segunda-feira, 27 de abril de 2015

Opinião do dia – Fernando Gabeira

Uma das piores consequências da decadência política brasileira foi termos sido forçados a discutir a roubalheira, a derrubar álibis e imposturas, enquanto o mundo segue seu curso perigosamente. A crise brasileira não é produto direto da crise mundial, como diziam as mentiras eleitorais. Supor que essas crises não se entrelacem, por outro lado, é uma forma de enterrar a cabeça na areia.

É natural que todos queiram saber se Dilma cai ou não cai. Infelizmente, inúmeras outras desgraças se anunciam nas nuvens. No tempo em que a esquerda se dizia marxista, pelo menos era possível discutir o mundo. A passagem ao bolivarianismo estreitou seus horizontes ao nível mental de tiranetes sul-americanos, tão bem descritos pelo próprio Marx. Ainda por cima, inventaram uma presidente que não gosta de política externa.

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Fernando Gabeira, jornalista, em artigo ‘Aos que vão morrer’. O Globo, 26 de abril de 2015

Órgão antilavagem emite alerta a bancos e põe servidor público em ‘grupo de risco’

• Coaf pede que instituições financeiras e empresas que lidam com bens de luxo passem a comunicar qualquer movimentação atípica

Andreza Matais – O Estado de S. Paulo

BRASÍLIA - O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) vai disparar nesta semana alertas a bancos, empresas e outras instituições para que passem a comunicar qualquer movimentação atípica envolvendo servidores públicos.

Também integram o “grupo de risco” do Coaf agências de turismo, postos de gasolina que realizam factoring(negociação de créditos), empresas de comércio exterior – em razão de remessas ilegais –, importadores de produtos que podem ser usados para produzir drogas, sites de vendas de internet, movimentações de cartões de benefícios – pelos quais pode-se praticar agiotagem –, contas bancárias de estudantes – pelas quais pode circular dinheiro do tráfico –, além de prefeituras que contratam shows sem licitação.

A atenção redobrada sobre servidores e postos de gasolina, por exemplo, se deve à experiência adquirida com a Operação Lava Jato. Isso porque foi a partir de suspeitas sobre as movimentações financeiras de um posto de combustível de Brasília que a Polícia Federal conseguiu desbaratar o megaesquema de lavagem de dinheiro e corrupção na Petrobrás.

Localizado a três quilômetros do Congresso, o Posto da Torre era um dos que realizavam factoring. E serviu, segundo as investigações, de base de pagamento de propinas. A operação da Polícia Federal, inclusive, foi batizada de Lava Jato por causa desse posto.

Servidores públicos ou ligados a estatais também são protagonistas do escândalo. Funcionários da Petrobrás, como Pedro Barusco e Paulo Roberto Costa, movimentaram milhões dentro e fora do País a partir de desvios em contratos da companhia.

O Coaf é um órgão vinculado ao Ministério da Fazenda que atua na prevenção e no combate à lavagem de dinheiro e ao terrorismo. Tem a função de identificar ocorrências suspeitas e comunicá-las às autoridades policiais quando concluir que houve indícios de lavagem, ocultação de bens ou qualquer outro ilícito.

Bancos, operadoras de cartões de crédito, lojas de arte, antiguidades, joias, pedras preciosas, loterias, juntas comerciais, entre outros, são orientados a avisar o Coaf sobre movimentações suspeitas. As instituições financeiras já são obrigadas a alertar o órgão fiscalizador quando há transação que supere os R$ 100 mil. Outros alertas podem ser dados em operações menores, como aquelas que movimentam valores superiores a R$ 10 mil, desde que haja uma suspeita do banco.

Essa é a terceira vez que o Coaf divulga alertas para segmentos financeiros e comerciais em todo o País. Segundo o presidente do órgão, Antonio Gustavo Rodrigues, funciona como um “fique esperto” para determinadas transações que possam ter aparência de legalidade. É preciso atualizar os informes porque há uma sofisticação dos métodos para lavagem de dinheiro cada vez que um esquema criminoso é desbaratado.

Em alertas anteriores, o Coaf chamava a atenção para esquemas que incluíam, por exemplo, o “aluguel” de contas bancárias. O sistema financeiro foi avisado de que integrantes de quadrilhas abordavam clientes de bancos nos terminais de autoatendimento das agências alegando não possuírem conta corrente. Diante da necessidade de receber, com urgência, transferência de recursos para pagamento de despesas médicas de familiares, “alugavam” a conta, prometendo comissão à pessoa abordada. Investigações mostraram que criminosos usam esse mecanismo para receber dinheiro de sequestro e outros crimes sem deixar rastro. O dinheiro era sacado e o criminoso desaparecia em seguida.

Trâmites. Após receber avisos sobre movimentações atípicas, o Coaf produz Relatórios de Inteligência Financeira (RIFs). O próximo passo é o encaminhamento do material para órgãos de investigação como a Polícia Federal e o Ministério Público, que apontam a ilicitude.

A Lava Jato foi iniciada a partir de relatórios elaborados pelo Coaf encaminhados à Polícia Federal e ao Ministério Público Federal ainda em 2011, três anos antes de a operação ser deflagrada, em março de 2014. As informações eram de movimentações suspeitas nas contas de empresas e pessoas físicas ligadas, por exemplo, ao Posto da Torre. Ao todo, o órgão fiscalizador do Ministério da Fazenda já produziu 182 relatórios para a Lava Jato.

