domingo, 8 de março de 2020

Míriam Leitão - Imagine vencer a desigualdade

- O Globo

Para entender a desigualdade de gênero não basta olhar os dados, é preciso imaginar os sentimentos das mulheres discriminadas

Há vários estudos mostrando que existem vantagens econômicas em combater a desigualdade entre homens e mulheres em todas as áreas. No comando das empresas, por exemplo. Um estudo publicado na “Harvard Business Review” traz os resultados de uma pesquisa do Peterson Institute mostrando que há um aumento de 15% de lucratividade nas empresas que têm 30% de mulheres na diretoria em relação às que têm apenas homens. Mas o mais decisivo, quando o assunto é discriminação contra mulher, talvez não seja tangível.

Imagine um mundo em que nenhuma mulher seja morta pelo fato de ser mulher, em que jamais uma criança veja a sua mãe ser agredida, em que as meninas sejam estimuladas a pensar que seus sonhos não têm limites, em que não haja distribuição automática de papéis, em que os trabalhos da vida cotidiana sejam divididos harmoniosamente. Se você conseguiu pensar nesse mundo terá concluído que crianças terão menos traumas, mulheres, mais autoconfiança, a sociedade, mais igualdade e a economia, mais produtividade.

O estudo publicado na “Harvard Business Review” por Marcus Noland e Tyler Moran é de 2016, mas outros recentes confirmam o fenômeno. Eles fizeram uma pesquisa em 22 mil firmas globalmente. Em 60% delas, nenhum integrante do conselho de administração era mulher, em apenas metade delas havia algum integrante feminino na diretoria executiva e só 5% tinham mulher na presidência. Isso varia de país a país. A Noruega, de novo, na frente. O Japão, sempre atrás. O curioso é que os pesquisadores descobriram que não havia diferença na lucratividade se o CEO fosse homem ou mulher, mas diretorias e conselhos de administração com mais diversidade tinham melhor desempenho.

Merval Pereira - Ação e reação

- O Globo

Bolsonaro deu um salto triplo carpado e passou a convocar a manifestação do dia 15 retirando dela o caráter crítico aos Poderes da República

O presidente Bolsonaro, demonstrando o quão o faro político pode substituir sua tosca visão de mundo, deu ontem um salto triplo carpado e passou a convocar a manifestação do dia 15 retirando dela o caráter crítico aos poderes da República.

Não quer dizer, e ele sabe disso, que não haverá bonecos infláveis do presidente da Câmara Rodrigo Maia, ou faixas contra o Supremo Tribunal Federal (STF) e seus ministros, ou a imprensa independente.

Apenas, com a fala explícita, Bolsonaro, em tempos de coronavírus, lavou as mãos, dissociando-se da original manifestação baseada do “foda-se” o Congresso dito pelo General Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) em conversa vazada.

Quando apoiou reservadamente o movimento, em grupo de WhatsApp, Bolsonaro desencadeou crise institucional que ainda assombrava a manifestação convocada por seus seguidores nas mídias sociais. Distorcendo o sentido original da manifestação para ampliá-la em direção a uma improvisada advertência popular aos mandatários do país, inclusive ele próprio, Bolsonaro oficializa a manifestação e tira de seu apoio o caráter conspiratório.

Mas se exime de culpa caso ela retome seu rumo inicial de criticas aos que não “deixam o homem trabalhar”, no caso ele próprio. Foi um lance improvisado, sem dúvida, pois até mesmo seu filho Eduardo estava pedindo a correligionários que não fossem à manifestação para não criar embaraços políticos a seu pai.

Bolsonaro foi além e liberou os manifestantes. O ministro da Economia, Paulo Guedes, já tentara fazer isso, sem sucesso, junto aos movimentos populares de direita que organizam a manifestação. Sugeriu que ela fosse a favor das reformas, e não contra o Congresso. Mas não tem força política fora de sua área, nem a habilidade do presidente Bolsonaro, que consegue transformar as piores derrapadas em jogadas de mestre para os já convencidos.

O General Augusto Heleno, que pelo jeito gosta de uma disjuntiva, disse que é mentira que a manifestação seja contra a democracia, apesar de temas como intervenção militar ou fechamento do Congresso e do Supremo façam parte da pauta de reivindicações.

Ontem, contei aqui que ao ser consultado pelo presidente da Câmara Rodrigo Maia sobre o temor de deputados de estarem sendo grampeados nas conversas telefônicas ou gravados em encontros no Palácio do Planalto no inicio do governo, o ministro tranquilizou-o: “Isso aí acabou”. Uma negativa que traz consigo uma afirmação de que em algum momento houve.

Bernardo Mello Franco - A cavalaria do bolsonarismo

- O Globo

Recebido no Planalto, o empresário Emílio Dalçoquio ajuda a divulgar as marchas do dia 15. Ele acusa Congresso e STF de conspirarem contra os “interesses do povo”

Um cavaleiro se aproxima a galope, empunhando um escudo e a bandeira do Brasil. Vestido de templário da Casa Turuna, ele freia o tordilho e solta o brado retumbante: “Patriotas, venho de longe em sagrada missão!”. “Contra os comunistas e traidores da pátria!”, prossegue, antes de partir ao som de uma marcha militar.

O vídeo viralizou na sexta-feira, para orgulho do catarinense Emílio Dalçoquio Neto. Herdeiro de uma transportadora de cargas, ele se inspirou nas cruzadas para divulgar os atos governistas do dia 15.

“A ideia é mostrar que estamos numa guerra santa contra o comunismo”, explica o catarinense de 54 anos. Para ele, quem fez piada com a produção amadora não tem amor pelo país. “O vídeo incomodou, né? Comunista fica nervoso mesmo”, provoca.

