Presidente deixará como legado o protagonismo do Congresso e o Executivo sem força, diz a cientista política Marta Arretche
“O Congresso ganhou protagonismo, dada a renúncia do presidente a cumprir as funções que o Executivo cumpria no Brasil”, diz Marta
Por Diego Viana | Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
SÃO PAULO - Tendo perdido o poder de liberar emendas parlamentares, o governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) deixará como legado um novo tipo de presidencialismo, em que o Congresso ganha força e o Executivo é mais fraco, afirma a cientista política Marta Arretche, diretora do Centro de Estudos da Metrópole da Universidade de São Paulo (CEM-USP). Esta é uma nova realidade na política brasileira desde a Constituição de 1988. Até então, o presidente da República detinha uma posição muito forte na negociação com o Legislativo.
Marta é uma das organizadoras, com Eduardo Marques (USP) e Carlos Aurélio Pimenta de Faria (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais), do livro “As Políticas da Política: Desigualdade e Inclusão nos Governos do PSDB e do PT” (Editora Unesp, 478 págs. R$ 78). O volume discute a implementação e a evolução das políticas públicas no Brasil, em áreas como educação, saúde e relações internacionais.
O maior defeito da Nova República, que está na origem da instabilidade das últimas décadas, é a bomba-relógio fiscal, já que a Constituição previu direitos dignos de um Estado de bem-estar social, mas com um sistema tributário regressivo, em que a população mais pobre paga uma proporção maior de sua renda em impostos do que as camadas mais favorecidas. Enquanto houvesse crescimento econômico, a bomba não explodiria. “Mas, quando o crescimento acaba, pronto”, afirma a cientista política.
Mesmo as políticas públicas mais bem-sucedidas e bem avaliadas são vulneráveis a um projeto de desmonte, segundo Marta, porque existem métodos invisíveis de desmontá-las. Ela avalia assim o caso das filas de espera do programa Bolsa Família e de reconhecimento dos pedidos de aposentadoria no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
O caso mais relevante, porém, é o do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), que vence em 31 de dezembro. O Executivo faz pouco esforço para renová-lo, o que, segundo Marta, “vai desorganizar o sistema educacional brasileiro”.
Valor: “As Políticas da Política” é aberto com um contraste: a Nova República começa com as altas expectativas e, 30 anos depois, dá lugar à decepção. Ela fracassou? Está encerrada?
Marta Arretche: A Nova República não foi feita só de déficit público, corrupção, crise econômica. Nas políticas de inclusão e combate à desigualdade, houve avanços importantes. O Brasil de 2015 era menos desigual, mais escolarizado, com menos pobreza, indicadores de bem-estar muito melhores do que o Brasil de 1984. Teríamos que continuar por muito tempo nesse caminho para chegar perto de uma sociedade civilizada. Os escândalos de corrupção e a crise econômica obscureceram os ganhos de bem-estar. Se isso vai sobreviver ou não, depende do sucesso de Bolsonaro, que tem uma agenda de desmontar as políticas que deram continuidade às aspirações civilizatórias da Constituição. Um presidente tem muitos recursos para desmontar políticas no Brasil, como já estamos vendo.
Valor: Que efeito pode ter a reforma do pacto federativo sobre as políticas?
Marta: Vejamos o caso da educação. O que acontecia até o governo FHC? Os Estados e municípios tinham que gastar 25% da receita de impostos e transferências com educação, mas havia município que tinha faculdade e não tinha pré-escola e ensino fundamental. O governo federal aprovou uma emenda constitucional e criou o Fundef [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério], dizendo: de agora em diante, o dinheiro vai para quem tem matrícula no ensino fundamental. Os Estados e municípios continuam oferecendo serviços de educação, mas têm incentivos para fazer ensino fundamental. Aí a escolarização cresceu. Com o PT, o Fundef virou Fundeb. O que Paulo Guedes diz? Que não é federação suficiente, devemos desvincular tudo e deixar cada um fazer o que quiser. Isso não é um passo atrás. São vários passos atrás. É voltar aos anos 80, quando o nível de desorganização correspondia a baixíssimos níveis de escolaridade.