Dilma está há 100 dias sem líder no Senado

• Governo quer pôr um peemedebista no cargo para tentar pacificar relação com aliado

Gabriela Guerreiro – Folha de S. Paulo

BRASÍLIA - Enfrentando uma crise política com o Congresso, a presidente Dilma Rousseff não conseguiu encontrar entre seus aliados, mais de cem dias depois de sua posse, um nome para ocupar a liderança do governo no Senado.

O cargo é considerado estratégico porque cabe ao líder do governo defender os interesses do Planalto na Casa --hoje comandada por Renan Calheiros (PMDB-AL), que tem enviado recados e feito sucessivas ameaças de retaliação à petista.

A intenção de Dilma é nomear um peemedebista para tentar conter a rebelião do partido contra o Planalto.

O problema: ainda não surgiu nenhum nome alinhado à presidente e capaz de pacificar a relação com o seu principal aliado no Congresso.

Recentemente, ganhou força o nome de Jader Barbalho (PMDB-PA), mas o Planalto teme reações. Ele renunciou ao mandato em 2001 e foi preso no ano seguinte acusado de desviar recursos. Também é considerado um parlamentar ausente, com atuação maior nos bastidores.

Conhecido como "eterno líder do governo" no Senado, Romero Jucá (PMDB-RR) tem o perfil considerado "ideal" pelos colegas, mas rejeita a ideia de defender o Planalto e tampouco tem o seu apoio.

O peemedebista, que foi líder do governo da petista em seu primeiro mandato, declarou voto em Aécio Neves (PSDB-MG) em 2014 e se tornou crítico ao Executivo.

Em 2012, Dilma tirou Jucá do cargo para cedê-lo a Eduardo Braga (PMDB-AM), atual ministro de Minas e Energia. Desde que Braga deixou o Senado para ocupar a pasta, a liderança está vaga.

O líder do PMDB, Eunício Oliveira (CE), também foi sondado, mas prefere não acumular as duas funções para não desagradar o partido.

Com a transferência da coordenação política do governo para o vice Michel Temer, presidente do PMDB, aliados esperam que a situação seja solucionada.

Insatisfação
A irritação de Renan com o Planalto começou depois que o nome do senador foi incluído entre os dos políticos investigados pelo STF (Supremo Tribunal Federal) na Operação Lava Jato.

O presidente do Senado também não digeriu a troca de seu afilhado político, Vinícius Lages, pelo ex-presidente da Câmara Henrique Alves no Ministério do Turismo, e acusa o governo de fragilidade em sua articulação com o Legislativo.

Lava-Jato: dirigente era ligado a milhares de empresas

• Último presidente de construtora acusada por Barusco de transferir propinas tinha conexão com 2,7 mil firmas

Thiago Herdy – O Globo

Dirigentes de uma das empresas investigadas pela Polícia Federal na operação Lava-Jato, sediada no Panamá, eram, segundo registros oficiais, ligados a milhares de firmas. Presidente da Construtora Del Sur de 2009 até 2014 (quando foi fechada), Asterio Caballero Ibarra já participou da direção de 2,7 mil empresas no Panamá. Situação semelhante à do secretário Berta Acoca de Patton, com 7,2 mil empresas e a do tesoureiro, Oriel F. Kennion, com 2,4 mil. Os documentos, obtidos pelo GLOBO, reforçam as suspeitas da PF de que a empresa funcionava apenas no papel.

A construtora Del Sur foi acusada na delação premiada do ex-gerente de Engenharia da Petrobras Pedro Barusco de ter sido utilizada pela Odebrecht para "efetivar transferências" de propinas para sua conta. A Del Sur foi aberta pelo mesmo escritório de advocacia que prestou serviço para a Odebrecht no Panamá. Segundo documentos do Registro Público do país, o escritório Patton, Moreno & Asvat foi o responsável por abrir a Del Sur em 2006 e fechá-la em agosto de 2014, em meio às investigações da Operação Lava-Jato.

Barusco afirmou ter recebido US$ 916,6 mil em propinas da Odebrecht em 2009, em conta registrada em seu nome no Panamá. Extratos bancários entregues por ele apontam que o dinheiro saiu de uma conta da Del Sur.

Por meio de nota, a Odebrecht negou ter vínculo com a Constructora Internacional Del Sur ou ter feito pagamentos à empresa: "Não são verdadeiras notícias que atribuem à Odebrecht a responsabilidade por pagamentos efetuados no exterior aos réus confessos Alberto Youssef e Pedro Barusco".

Perguntada sobre sua relação com o escritório Patton, Moreno & Asvat, a Odebrecht primeiro afirmou que "não identificou prestações de serviços do escritório de advocacia"! O GLOBO questionou, então, a participação do escritório na emissão de títulos para a Odebrecht Offshore Drilling Finance Ltd. em agosto de 2013. A empresa confirmou a operação, mas alegou não ter sido ela a contratar formalmente o escritório panamenho, e sim o banco que intermediou a emissão de títulos.

Atualmente, o desafio dos investigadores da Lava-Jato é rastrear, com a ajuda de autoridades internacionais, a origem do dinheiro da Del Sur.

Responsável legal pela Del Sur, o Patton, Moreno &Asvat atua em áreas como direito marítimo, administrativo, corporativo e financeiro. O escritório foi contratado há cerca de um ano e meio para representar no Panamá os interesses da Odebrecht Offshore Drilling Finance Ltd., controlada pela Odebrecht Óleo e Gás S/A, na emissão de US$ 1,69 bilhão de títulos para financiamento de operações marítimas.