O empresário está ansioso pelas manifestações do próximo domingo. O objetivo, ele diz, é acusar Legislativo e Judiciário de conspirarem contra o presidente. “O governo é ótimo, mas não deixam o Bolsonaro trabalhar. O Congresso e o STF estão contra os interesses do povo brasileiro”, esbraveja.

Dalçoquio afirma que o tribunal “vai ter problema” se barrar os projetos do presidente. Perguntei se o problema incluiria o uso das Forças Armadas, mas ele preferiu fazer mistério. “Não vou responder isso daí”, desconversou.

Luiz Carlos Azedo - Apelo às massas

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“Com o PIB de 1,1%, Bolsonaro tenta se vacinar e responsabilizar o Congresso pelo eventual fracasso. Não é o primeiro a apelar às massas quando o governo vai mal das pernas”

Com o restabelecimento do presidencialismo em janeiro de 1963 e a ampliação dos poderes do presidente João Goulart — que havia assumido o cargo após a renúncia de Jânio Quadros, não sem antes ter que derrotar uma tentativa de golpe militar para impedir sua posse —, a implementação das chamadas reformas de base passou a ser o eixo da disputa política nacional. Goulart apresentou às lideranças políticas um anteprojeto de reforma agrária que previa a desapropriação de terras com título da dívida pública, o que forçosamente obrigava a alteração constitucional. Uma segunda iniciativa para agilizar a agenda das reformas foi o encaminhamento de uma emenda constitucional, que propunha o pagamento da indenização de imóveis urbanos desapropriados por interesse social, com títulos da dívida pública.

Essas propostas, porém, não foram aprovadas pelo Congresso Nacional, o que provocou forte reação por parte dos grupos de esquerda, inclusive nas Forças Armadas. Em setembro de 1963, a Revolta dos Sargentos — movimento que reivindicava o direito de que os chamados graduados das Forças Armadas (sargentos, suboficiais e cabos) exercessem mandato parlamentar em nível municipal, estadual ou federal, o que contrariava a Constituição de 1946 — acirrou a polarização ainda mais. Entretanto, isso aumentou o isolamento de Jango, já agravado pelo rompimento com o Partido Social Democrático (PSD) e Juscelino Kubitschek, que era candidato a presidente nas eleições previstas para 1965.

Diante dessa situação, Jango pediu a Raul Ryff, seu secretário de Imprensa, que era membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que agendasse um encontro com o líder comunista Luiz Carlos Prestes. O encontro foi organizado por Antônio Ribeiro Granja, membro do secretariado do PCB, num apartamento em Copacabana. À época, Prestes já articulava a reeleição de João Goulart, o que era inconstitucional, à falta de melhor opção para enfrentar as candidaturas de Juscelino e de Carlos Lacerda (UDN), pois o ex-governador gaúcho Leonel Brizola, cunhado do presidente da República, era inelegível. O conselho de Prestes foi Jango apelar às massas e fazer as reformas de base por decreto. Para isso, os comunistas organizariam comícios populares em todos os estados do país, ao qual Jango compareceria.

A mobilização foi iniciada no dia 13 de março de 1964, com o comício realizado na estação da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, também denominado Comício das Reformas, ao qual compareceram cerca de 150 mil pessoas. Na ocasião, Goulart proclamou a necessidade de mudar a Constituição e anunciou a adoção de importantes medidas, como a encampação das refinarias de petróleo particulares e a possibilidade de desapropriação das propriedades privadas valorizadas por investimentos públicos, situadas às margens de estradas e açudes.

Era o começo de uma escalada fatal para democracia, pois, em resposta ao comício, várias manifestações e “marchas” foram convocadas por setores do clero e por entidades femininas. A primeira, A Marcha da Família com Deus pela Liberdade, ocorreu em São Paulo, a 19 de março, no dia de São José, padroeiro da família. Contou com a participação de cerca de 300 mil pessoas, entre as quais Auro de Moura Andrade, presidente do Senado, e Carlos Lacerda, governador do Estado da Guanabara. A última, no dia 2 de abril, após a derrubada de Jango, levou às ruas cerca de um milhão de pessoas e legitimou o golpe militar de 1964, revelando uma correlação de forças favorável à implantação do regime autoritário.

Dorrit Harazim - A ‘era da afluência’ acabou?

- O Globo

Coronavírus exporá carências, falhas ou falência múltipla do Estado provedor de saúde

Ao longo da história doenças contagiosas representam um duro teste para a grandeza ou estreiteza de visão dos governantes da época, e para sua fidelidade aos fatos. Crises trazidas por epidemias, pandemias ou outras emergências públicas também ajudam a retratar a sociedade em que vivemos, pois acentuam traços do comportamento coletivo de cada nação. Tome-se como exemplo bem comezinho o ocorrido num verão europeu dos anos 1960, quando as cidades de Londres e Paris sofreram quase simultaneamente uma alarmante escassez de água. Entre as medidas de racionamento aplicadas nos dois lados do Canal da Mancha estava a ordem de consumo de não mais de 40 litros por família, por semana. Na Inglaterra assim foi feito. Na França, já no primeiro dia da medida, a população tratou de logo encher potes, panelas, vasilhames e suas banheiras tão pouco usadas, antes que o vizinho o fizesse. Chacun pour soi, Dieu pour tous...

