro jogo.

Hélio Schwartsman - O que a Folha me ensinou

- Folha de S. Paulo

Errando e acertando, é jornalismo o que a Folha procura fazer

A Folha faz nesta sexta (19) 100 anos de existência. Eu, dentro de um par de meses, farei 33 anos de Folha. Foi meu primeiro e único emprego, ao qual cheguei por acidente.

É verdade que desde pequeno eu lia o jornal. Meu pai assinava a Folha e o Estado, e foi sobre o diário da alameda Barão de Limeira que minha atenção naturalmente recaiu. A Folha era visivelmente menos sisuda que o Estado na segunda metade dos anos 70. Nunca, porém, imaginei que um dia trabalharia no jornal.

A guinada veio em 1988. Recém-formado, em busca de algo para fazer antes de me dedicar integralmente ao que seria uma tese sobre a verdade em Platão, respondi a um anúncio da Folha em que ela recrutava tradutores. Não era bem assim. A vaga, na realidade, era para uma posição de redator na editoria de Exterior. Fiz a prova, a entrevista, fui chamado, aceitei e estou no jornal até hoje. Jornalismo vicia. A tese nunca foi escrita.

Esses 33 anos me ensinaram duas lições ontológicas. A primeira é sobre o papel do acaso, muito maior do que estamos dispostos a admitir. Uma edição de jornal nada mais é do que o catálogo dos principais acontecimentos fortuitos do dia anterior, do sorteio da Mega-Sena aos terremotos e acidentes. Assim como o acaso foi decisivo para a minha carreira, o é para tudo.

Ruy Castro - O cronista na primeira pessoa

- Folha de S. Paulo

A Folha me revelou que, por trás da bic ou do teclado, pode bater um coração

Numa vida a reboque de uma bic ou de um teclado, já escrevi para todo tipo de veículo: jornal, revista, livro, rádio, televisão, teatro, filme, disco infantil, letra de música, encarte de CD, catálogo de artista plástico, agenda, anuário, anúncio, panfleto, discurso e, pode crer, até aviso de falecimento para ser distribuído na esquina. Faltava-me escrever uma bula de remédio --mas meu dentista, dr. Americo Soeiro, pediu-me há tempos para ajudá-lo na descrição de um procedimento que estava introduzindo. Pronto, não falta mais.

Em todas essas mídias, no entanto, havia um formato para mim proibido: o confessional, a primeira pessoa. Em busca da informação, aprendi que a primeira pessoa só cabe à fonte, não ao repórter. Depois, como biógrafo, convenci-me disso --o ego do autor tem de ser invisível, só os personagens podem dizer "eu". E assim segui pela vida, neutro e objetivo. Até que, em 2007, Otavio Frias Filho me convidou a voltar à Folha, alternando com Carlos Heitor Cony na coluna Rio.

Seria minha terceira passagem pelo jornal —a primeira, em 1983-85, como repórter especial; a segunda, nos anos 80 e 90, como colaborador intermitente. A Folha tinha algo de que eu gostava —pode-se ocupar uma seção fixa, mas participa-se de todo o jornal. Em minhas outras passagens, eu colaborara até na Folhinha e no Agrofolha. Mas nunca tinha feito crônica. "Escreva sobre o que quiser", disse Otavio, "mas de um ponto de vista pessoal, carioca".

Música | Paulinho da Viola - Coração leviano

 

Poesia | Carlos Pena Filho - Retrato Campestre

Havia na planície um passarinho,
Um pé de milho e uma mulher sentada.
E era só. Nenhum deles tinha nada
com o homem deitado no caminho.

O vento veio e pôs em desalinho
a cabeleira da mulher sentada
e despertou o homem lá na estrada
e fez canto nascer no passarinho.

O homem levantou-se e veio, olhando
a cabeleira da mulher voando
na calma da planície desolada.

Mas logo regressou ao seu caminho
deixando atrás um quieto passarinho,
um pé de milho e uma mulher sentada.