— Por agora, não existem trâmites presentes ou futuros com a Odebrecht na parte marítima — disse ao GLOBO Belisario Porras, advogado do escritório.

O teste do 1° de Maio

• Ataques a direitos trabalhis-tas atingiram um ponto de fervura com o ajuste fiscal e o projeto da terceirização

• Ricardo Melo – Folha de S. Paulo

Faz muito tempo que o 1º de Maio, originalmente Dia dos Trabalhadores, vem sendo esvaziado de conteúdo. A começar do nome. Virou "Dia do Trabalho", como a celebrar uma unidade social fictícia, sobretudo em países como o Brasil.

A desidratação nem sempre deu certo, a depender da conjuntura. Nos últimos anos, porém, a coisa tem pendido mais para piqueniques e sorteios do que para manifestações reivindicativas. Não que estas tenham deixado de existir. A culpa é de um movimento sindical perigosamente adaptado a conveniências do poder e soluções palacianas.

Em 2015 a conversa pode ser outra. Os ataques a direitos trabalhistas encontram-se num ponto de fervura. Medidas como o projeto de lei da terceirização ameaçam conquistas históricas; o ajuste fiscal de Levy bate de frente com as necessidades de qualquer trabalhador --empregado ou desempregado.

Verdade que o PL 4330 passou em duas votações da Câmara. Mas foram instantes bem diferentes. No primeiro, massacre no placar --324 a 137. Já no segundo turno, a vantagem encolheu para míseros 27 votos.

Pesou nisso uma grita geral por parte de sindicatos, movimentos sociais e setores da cúpula da Justiça do Trabalho. Um dos veredictos mais contundentes veio de Patrícia Ramos, presidente da associação dos magistrados da área em SP. Para ela, o projeto cria "carcaças de empresas", em que o "empregado continuará com as mesmas obrigações; em contrapartida, seus direitos serão reduzidos". Simples assim.

Juntando as querelas entre Eduardo Cunha e Renan Calheiros, mais o bate-cabeça dos tucanos em torno de um impeachment nefelibata, o quadro mostra-se favorável a uma nova hibernação do projeto. Ilusório dispensar, contudo, o fator decisivo da pressão popular. A tramitação até agora provou a existência de vida fora do parlamento e seu "Cunha party".

O 1° de Maio será um teste importante. Alguns já escolheram o lado, entre eles Paulinho da Força. Entusiasta da terceirização, transformou a central que comanda em guichê secundário da Fiesp. Um papelão. Seu partido, o Solidariedade, é uma caricatura mesmo nas trapalhadas. Um de seus ex-deputados, Luiz Argôlo, acaba de dar sua contribuição ao vocabulário dos escândalos com a farra do Transbaião --desvio de dinheiro público para promover festas juninas.

É o caso de saber como ficará o PT nesta história toda. Enrolado com a Lava Jato e a aplicação de medidas econômicas impopulares, o governo Dilma dá sinais de que vai travar o projeto. Detalhe: só sinais por enquanto. Já os petistas têm ensaiado uma reação pela sobrevivência da legenda. Será didático observar como o partido resolverá a equação de, numa faixa defender direitos trabalhistas históricos e, na outra, um programa de arrocho econômico. O muro já tem dono faz tempo.

Mãos que não se lavam
Não cabe dúvida: o PT tem pesadas contas a ajustar no escândalo da Petrobras, assim como multiplicam-se evidências de que muitas das práticas do partido exibem impressões digitais antigas. Em seu périplo de entrevistas, FHC acusa os petistas de achar que o Brasil nasceu com eles. Há que dar ao ex-presidente alguma razão: a manchete da Folha deste domingo e depoimentos da Lava Jato testemunham que certas coisas começaram muito antes, e deixaram penas pelo caminho.

Para líder petista no Senado, Lupi é ‘boquirroto’

• Presidente do PDT, sigla que integra o governo, afirmou que PT ‘roubou demais

Ricardo Brito – O Estado de S. Paulo

BRASÍLIA - As críticas feitas ao PT pelo presidente nacional do PDT, Carlos Lupi, publicadas ontem no Estado, foram recebidas com desdém por lideranças da sigla. O dirigente declarou que os petistas “roubaram demais, exageraram”. “Acho que isso é resultado de uma pessoa boquirrota, uma pessoa que sinceramente eu não valorizo”, disse ontem o líder do PT no Senado, Humberto Costa (PE). Ele advogou a tese de que seria preciso ouvir a opinião de Manoel Dias, ministro do Trabalho e representante do PDT no governo.

Dias preferiu dizer que a versão apresentada a ele por Lupi – cujo depoimento sobre o PT foi gravado – foi diferente, sem as críticas contundentes ao partido aliado. Questionado se fica constrangido em permanecer no governo, Dias respondeu que não. “Me dou por satisfeito com a resposta dele (Lupi).”
O ministro disse que a decisão sobre a participação do PDT na administração Dilma Rousseff cabe ao Diretório Nacional. No dia 15 de maio vai ocorrer uma reunião do comando partidário, mas a saída da legenda do governo não está na pauta do encontro.

No governo, a estratégia adotada foi a de evitar responder diretamente a Lupi para não alimentar ainda mais a polêmica. Segundo um interlocutor direto de Dilma, a resposta ao presidente do PDT teria de partir do PT. A avaliação do interlocutor é de que as declarações de Lupi são ruins e desagradam, mas não afetam a relação do partido aliado com o governo. “Lupi foi ingênuo de achar que não estava sendo gravado, mas jogou para a plateia do partido”, afirmou o interlocutor de Dilma, lembrando que Lupi foi um dos “faxinados” no primeiro mandato da presidente.