Com a Covid-19 não será diferente. Já ficou claro, por exemplo, que ao admirável asseio da família brasileira por mais desvalida que seja (o banho diário em qualquer barraco é quase de lei, seja com água trazida de longe ou insalubre) não corresponde uma compulsão nacional de lavar as mãos. Nem no morro nem no asfalto. Quase dois séculos depois de o húngaro Semmelweis ter brindado a humanidade com a descoberta de que lavar as mãos é remédio, o hábito agora talvez se incorpore ao nosso cotidiano tropical.

Elio Gaspari - O golpe do IRB, um teste para a CVM

- Folha de S. Paulo / O Globo

Espalhar boato para provocar a alta de uma ação é ideia velha, mas novidade estaria na exposição das minúcias

Quando o Instituto de Resseguros do Brasil era estatal, aconteciam por lá coisas tenebrosas. Saneado e privatizado, parecia ter tomado jeito. Agora se vê que alguns espertalhões usaram a empresa para dar o mais primitivo dos golpes: espalhar um boato otimista, faturá-lo e ir em frente. No mundo do papelório adora-se otimismo, desde que na outra ponta alguém esteja disposto a comprá-lo. Em dezembro de 2018 os çábios falavam que em 2019 o Produto Interno Bruto cresceria 2,55%. Cresceu 1,1%.

Com o IRB houve um otimismo direcionado, funcional e lucrativo. Desde janeiro as contas da empresa estiveram debaixo de chumbo até que, tchan, surgiu a informação de que Warren Buffett faria um investimento na empresa. O “Mago de Omaha” é aquele que toca numa ação e ela vira ouro.

O interesse de Buffett foi chancelado por çábios do mercado que juram ter ouvido a informação no próprio IRB e até mesmo de operadores do “Mago”. Num só dia as ações do IRB subiram 6,6% e chegaram a valer R$ 45.

Na quarta-feira, a empresa de Buffett soltou uma nota dura e humilhante, dizendo que “não é acionista, nunca foi acionista e não tem interesse em se tornar acionista” do IRB. Em apenas quatro dias da semana passada, a empresa perdeu R$ 13,4 bilhões em valor de mercado.

Nesse angu há de tudo. O presidente do Conselho pediu o chapéu em meados de fevereiro. O presidente do IRB e seu diretor financeiro caíram na quarta-feira. Lá atrás, a diretoria se habilitou a receber um bônus de R$ 61,9 milhões. A queda do valor da ação para R$ 17 sugere que havia algo errado nas contas do IRB mesmo antes da patranha envolvendo Buffett.

Pedro Guimarães, presidente da Caixa e novo titular do conselho de administração da empresa, passou a tesoura em alguns bônus e informou que “queremos entender, no detalhe, essa questão”.

Bingo, pois nessa questão a essência estará nos detalhes. O golpe de espalhar boato para provocar a alta de uma ação é velho. A novidade estaria na exposição das minúcias, pois todos os çábios que fazem conferências fechadas para investidores ou assinam relatórios de análises para aquilo que chamam de “mercado” têm nome e sobrenome.

8 de março – Editorial | Folha de S. Paulo

Se há o que comemorar no Dia da Mulher, o avanço é lento diante de disparidades

O Dia Internacional da Mulher, celebrado neste 8 de março, inspira-se nos protestos encampados por trabalhadoras que, no começo do século 20, se insurgiram contra uma ordem social e política em tudo iníqua ao gênero feminino.

A efeméride só veio a tornar-se oficial em 1975, ano que as Nações Unidas consagraram à lembrança dos direitos conquistados ao longo de décadas de lutas persistentes.

Hoje, a igualdade entre homens e mulheres, ao menos no plano das leis, consolidou-se como realidade inexorável e quase universal. Em que pesem tais avanços, permanece ainda grande a desigualdade de gênero nas mais diversas sociedades do planeta —e a brasileira não seria exceção.

O último relatório do Fórum Econômico Mundial a avaliar os avanços nessa seara situa o Brasil numa pouca honrosa 92ª posição, dentre 153 nações. Regionalmente, nosso desempenho afigura-se ainda pior. Dentre os 25 países da América Latina, ocupamos somente o 22º lugar.

As disparidades mais graves, segundo o documento, se dão nos campos das relações de trabalho e da representatividade política.

Dados do IBGE mostram que, em 2018, as mulheres receberam em média salários 20,5% menores que os dos homens. Elas também têm mais dificuldades para galgar os cargos mais altos do setor privado. Apenas 19% das companhias nacionais possuem mulheres em postos elevados de gestão.

O mesmo ocorre em áreas da esfera pública. No Judiciário, por exemplo, a participação feminina no total de magistrados é de 37,5%. Nos tribunais estaduais de segunda instância, porém, essa proporção cai para 20%.

Patrícia Campos Mello - No Brasil, ser mulher nos transforma em alvo de ataques

- Folha de S. Paulo

Tem gente que vê graça em linchamento misógino; o que achariam se a piada fosse com a filha deles?
Como diz o clichê, uma imagem vale mais do que mil palavras.

Quanto valerá uma foto em que uma mulher aparece pelada, de pernas abertas, em cima de uma pilha de notas de dólares, chamada de piranha? E uma em que o rosto dessa mesma mulher aparece com a legenda: “Folha da Puta — tudo por um furo, você quer o meu? Patrícia, Prostituta da Folha de S.Paulo — troco sexo por informações sobre Bolsonaro”? E outra em que essa mulher —sempre a mesma— aparece com a frase: “Ofereço o cuzinho em troca de informação sobre o governo Bozo”?

Peço desculpas pelas palavras grosseiras, mas estou apenas descrevendo alguns dos incontáveis memes que eu recebo todos os dias, que são compartilhados por milhares de pessoas pelo WhatsApp, Facebook, Twitter e Instagram. É o meu rosto e o meu nome que estão nesses memes.