Na reportagem do Estado publicada ontem, o dirigente pedetista, ex-ministro dos governos Lula e Dilma, disse que o PT “se esgotou”. “O PT exauriu-se, esgotou-se. Olha o caso da Petrobrás. A gente não acha que o PT inventou a corrupção, mas roubaram demais. Exageraram. O projeto deles virou projeto de poder pelo poder”, afirmou Lupi na quinta-feira em encontro com correligionários em São Paulo. A fala ocorreu um dia após a Petrobrás divulgar que a perda da estatal com corrupção foi de R$ 6,2 bilhões.

Procurado, o presidente nacional do PT, Rui Falcão, afirmou, por meio da assessoria de imprensa, que não iria comentar. O partido e integrantes da cúpula não se manifestaram em redes sociais, como tem sido praxe quando a legenda é criticada.

‘Graves’. Um dos vice-presidentes do PT, o deputado federal José Guimarães (CE), líder do governo na Câmara, classificou como “graves” as declarações de Lupi. Guimarães disse que é preciso discutir com o aliado para evitar a saída do PDT da base de apoio da Dilma.

Ele destacou ainda que a fala do presidente do PDT ocorre no momento em que o governo tenta melhorar a relação política com os partidos da base – com a assunção da tarefa de articulador pelo vice-presidente Michel Temer. “Um partido importante como o PDT sair da base é prejuízo. Por mim, fica”, disse Guimarães.

Para tentar reduzir o mal estar, Carlos Lupi telefonou para dirigentes do PDT ao longo do dia de ontem. Apresentou a versão de que suas declarações foram retiradas do contexto. Lupi conversou por telefone no início da noite com Manoel Dias.

Ao Broadcast Político, serviço de notícias em tempo real da Agência Estado, o presidente do PDT afirmou que desde o ano passado o partido tem tido divergências com o governo. E disse que a aliança não pode ser baseada apenas na participação em um ministério, mas precisa ter uma participação efetiva na formulação de propostas.

Lupi disse que, por ora, não está no radar do partido deixar a base de apoio de Dilma. “Amanhã se tiver uma decisão para sair do ministério, ele (Manoel Dias) sai na mesma hora”, afirmou. O pedetista rebateu a afirmação de Humberto Costa, que o chamou de boquirroto. “Cada um fala o que pensa e eu posso achar o mesmo dele.”

Atualmente o PDT ocupa, com o ministro Manoel Dias, apenas a pasta do Trabalho. O partido conta hoje com 19 dos 513 deputados da Câmara e seis dos 81 senadores. / Colaborou Tânia Monteiro

PMDB terá dificuldade para aprovar distritão

• Bandeira da sigla na reforma política, modelo encontra resistência interna

• Sistema eleitoral que desconsidera partido e coligação é temido por deputados com pouca projeção nacional

Ranier Bragon – Folha de S. Paulo

BRASÍLIA - Principal bandeira do PMDB na reforma política em discussão na Câmara dos Deputados, o sistema eleitoral conhecido como distritão terá grandes dificuldades para ser aprovado.

Apesar de contar com o apoio do vice-presidente da República, Michel Temer, e do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, ambos do PMDB, o modelo encontra resistência na própria legenda e é criticado abertamente por PT, PSDB e por boa parte dos integrantes da comissão que discute a reforma política.

Para que entre em vigor, o distritão precisaria do voto favorável de pelo menos 60% dos deputados federais e senadores, cenário hoje de difícil concretização.

"Eu reconheço que qualquer votação de reforma política que dependa de emenda constitucional tem resultado duvidoso e incerto. Nós sabemos disso, não tem nenhuma criança aqui para não saber que tem dúvidas para todos os lados, mas vamos votar, meu compromisso é com a votação", afirma Eduardo Cunha, que promete levar a reforma ao plenário na última semana de maio.

O distritão defendido pelo PMDB muda o atual modelo de eleição dos deputados. Hoje vigora o sistema proporcional, que utiliza-se, na definição dos eleitos, de uma fórmula que leva em conta toda a votação obtida pelos candidatos do partido e da coligação (quando há uma), além dos votos dados à legenda.

Em alguns casos, candidatos bem votados, mas que não integrem uma coligação forte, perdem para concorrentes com menor votação, mas que fazem parte de uma união partidária mais robusta.

No distritão, são eleitos os candidatos mais votados em cada Estado. Seus defensores argumentam que o modelo atende à vontade do eleitor e evita o "efeito Tiririca" --quando a votação expressiva em um candidato leva à Câmara colegas de partido com pouca expressão política.

Já os críticos do distritão, categoria na qual se inclui boa parte dos cientistas políticos, apontam risco de destruição dos partidos e de aumento da personalização na política. Além disso, afirmam que minorias e eleitores de áreas menos populosas terão mais dificuldades ainda para eleger seus representantes.

Um dos principais entraves ao distritão no meio político, porém, é que esse modelo impõe obstáculos extras às caras novas e aos políticos menos conhecidos, o que aterroriza o baixo clero da Câmara (grupo majoritário formado por deputados com pouca projeção nacional).

Outras propostas
Entre os críticos da medida está o relator da reforma política, Marcelo Castro (PMDB-PI), aliado de Cunha, que defende o modelo distrital misto --metade dos deputados seria eleita por região dos Estados e a outra metade pelo modelo atual. O PSDB também defende esse sistema. Já o PT é favorável à chamada lista fechada, que é quando o eleitor vota em uma lista de candidatos definida pelos partidos políticos.

"É possível [que não haja maioria para nenhum dos modelos], aí vamos adaptar o que é possível fazer fora da Constituição", diz Eduardo Cunha, reconhecendo que a falta de consenso pode manter o atual modelo. "A gente sabe dessa polêmica, sabe que não será uma tarefa fácil, o que prometi fazer e vamos fazer é colocar em votação."

Não é hora de impeachment, dizem juristas

• Contratados pelo PSDB para dar pareceres sobre ações de Dilma afirmam que base legal é insuficiente sem maior desgaste do governo

Pedro Venceslau , Valmar Hupsel Filho - O Estado de S. Paulo

Os juristas chamados pelo PSDB para fundamentar um pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff afirmam que, mesmo que haja base legal, não há clima político para investir no afastamento da petista.

Os tucanos estão divididos. A bancada na Câmara tem pressa e aposta nos pareceres jurídicos para embasar a iniciativa. Já senadores da legenda e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso acham o movimento precipitado. Autor do primeiro parecer enviado ao partido com argumentos jurídicos para o impedimento, o advogado Ives Gandra Martins pondera que o processo de afastamento de um presidente é muito mais político do que teórico. "Do ponto de vista jurídico já existem elementos para pedir o impeachment. Mas, do ponto de vista político, a presidente ainda conta com mais de um terço do Congresso. Portanto, não haveria muita chance. Não é o momento ainda", afirma ele.

Para que tenha início, um processo de impeachment precisa do apoio de dois terços da Câmara. Segundo Ives Gandra, o momento ideal para pedir o impedimento da presidente é quando o País "estiver ingovernável". "Trata-se de um processo eminentemente político. O elemento jurídico vai contar pouco na decisão."

Conselheiro jurídico do PSDB e responsável pela área na campanha presidencial do senador mineiro Aécio Neves, o advogado José Eduardo Alckmin segue a mesma linha. "Já existem elementos jurídicos, mas talvez seja bom esperar um pouco para ver o que mais aparece", pondera.
O líder dos tucano na Câmara, Carlos Sampaio (SP), pedirá ao advogado que elabore mais um parecer para a legenda.

Ives Gandra e Alckmin lembram ainda que o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), sinalizou que engavetará um eventual pedido. Responsável pelo parecer mais aguardado, o jurista Miguel Reale Júnior, ex-ministro da Justiça de Fernando Henrique Cardoso, não quis dar entrevista.

Em sua primeira avaliação sobre o assunto, porém, Reale Júnior sinalizou que o caso das "pedaladas fiscais", manobra com a qual o governo usou verbas de bancos públicos para cobrir despesas que deveriam ter sido pagas com recursos do Tesouro, poderia implicar crime comum, mas não justificaria, na prática, o impeachment porque teria ocorrido no mandato anterior. Essa posição divide o partido. "Quando fala em crime de responsabilidade, a Lei 1.079, de 1950, prevê a perda do mandato em exercício. Mas naquele tempo não havia o instituto da reeleição", explica Sampaio. Ainda segundo o líder, o PSDB recorrerá ao plenário da Câmara caso Eduardo Cunha (PMDB-RJ) decida vetar a iniciativa.

Em reunião da cúpula do PSDB na semana passada, em Brasília, no apartamento de Aécio, Reale Júnior teria, segundo o relato de participantes, mudado de posição e indicado que há margem para o pedido.

"O orçamento não morre no dia 31 de dezembro. As pedaladas, mesmo dadas no ano passado, refletem em toda atuação dela no atual mandato. Ou seja: automaticamente está contaminando o atual. Este é o aspecto que o Miguel vai enfrentar", afirma Ives Gandra.

Recuo. O tema, porém, ainda causa ruídos no PSDB. Na sexta-feira, quem provocou mal estar foi Carlos Sampaio, ao dizer pela manhã que o pedido de impeachment seria feito "na terça ou quarta-feira". À noite, o líder precisou retificar seu posicionamento.

Apesar do constrangimento, o parlamentar pressiona os correligionários para que deflagrem o mais rápido possível o procedimento. "A decisão da bancada (de pedir o impedimento) foi tomada e a levarei para o Aécio na próxima terça-feira. Definiremos então como e quando será encaminhada a proposta", diz o líder.

Sem consenso. Os demais partidos de oposição fecharam com os tucanos um acordo pelo qual o pedido de impeachment será feito em conjunto. E entre eles também não há consenso sobre o momento ideal.

"O PPS considera que não há condições objetivas para o impeachment. É preciso a análise de uma correlação de forças para isso. O principal fator é a ingovernabilidade, o que, neste momento, não existe", avalia o deputado Roberto Freire, presidente da sigla.

Ele argumenta que a presidente ainda conta com o apoio do setor financeiro. "Os grandes empresários ainda acreditam que (o ministro da Fazenda Joaquim) Levy vai dar confiabilidade ao governo. Além disso, a presidente tem o partido para lhe dar sustentação, o que (o ex-presidente Fernando) Collor não tinha". Já o senador Ronaldo Caiado (DEM-GO) tem pressa. "Claro que há motivação jurídica para o pedido de impeachment. A estrutura do governo foi usada para fins eleitorais", afirma.

Aécio Neves - E os Correios?