Tem gente que acha isso engraçado. Como disse um blogueiro governista, isso não é um ataque a jornalistas, é apenas uma maneira de tirar sarro, “que falta de senso de humor”. Um humorista que imita o presidente Jair Bolsonaro também se matou de rir e ainda debochou das reações, imitando choradeira.

Será que esse pessoal acharia graça se essa “piada” fosse com a irmã, a mulher ou a filha deles?

Este linchamento virtual começou depois que Hans River do Rio Nascimento, ex-funcionário da agência de marketing Yacows, fez um depoimento à CPMI das Fake News.

Hans foi entrevistado para a reportagem “Fraude com CPF viabilizou disparo de mensagens de WhatsApp na eleição”, publicada pela Folha em 2 de dezembro de 2018 e escrita pelo repórter Artur Rodrigues e por mim. A reportagem, baseada em documentos públicos da Justiça do Trabalho, fotos, planilha e em relatos de Hans mostrou que uma rede de empresas, entre elas a Yacows, recorreu ao uso fraudulento de nome e CPFs de idosos para registrar chips de celular e garantir o disparo de lotes de mensagens em benefício de políticos.

Em seu depoimento à CPMI, Hans contou diversas mentiras, entre elas a de que eu teria tentado obter informação “a troco de sexo”.

Algumas horas após o depoimento, publicamos reportagem que, com provas concretas, desmentiu Hans de forma cabal. As entrevistas com ele haviam sido gravadas, com a sua permissão; as fotos e a planilha que ele mandou tinham sido salvas, assim como todas as trocas de mensagem.

Essas provas revelavam que o depoente havia mentido à CPMI em diversos pontos. Tudo isso foi anexado ao processo que estou movendo contra ele.

Nada disso importou. O deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente da República, tratou de espalhar as calúnias rapidamente.

Fez vídeo ecoando a mentira e distribuiu em suas redes sociais. Reproduziu as ofensas de Hans em diversos comentários em sua conta do Twitter, que tem 1,8 milhão de seguidores. Fez questão de subir na tribuna da Câmara dos Deputados e dizer, enquanto era filmado: “Eu não duvido que a senhora Patrícia Campos Mello, jornalista da Folha, possa ter se insinuado sexualmente, como disse o senhor Hans, em troca de informações para tentar prejudicar a campanha do presidente Jair Bolsonaro”.

Janio de Freitas - Cavalão, cavalariços e alguns corajosos

- Folha de S. Paulo

Convocação com fotos de generais da cúpula está vista como um sintoma do golpismo

Se é Cavalão, escoiceia. É da sua natureza, identificada e batizada pelos colegas. Mas as duas afirmações mais recentes da peculiaridade natural causaram danos severos.

Ao próprio Jair Bolsonaro, com seus ataques à repórter Patrícia Campos Mello e depreciação anatômica de todas as mulheres; e danos vários com seu chamado a uma manifestação contra o Congresso e o Supremo.

Essa convocação, com fotos de generais da cúpula do governo, está vista como um sintoma do golpismo não mais latente, já em pregação ostensiva. A gravidade maior e mais sugestiva nesse passo de Bolsonaro não está, porém, na convocação em si. E nem mesmo nas fotos dos generais. É esta: se o uso não foi autorizado, generais indicaram aceitá-lo, à falta de providência, qualquer uma, para mostrar-se contrários à convocação e ao pretendido ataque a dois dos Poderes.

Ex-integrante da caserna presidencial, de demissão mal esclarecida, o general Santos Cruz propôs-se a desanuviar o ônus, para o Exército, das fotos e daquele silêncio comprometedores. “Militares não são políticos”, “militares são profissionais”, “são guardiães da Constituição”. Sim, militar que é militar é isso mesmo. Mas não é assim, aqui, do Império à convocação feita por Bolsonaro com as fotos de generais que o acompanham no governo. E isso é História, é um correr de fatos documentados, não é opinião.

Bruno Boghossian – O retorno do Pessimildo

- Folha de S. Paulo

Bolsonaro e sua equipe reeditam as cassandras de FHC e o Pessimildo de Dilma

O governo decidiu encarar as dificuldades da economia como uma mera briga de arquibancadas. Depois que o PIB registrou um crescimento frustrante em 2019, a equipe de Jair Bolsonaro deformou os números para dizer que tudo vai bem. Os dados ruins seriam só “mentiras de quem torce contra o Brasil”.

Quando governantes trombam com sinais negativos e tentam convencer a população de que a culpa é dos pessimistas, é sinal de que já existem engrenagens girando em falso.

Confrontado com os sintomas de uma crise econômica no fim de 1998, Fernando Henrique Cardoso reclamava das cassandras, em referência à personagem da mitologia grega conhecida por suas previsões negativas. Nos meses seguintes, o país registrou crescimento de menos de 0,5% e a cotação do dólar disparou.

A tática é útil sobretudo para políticos que querem esconder seus erros. Em 2014, a campanha de Dilma Rousseff criou um personagem ranzinza para zombar de rivais que apontavam para o colapso econômico que se desenhava. O Pessimildo foi um fiasco na propaganda eleitoral, mas a petista se reelegeu e colheu os efeitos de suas barbeiragens.

Ruy Castro* - A mesma voz, a mesma bossa

- Folha de S. Paulo

Doris Monteiro se aproxima dos 70 anos de carreira —qual outra cantora chegou lá?

Uma cantora brasileira se prepara para comemorar, em 2021, 70 anos de carreira: Doris Monteiro.