- Folha de S. Paulo

Dias atrás, a Justiça atendeu ao pedido da Associação dos Profissionais dos Correios e suspendeu o pagamento das contribuições extras de participantes do fundo de pensão Postalis como forma de equacionar o enorme rombo existente, resultado da negligência e da crônica má gestão.

Revisito a matéria porque, com todas as atenções voltadas para os graves desdobramentos do escândalo da Petrobras, outras situações não menos graves vão se diluindo sem conseguir mobilizar o país.

É exatamente o que acontece com a crise dos Correios, outra empresa que se transmudou em uma espécie de resumo das mazelas que ocorrem no país: corrupção, compadrio, ineficiência e uso vergonhoso do Estado em favor de um partido político.

Nos últimos anos, os Correios, assim como outras empresas públicas e seus fundos de pensão, foram ocupados pelo PT. Na campanha eleitoral do ano passado, a estatal foi instrumento de graves irregularidades.

A propaganda da candidata oficial à época foi distribuída sem o devido e necessário controle. A consequência foi que milhões de peças podem ter sido encaminhadas sem o pagamento correspondente. Recentemente, o TCU concluiu que a empresa agiu de forma irregular. Até aqui, pelo que se sabe, ficou por isso mesmo.

Mas não foi só isso. Além de fazer o que não podiam, os Correios não fizeram sua obrigação: deixaram de entregar correspondências eleitorais pagas pelos partidos de oposição. Ação na Justiça denuncia que correspondências de partidos com críticas ao PT simplesmente nunca chegaram aos seus destinatários.

Some-se a isso o escândalo do vídeo gravado durante uma reunião, no qual um deputado petista cumprimenta funcionários da empresa e, sem nenhum pudor, reconhece o uso político dos Correios. Diz ele: "Se hoje nós estamos com 40% [de votos] em Minas Gerais, tem dedo forte dos petistas dos Correios".

Denúncias como essas foram feitas por funcionários da estatal indignados não só com o prejuízo financeiro, mas com o comprometimento da imagem de uma empresa que até pouco tempo atrás tinha a confiança de todos os brasileiros. A conta é alta: o rombo do Postalis pode ser de R$ 5,6 bilhões.

O que vem ocorrendo no fundo de pensão dos Correios não é diferente do que acontece nos demais fundos, tomados, de uma forma ou de outra, pela doença do aparelhamento e da má gestão, com prejuízos incalculáveis aos trabalhadores e ao país.

O Brasil aguarda e exige que investigações rigorosas alcancem também as autênticas caixas-pretas em que esses fundos se transformaram e que resumem o que há de pior na vida pública brasileira. É hora de cobrar responsabilidades e transparência.

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Aécio Neves é senador (MG) e presidente nacional do PSDB

Ricardo Noblat - Lula e seu destino

- O Globo

"O PT não tem mais projeto para o Brasil" - Marta Suplicy, senadora de saída do PT

Nem sempre o mais simples é o mais certo. Mas com frequência é. Por que Lula se exibe em um vídeo postado na página do seu instituto, onde aparece suado fazendo ginástica? Ora, para dar o recado de que está em boa forma e disposto a enfrentar novos desafios. Exemplo de um? A campanha para voltar à presidência da República daqui a quatro anos, sucedendo a Dilma. De fato, ele não pensa em outra coisa.

DE VEZ EM QUANDO, desafetos de Lula sugerem nas redes sociais que ele não está bem de saúde. Quem não está bem de saúde não faz esteira e nem carrega peso. Com o vídeo, ele prova que vai muito bem, obrigado. O resto ele mesmo se encarrega de propagar por aí em reuniões montadas para injetar ânimo na combalida militância do PT. Lula só fala em ambientes blindados contra vaias. Foi assim na última sexta-feira.

"NÓS TEMOS DE dizer para a companheira Dilma ouvir, e para os nossos deputados e militantes ouvirem, que nós precisamos começar a dizer o que faremos neste segundo mandato", cobrou Lula no discurso de abertura do 3º Congresso das Direções Zonais do PT de São Paulo. "Qual é a política de desenvolvimento que colocaremos em prática? Qual o tipo de indústria que iremos incentivar?"

LULA REPROVA o governo monotemático de Dilma, que há mais de 100 dias só valoriza o ajuste fiscal como meio de pôr em ordem as contas públicas. É como se nada mais existisse. O governo só conseguirá enfrentar o mau humor dos brasileiros se for capaz de criar notícias positivas. Ou novas utopias, como prefere Lula. Agarrar-se aos programas Bolsa Família e Minha Casa Minha Vida não adianta mais.

INVARIAVELMENTE, o discurso de Lula contempla dois tipos de coisa: críticas ao governo, menos ou mais ácidas, a depender da ocasião; e críticas ao PT. O desfecho passa por um apelo para que o partido esteja sempre pronto a apoiar o governo. "Nem o PT sobrevive sem Dilma, nem Dilma sobrevive sem o PT", voltou a repetir. "Se Dilma fracassar, é o PT quem fracassa, e eu não vim ao mundo para fracassar".

OU SEJA: o governo Dilma é ele. O PT é ele. O futuro do projeto de poder do PT está nas mãos dele. Lula imagina que a situação seria outra se Dilma tivesse abdicado da ideia de tentar se reeleger. Foi o que ele esperou que ela fizesse no ano passado. E por isso desarmou eventuais iniciativas daqueles que o assediaram pensando em forçar Dilma a se aposentar. Uma iniciativa abortada tinha a assinatura de líderes do PMDB.

HÁ EXATAMENTE um ano, Lula recepcionou em São Paulo uma comitiva de senadores do PMDB integrada por Renan Calheiros, José Sarney, Romero Jucá e Jader Barbalho. Queriam saber se ele concordava em concorrer ao terceiro mandato presidencial. Lula deu a entender que sim, mas disse que tudo dependeria de Dilma. Não se sentia à vontade para constrangê-la a sair de cena. Mas se ela saísse por vontade própria...

AGORA, Lula sente-se à vontade para pavimentar seu retorno ao poder. O PT não tem outro candidato. O PSDB tem três — Aécio Neves, José Serra e Geraldo Alckmin. Lula derrotou Serra em 2002 e Alckmin em 2006. Calcula que poderia derrotá-los outra vez. Quanto a Aécio... Acha que ele dará um jeito de não atravessar o seu caminho. Conta com o apoio do PMDB, que não tem candidato a presidente.

AOS QUE pensam que ele não se arriscará a uma derrota... Lula sofre do mal que atinge quase todos os candidatos: acredita piamente que poderá vencer. Ou melhor: que deverá vencer.

José Roberto de Toledo - Falta o Luther de Dilma

- O Estado de S. Paulo

No seu tradicional discurso durante o jantar anual em homenagem aos jornalistas que cobrem a Casa Branca, Barack Obama inovou. Foi além das piadinhas de sempre e introduziu um tradutor que vertia o polido discurso presidencial para o que realmente o presidente gostaria de dizer. Era Luther, o tradutor irado.

A frase "tradições como o jantar dos correspondentes da Casa Branca são importantes", saída da boca de Obama, rapidamente virou: "Sério? Que raios de jantar é este? Por que eu sou obrigado a vir? Ei, Jeb Bush, você quer mesmo fazer isto?". Jeb é o terceiro Bush que concorre a presidente dos EUA.
"Apesar das nossas diferenças, nós contamos com a imprensa para jogar luz sobre os assuntos mais importantes", prosseguiu Obama, para ser emendado por Luther: "E contamos com a Fox News para aterrorizar os eleitores brancos". A Fox é o canal de TV mais declaradamente anti-Obama e pró Partido Republicano.

Foi um sucesso. Não apenas Luther - interpretado pelo comediante negro Keegan-Michel Key - arrancou gargalhadas do público, como Obama manteve a pose, sem rir, até o fim. Mostrou-se, novamente, um artista. Principalmente quando terminou por suplantar a ira de Luther ao criticar os negacionistas do aquecimento global.

Agora, imagine Dilma Rousseff com um tradutor irado. Não, não alguém para traduzir o que ela tentou dizer. Mas, sim, um tradutor que, como Luther, dissesse o que realmente Dilma estava pensando enquanto brigava com o teleprompter. Por certo daria alguns pontos ao ibope das transmissões oficiais.

O que diria o Luther de Dilma quando ela deu posse ao novo ministro do Turismo, o peemedebista Henrique Eduardo Alves, e os dois principais caciques do PMDB no Congresso não compareceram? Quais seriam as referências a Renan Calheiros e Eduardo Cunha?

Qual seria a versão traduzida das considerações de Dilma sobre as entrevistas de seus ex-ministros Marta Suplicy e Carlos Lupi, que desancaram o governo depois que perderam seus cargos?

O que o tradutor irado diria sobre as críticas embutidas à política econômica do primeiro mandato da presidente sempre que o novo ministro da Fazenda, Joaquim Levy, abre a boca? Um acesso de sinceridade presidencial acalmaria o mercado? Ou jogaria o Índice Bovespa abaixo do pré-sal? Sem Luther, nunca saberemos.

Fim da crise sem fim? Quando a crise é tão ampla e profunda quanto a do governo Dilma, não há boas novas, só notícias ruins que têm algum efeito positivo. A semana passada alinhou boas más notícias em série para os governistas. Para os desconfiados, isso é ruim - porque pode dar ideias à presidente e ao PT. Apesar do paradoxo, vale examinar o que de pior ocorreu a favor de Dilma.

A publicação do balanço vermelho da Petrobrás formalizou a maior admissão de corrupção e incompetência na gestão de uma empresa brasileira, mas estancou uma sangria desatada há pelo menos oito meses. O balanço admitiu erros, declarou perdas e zerou o jogo. Dá à estatal uma chance. "Um passo na reconstrução da Petrobrás", definiu o ministro Levy - deixando embutido que só se reconstrói o que foi desconstruído. Mas Dilma relevou.

Houve o desentendimento entre Renan e Eduardo Cunha sobre a lei da terceirização. A desarticulação do governo no Congresso é tão grande que um racha entre os presidentes do Senado e da Câmara é bom para Dilma. E houve a novidade de que foram criadas mais vagas do que aconteceram demissões ao longo do mês de março.

Nada disso garante que o pior da tempestade tenha passado. Só mostrou um horizonte. Lá longe há sinais do que pode ser luz - ainda a serem verificados por mais pesquisas de opinião. Confirmados esses sinais, a semana passada terá marcado não o fim da crise, mas o fim da crise sem fim. E se novas pesquisas não apontarem mudança? É porque estamos no olho do furacão.

Valdo Cruz - Desapega

- Folha de S. Paulo

Em fase de desapego forçado, guiada muito mais pelas circunstâncias, Dilma Rousseff entregou primeiro o comando da economia ao liberal Joaquim Levy e, depois, da política ao seu vice e peemedebista, Michel Temer.