A data está nos anais: 7 de agosto de 1951. Foi quando Doris, ainda a três meses de fazer 17 anos, gravou seu primeiro disco: um 78 r.p.m., no estúdio da pequena Todamérica, com "Se Você Se Importasse", de Peterpan, de um lado, e "Fecho Meus Olhos... Vejo Você", de José Maria de Abreu, do outro. Dois sólidos sambas-canção cujas letras a jovem Doris, com sua trança unilateral e mãe portuguesa a tiracolo, não tinha vivência para entender. Mas ela aprendeu rápido.

Um atrás do outro, Doris ajudou a deslanchar compositores como Tom Jobim e Dolores Duran ("Se É Por Falta de Adeus"), o hoje injustamente esquecido Fernando Cesar ("Dó-Ré-Mi", "Graças a Deus" e "Joga a Rede no Mar"), Billy Blanco ("Mocinho Bonito), Silvio Cesar ("O Que Eu Gosto em Você"), Sidney Miller ("Alô Fevereiro"), Mauricio Tapajós e Herminio Bello de Carvalho ("Mudando de Conversa"). Sua gravação de "O Pato", de 1981, rivaliza com a de João Gilberto. Teve uma curta, mas impressionante carreira no cinema, fez duplas definitivas com Miltinho, Lucio Alves e Tito Madi e foi um dos rostos mais bonitos da música brasileira.

Vinicius Torres Freire - Dívida em alta, finanças em baixa

- Folha de Paulo

Endividamento não estava tão alto fazia cinco anos

As famílias brasileiras não estavam tão endividadas havia pelo menos cinco anos. As mais ricas, as que dispõem de alguma poupança financeira, viram algumas de suas aplicações levarem tombos feios nas últimas semanas. De resto, a tradicional vaca leiteira da renda fixa tem rendido nada ou algo abaixo de nada e tende a render menos ainda até o ano que vem, no mínimo.

Parece haver novidades nas finanças das famílias. O choque do vírus pode balançar essas contas. Qual seria o impacto desses possíveis abalos no crescimento da economia, que era mínimo mesmo antes do coronavírus e do surto renovado da praga da baderna política do governo?

A dívida equivalia na média a 45% do rendimento anual das famílias em dezembro de 2019, dado mais recente dessa estatística calculada pelo Banco Central. Está bem perto dos níveis recordes de 2015 (a série começa em 2005). O total de dinheiro emprestado pelos bancos às pessoas físicas equivalia em janeiro deste ano a 28% do PIB, a proporção mais alta dessa série de dados que começa em 2007, também do Banco Central.

Difícil dizer se é muito, apesar dos recordes. Até janeiro, pelo menos, não havia sinal de alerta na inadimplência nos financiamentos bancários; os bancos ainda pareciam animados de conceder crédito.

O serviço da dívida (pagamento de juros e amortização) levava 20,2% da renda mensal, na média, no fim de 2019. Voltara aos níveis de 2017, mas com peso não muito diferente daquele registrado desde 2011. Esse nível seria um limite?

Receita para a ruptura – Editorial | O Estado de S. Paulo

Num regime democrático, o governo não pode tratar o Congresso como inimigo. Ao fazê-lo – por exemplo, ao dizer que o país não avança porque os parlamentares não aprovam ou sabotam seus projetos –, o governo manifesta inclinação pelo autoritarismo e, no limite, dá a entender que não reconhece a legitimidade dos deputados e senadores igualmente eleitos pelo voto direto. Quem age assim sugere disposição de criar um clima de confronto, algo que só interessa a quem acalenta tendências autoritárias.

A democracia supõe a prevalência do desejo da maioria, mas essa maioria só se constitui momentaneamente, depois de amplo debate público, no qual os pontos de vista divergentes também são considerados. Ou seja, não existe maioria constituída a priori, por mais que os governantes interpretem sua plataforma política como sendo o desejo majoritário do país.

Os projetos de qualquer governante, ainda que este tenha recebido expressivo aval das urnas, precisam ser negociados um a um no Parlamento, que por sua vez reflete a multiplicidade de interesses da sociedade e deve igualmente proteger a minoria contra a tirania da maioria. Ou seja, a maioria dos votos nas eleições precisa ser convertida em apoio no Parlamento – a isto se dá o nome de política.

Para conseguir implementar as ideias com as quais se elegeu, o governante precisa dialogar com as diversas forças democráticas do país, num duro trabalho de convencimento. Nessa tarefa, o sucesso obviamente depende muito da capacidade do governante de argumentar em favor de seus projetos, mas, antes de mais nada, depende de uma demonstração cabal de respeito pelo órgão deliberativo. Isso se dá quando o governante expressa disposição para conversar e explicar em detalhes o que pretende, dando aos parlamentares o esclarecimento necessário para que estes ponderem e calibrem a matéria antes de comunicar sua decisão pelo voto.

Rolf Kuntz* - Nem palhaçada disfarça o fiasco econômico de 2019

- O Estado de S. Paulo

Enquanto os mercados tremem e o cenário piora, o governo nega problemas e riscos

O presidente Jair Bolsonaro colecionou mais dois fiascos no início de março, comprovando mais uma vez seu despreparo para a chefia do governo, ou, mais provavelmente, para o exercício sério de qualquer função pública. Foi um fiasco a palhaçada na frente do Alvorada, na quarta-feira, promovida para disfarçar ou desqualificar um fracasso muito mais importante, o desastre econômico do ano passado, o primeiro do atual mandato. Em 2019 o produto interno bruto (PIB) cresceu 1,1%, menos que em 2017 e 2018, quando o ritmo anual chegou a 1,3%. Além disso, o resultado de 2018 poderia ter sido melhor sem a tensão política no segundo semestre e sem o indefensável bloqueio de estradas, façanha apoiada pelo deputado Jair Bolsonaro, candidato à Presidência.

Eleito, ele continuou mimando os caminhoneiros bloqueadores de rodovias, muito mais importantes, em sua agenda, do que milhões de desocupados, desalentados e marginalizados numa economia ainda frágil. Na maior parte do ano passado essa agenda incluiu, entre as prioridades, assuntos como a posse e o porte de armas, tratados como temas de grande relevância para uma sociedade recém-saída de uma recessão e ainda atolada no desemprego.

A palhaçada presidencial pode ter agradado ao público reunido diante do Alvorada, dia após dia, para aplaudir a desinformação de Bolsonaro e suas grosserias habituais contra a imprensa. Sem participar da pantomima, os jornalistas limitaram-se a esperar comentários do presidente sobre o fiasco econômico do ano anterior. Ele se recusou a falar do PIB. Sem respostas dignas de um governante, os mesmos jornalistas divulgaram, depois, o espetáculo sem graça do líder de um governo abaixo de mambembe. Circos mambembes são pobres e artisticamente limitados. Mas ainda agradam pela graça ingênua, normalmente evitando os pecados da grosseria e da baixaria, marcas inegáveis de um presidente sem decoro e sem respeito ao seu cargo.

Roberto Romano* - Forças Armadas e soberania

- O Estado de S. Paulo

Presidente deve ser advertido sobre as consequências de quebrar a hierarquia...

Os enunciados seguintes são dirigidos às Forças Armadas. Tempos atrás publiquei neste espaço o texto intitulado Presidência subversiva. Nele discuto os dilemas por nós vividos diante da imprudência – em assuntos graves – evidente no chefe de Estado. Lembrei os monopólios da força, norma jurídica, impostos.

Mencionei a hierarquia do poder público, sobretudo no setor militar. Sem ela desaparece a instituição estatal, da administração à justiça e à defesa armada. O enfraquecimento da ordem hierárquica preocupa as mentes democráticas. O pior desafio dessa anomia é que ela tem origem na pessoa que deve zelar pelo respeito às normas. A subversão do palácio é partilhada pelos que precisam garantir a segurança coletiva.

Para discutir aqueles itens retomo o polêmico conceito de soberania. Na ONU o enunciado fundamenta a tese consagrada por Tomas Hobbes de que o Estado possui suprema autoridade no território, plenitude da jurisdição interna, imunidade diante da jurisdição de outros Estados. Para todos o nível hierárquico é o mesmo. No plano interno a soberania define o único poder com direito legítimo de administrar corpos e mentes. Mas no campo interno existe hierarquia e sem ela desaparece o Estado. A soberania – segundo o termo filosófico antigo – é a alma do poder público. Sem ela resta um mecanismo fragmentado e caótico.

No Brasil a soberania sofreu atentados cujos frutos definem nossa História. O enorme território custou guerras em sua preservação. Violências foram cometidas contra os habitantes anteriores: no campo anímico, os sacerdotes católicos e na carne, os caçadores de riquezas. O trato entre colonos foi definido pela violência e falta de controle legal. Os sermões do padre Vieira denunciam, além da corrupção, o frágil respeito pela vida e pelas propriedades civis. No século 18 surgem os primeiros reclamos de soberania nas regiões coloniais.

Vera Magalhães - Mulheres

- O Estado de S.Paulo

Ser jornalista mulher nos dias de hoje traz desafios e mudou minha relação com a data

Sou daquelas que nunca deram bola para o Dia Internacional da Mulher. Cheguei a soar grosseira ao vivo no rádio com o querido Joseval Peixoto, quando ele me parabenizou pela data e eu disse que ela não significava muito para mim.

Mas minha relação com o feminismo vem mudando ao longo dos anos. Que bom que podemos nos atualizar, rever conceitos e convicções arraigadas ao longo do tempo. Ou então envelhecer seria apenas perder colágeno e massa muscular, ver os cabelos embranquecerem e as rugas aparecerem, e não seria nem um pouco justo ou divertido.

Não sou nem serei nunca uma militante feminista. Não é da minha natureza militar por esta ou aquela causa, nem me encaixar em coletivos ou agremiações. Mas hoje eu compreendo muito melhor que há alguns anos os estigmas, os riscos e as dificuldades que ainda hoje, em pleno século 21, recaem sobre as mulheres pelo simples fato de sermos quem somos, do gênero feminino. E isso não é algo a respeito do que quem tem uma posição pública pode calar.

Tempos anormais têm o efeito de nos tirar da nossa zona de conforto. E se isso traz grandes perturbações e muitos dilemas, também leva a descobertas reconfortantes. Ser uma jornalista cobrindo o governo de um presidente que afronta diariamente a imprensa e, especificamente, as mulheres, ofendendo, difundindo fake news, tentando intimidar repórteres ou silenciar perguntas é um desses desafios.

Passei esta semana repensando minha relação com a efeméride, seu significado. Na última quarta-feira fui convidada pela atriz Regina Duarte para sua posse na Secretaria de Cultura. Viajei a Brasília para isso e, quando disse a amigos e colegas que iria ao Palácio do Planalto, as reações se assemelharam às que eu esperaria ouvir se anunciasse que estava indo me internar num hospital de Wuhan para cobrir sem máscara o surto do novo coronavírus. “Mas você vai ao PALÁCIO? Sozinha?”

Eliane Cantanhêde - Trump e Bolsonaro

- O Estado de S. Paulo

Acordo com EUA amplia acesso do Brasil ao mercado de defesa mundial

O Brasil poderá dar importante salto no complexo universo de defesa amanhã, em Miami, quando fecha um acordo com os Estados Unidos para pesquisa, desenvolvimento, testes e avaliação de produtos nessa área. Esse acordo materializa a aliança extra-OTAN, amplia o acesso do Brasil ao riquíssimo mercado internacional de defesa e, indiretamente, melhora a posição brasileira na disputa por uma vaga à OCDE.

O Brasil é o 14.º país no seleto grupo que já fez esse mesmo acordo com os EUA, sob a sigla RDT&E. Nenhum deles é da América Latina, nem mesmo do Hemisfério Sul: França, Inglaterra, Itália, Holanda, Alemanha, Índia, Suécia, Estônia, Finlândia, Noruega e Coreia do Sul. O objetivo é harmonizar produtos de defesa com base nos EUA e na OTAN.

Depois de jogar todas as fichas na aproximação com os EUA, sem receber o equivalente em troca, finalmente o presidente Jair Bolsonaro - que jantou ontem com Donald Trump em Palm Beach - pode dizer que está fazendo um gol. Para Defesa e Itamaraty, um golaço. Para os céticos, uma dúvida: o governo tem obsessão por defesa, mas e a desigualdade social?

Não confundir indústria de defesa com indústria de armas e munições, que reúne só 1,7% das empresas do setor no Brasil. Todo o resto é, em resumo, nas áreas de satélites, comunicações, segurança cibernética, plataformas terrestres e navais, controle aéreo e por aí afora. De todas, só três são estatais, Emgepron, Imbel e Amazul.

Do ponto de vista estratégico, essas áreas não dizem respeito só às Forças Armadas, mas trazem benefícios para a tecnologia, a indústria em geral e a sociedade civil, como ocorreu com a internet e o GPS, entre tantos outros.

José Roberto de Mendonça de Barros - O encanto quebrou

- O Estado de S. Paulo

As vendas na Black Friday foram a última boa notícia. A partir daí, o ambiente começou a se turvar

Logo após a aprovação da reforma da Previdência, em 23 de outubro passado, um nítido entusiasmo tomou conta de muitos observadores, empresas e mercados em geral. A volta de um crescimento robusto, de até 3%, em 2020 seria consequência do avanço esperado do programa econômico de Paulo Guedes.

Em certa medida, essa reação não era fora de propósito, pois ficou evidente que o atual Congresso simpatizava, como de resto até hoje, com a pauta reformista. Esta contava com várias emendas constitucionais e projetos de lei que tratavam de questões necessárias para destravar de vez o crescimento, especialmente aquelas que reforçam o ajuste fiscal (PEC emergencial e do pacto federativo), e as pautas necessárias para estimular o investimento e a eficiência, como a reforma tributária, o marco do saneamento, o das Parcerias Público Privadas e outras.

Além disso, os resultados do PIB do segundo e terceiro trimestres haviam mostrado números robustos, de 0,6% em cada um deles, e alguma retomada em vários setores, como a construção civil. O ano de 2019 deveria apresentar um final bem melhor, também reforçado pela queda dos juros a patamares historicamente baixos.

O avanço da Bolsa de Valores, especialmente empurrada pela crescente presença das pessoas físicas, foi também uma consequência lógica dessa queda, contribuindo para um certo entusiasmo.

Entretanto, a venda de bens duráveis na Black Friday foi a última boa notícia do final do ano. A partir daí, o ambiente começou a se turvar e o encanto com a política econômica e o crescimento se quebrou, já antes do aparecimento do coronavírus.

A questão é saber por quê.

‘Bolsonaro optou por ser fraco’, diz cientista política

Presidente deixará como legado o protagonismo do Congresso e o Executivo sem força, diz a cientista política Marta Arretche

“O Congresso ganhou protagonismo, dada a renúncia do presidente a cumprir as funções que o Executivo cumpria no Brasil”, diz Marta

Por Diego Viana | Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

SÃO PAULO - Tendo perdido o poder de liberar emendas parlamentares, o governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) deixará como legado um novo tipo de presidencialismo, em que o Congresso ganha força e o Executivo é mais fraco, afirma a cientista política Marta Arretche, diretora do Centro de Estudos da Metrópole da Universidade de São Paulo (CEM-USP). Esta é uma nova realidade na política brasileira desde a Constituição de 1988. Até então, o presidente da República detinha uma posição muito forte na negociação com o Legislativo.

Marta é uma das organizadoras, com Eduardo Marques (USP) e Carlos Aurélio Pimenta de Faria (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais), do livro “As Políticas da Política: Desigualdade e Inclusão nos Governos do PSDB e do PT” (Editora Unesp, 478 págs. R$ 78). O volume discute a implementação e a evolução das políticas públicas no Brasil, em áreas como educação, saúde e relações internacionais.

O maior defeito da Nova República, que está na origem da instabilidade das últimas décadas, é a bomba-relógio fiscal, já que a Constituição previu direitos dignos de um Estado de bem-estar social, mas com um sistema tributário regressivo, em que a população mais pobre paga uma proporção maior de sua renda em impostos do que as camadas mais favorecidas. Enquanto houvesse crescimento econômico, a bomba não explodiria. “Mas, quando o crescimento acaba, pronto”, afirma a cientista política.

Mesmo as políticas públicas mais bem-sucedidas e bem avaliadas são vulneráveis a um projeto de desmonte, segundo Marta, porque existem métodos invisíveis de desmontá-las. Ela avalia assim o caso das filas de espera do programa Bolsa Família e de reconhecimento dos pedidos de aposentadoria no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).

O caso mais relevante, porém, é o do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), que vence em 31 de dezembro. O Executivo faz pouco esforço para renová-lo, o que, segundo Marta, “vai desorganizar o sistema educacional brasileiro”.

Valor: “As Políticas da Política” é aberto com um contraste: a Nova República começa com as altas expectativas e, 30 anos depois, dá lugar à decepção. Ela fracassou? Está encerrada?

Marta Arretche: A Nova República não foi feita só de déficit público, corrupção, crise econômica. Nas políticas de inclusão e combate à desigualdade, houve avanços importantes. O Brasil de 2015 era menos desigual, mais escolarizado, com menos pobreza, indicadores de bem-estar muito melhores do que o Brasil de 1984. Teríamos que continuar por muito tempo nesse caminho para chegar perto de uma sociedade civilizada. Os escândalos de corrupção e a crise econômica obscureceram os ganhos de bem-estar. Se isso vai sobreviver ou não, depende do sucesso de Bolsonaro, que tem uma agenda de desmontar as políticas que deram continuidade às aspirações civilizatórias da Constituição. Um presidente tem muitos recursos para desmontar políticas no Brasil, como já estamos vendo.

Valor: Que efeito pode ter a reforma do pacto federativo sobre as políticas?

Marta: Vejamos o caso da educação. O que acontecia até o governo FHC? Os Estados e municípios tinham que gastar 25% da receita de impostos e transferências com educação, mas havia município que tinha faculdade e não tinha pré-escola e ensino fundamental. O governo federal aprovou uma emenda constitucional e criou o Fundef [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério], dizendo: de agora em diante, o dinheiro vai para quem tem matrícula no ensino fundamental. Os Estados e municípios continuam oferecendo serviços de educação, mas têm incentivos para fazer ensino fundamental. Aí a escolarização cresceu. Com o PT, o Fundef virou Fundeb. O que Paulo Guedes diz? Que não é federação suficiente, devemos desvincular tudo e deixar cada um fazer o que quiser. Isso não é um passo atrás. São vários passos atrás. É voltar aos anos 80, quando o nível de desorganização correspondia a baixíssimos níveis de escolaridade.

Alberto Aggio - Um Gramsci para o século XXI

Prefácio do livro A arquitetura fractal de Antonio Gramsci

- Blog do Aggio

O livro de Marcus Vinicius Oliveira, versão revisada de sua tese de doutorado, tem uma qualidade notável que se observa de imediato. Ao se fixar na leitura do texto original dos Quaderni del Carcere, escritos por Antonio Gramsci nas prisões do fascismo, o autor esclarece de saída que eles se transformam em “obra” por meio das várias edições a que foi submetido desde o final da Segunda Grande Guerra. Levar isso em conta já é um grande mérito porque compreende claramente sua principal fonte de pesquisa e exploração reflexiva além de estabelecer um critério de interpretação historiográfica hoje considerado absolutamente necessário para o entendimento do pensamento de Gramsci.

Como se sabe, Gramsci nunca publicou um livro em vida e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, primeiramente publicados a partir de temas que se entrecruzavam nos Quaderni, para só depois, na década de 1970, ganharem uma “edição crítica” que buscou acompanhar a cronologia da escritura gramsciana. Hoje, os Quaderni, junto a outros textos e cartas de Gramsci, estão sendo organizados na denominada “edição nacional”, que já conta com alguns volumes publicados na Itália. Para Marcus Vinicius, os editores, os estudiosos e os comentadores de Gramsci formam o conjunto de “intelectuais mediadores” que deram vida à difusão do pensamento de Gramsci e são tratados com a distância e a importância historiográfica que têm cada um deles.

Por essa razão, a pesquisa que subsidia a tese e o livro não teria como deixar de levar em conta as atuais correntes interpretativas do pensamento de Gramsci, relevando tanto a leitura filológica do pensador sardo, que enfatiza a compreensão dos seus conceitos no ato da escritura, quanto o viés de “historicismo integral” que procurou analisar simultaneamente pensamento e vida como a interpretação mais profícua de Gramsci, fazendo jus ao líder político do comunismo italiano, primeiro, para em seguida aloca-lo no corpo dos pensadores democráticos do século XX.

O que a mídia pensa - Editoriais

8 de março – Editorial | Folha de S. Paulo

Se há o que comemorar no Dia da Mulher, o avanço é lento diante de disparidades

O Dia Internacional da Mulher, celebrado neste 8 de março, inspira-se nos protestos encampados por trabalhadoras que, no começo do século 20, se insurgiram contra uma ordem social e política em tudo iníqua ao gênero feminino.

A efeméride só veio a tornar-se oficial em 1975, ano que as Nações Unidas consagraram à lembrança dos direitos conquistados ao longo de décadas de lutas persistentes.

Hoje, a igualdade entre homens e mulheres, ao menos no plano das leis, consolidou-se como realidade inexorável e quase universal. Em que pesem tais avanços, permanece ainda grande a desigualdade de gênero nas mais diversas sociedades do planeta —e a brasileira não seria exceção.

O último relatório do Fórum Econômico Mundial a avaliar os avanços nessa seara situa o Brasil numa pouca honrosa 92ª posição, dentre 153 nações. Regionalmente, nosso desempenho afigura-se ainda pior. Dentre os 25 países da América Latina, ocupamos somente o 22º lugar.

As disparidades mais graves, segundo o documento, se dão nos campos das relações de trabalho e da representatividade política.

Música | Teresa Cristina - Lucidez

Poesia | Cora Coralina -Todas as vidas

Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando pra o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...

Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho,
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.

Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.

Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
– Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos.
Seus vinte netos.

Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fado.

Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida –
a vida mera das obscuras.