Agora, em busca de uma agenda positiva para não ficar falando só de ajuste, ela deveria, nos sonhos do empresariado, escalar novo degrau em sua fase de desprendimento e esquecer seu estilo intervencionista no programa de privatização.

Significa acabar com as tentações de fixar taxas de retorno de projetos e de forçar a adoção de modelos de investimentos inviáveis, marcas do seu primeiro mandato no Planalto.

Mais uma vez, de olho no cenário atual, o melhor caminho para petista seria desapegar ainda mais. Sem dinheiro público para bancar investimentos, seu poder de intervenção está, hoje, bastante reduzido.

Afinal, por causa da gastança do primeiro mandato, seu espaço para adotar sua filosofia preferida, de que a mão forte do Estado deve conduzir a tudo e a todos na economia, desapareceu por completo.

Pelo menos é o que aponta a nova realidade do país, à qual a presidente Dilma, por uma questão de sobrevivência, busca de adaptar --um tanto a contragosto, alfinetam adversários e pretensos aliados.

Um dos beneficiados com a mudança forçada da presidente sai em defesa da chefe, refutando as críticas de que ela terceirizou o governo e virou uma rainha da Inglaterra, um fantasma no Planalto.

Diz que ela está fazendo exatamente o que todos reivindicavam durante todo o primeiro mandato, deixando de ser tão centralizadora e delegando mais, passando a ocupar o papel de cobradora de resultados.

Não deixa de ser uma forma diferente de olhar a realidade, mas o fato é que a conjuntura obrigou a petista a compartilhar poder neste começo de segundo mandato. A dúvida é se o altruísmo dilmista veio para ficar ou será apenas um recuo tático.

Marcus Pestana - Terceirização: polêmica e desinformação

- O Tempo (MG)

A economia brasileira vai mal. O crescimento médio anual do PIB, nos oito anos do governo Dilma, será de medíocre 1%. Em 2015, será negativo. O Brasil está perdendo competitividade. A inovação é baixa. Formamos muitos doutores, publicamos muitos artigos, mas patentes e produtos inovadores são poucos. A desindustrialização é clara. Estamos em marcha batida para uma realidade pré-1930, um retorno nada glorioso a uma economia primário-exportadora. Os desequilíbrios fiscais e cambiais preocupam. A carga tributária é alta e o custo Brasil, proibitivo. As reformas modernizantes foram paralisadas. O Brasil está comendo poeira de países como Coreia do Sul, Índia e China. Os investimentos se estagnaram nos insuficientes 18% do PIB. O setor elétrico foi desorganizado e o setor de petróleo entrou em crise. Os estímulos não surtiram os efeitos esperados. As agências regulatórias foram destruídas. A revolução educacional jaz inconclusa. Enfim, o cenário de médio e longo prazo não é nada animador.

O mundo mudou, e o Brasil não acompanhou. O desafio do aumento da competitividade e da produtividade é atacado de forma tímida. Estamos perdendo o “bonde da história”.

Um dos graves obstáculos a um desenvolvimento maior e mais dinâmico é a rigidez de nosso mercado de trabalho. Desconfiados da capacidade de livre negociação entre trabalhadores e empresários no mercado de trabalho, nos refugiamos sempre no Estado superprotetor e na legislação capitaneada pela CLT, que nasceu na década de 40 e cumpriu ali um papel importante. Construímos um marco constitucional e legal, verdadeiro cipoal de regras, que inibe arranjos inovadores e livres, compatíveis com o mundo contemporâneo, que é caracterizado por uma economia diversificada, fragmentada e flexível.

A Câmara dos Deputados concluiu finalmente, após 11 anos de discussões, na última quarta-feira, a votação do PL 4.330/04, que regulamenta o trabalho terceirizado. A polêmica e a desinformação afloraram. No assunto, a insegurança jurídica era plena, ocasionando um milhão de demandas à Justiça do Trabalho em 2014 e 14 mil recursos no TST, fragilizando os trabalhadores e inibindo investimentos e a criação de novos empregos. A lei aprovada, que vai ao Senado, assegura direitos equânimes aos trabalhadores terceirizados na alimentação, transporte, segurança no trabalho, treinamento e assistência à saúde. Garante o correto recolhimento de todos os direitos previdenciários e obrigações trabalhistas. Valoriza a participação dos sindicatos no processo. Garante a especialização e a qualidade. Muita gente tentou confundir a opinião pública, dizendo que o projeto é contra o trabalhador.

O PSDB, por meio de emenda sua aprovada, por prudência, retirou da lei as empresas estatais, que não poderão terceirizar atividades fins. E estendeu aos trabalhadores terceirizados do setor público os direitos previstos na lei.

Tenho tranquilidade e convicção de que foi um grande avanço.

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Marcus Pestana é deputado federal e presidente do PSDB de Minas Gerais

Luiz Carlos Mendonça de Barros - O fim da hegemonia do PT e a nova agenda

- Valor Econômico

Para acessá-la basta clicar no link abaixo:

Que partido é esse? – Editorial / O Estado de S. Paulo

Duas das três mais destacadas lideranças políticas do País, os presidentes do Senado, Renan Calheiros, e da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, desentenderam-se na quinta-feira, a propósito da tramitação do projeto da terceirização das relações trabalhistas, numa pancadaria verbal que compromete os dois e a imagem do Parlamento e, considerando o fato de pertencerem ao mesmo partido, o PMDB, levanta a questão: afinal, que partido é esse?

O PMDB é o maior partido brasileiro e seu presidente licenciado, Michel Temer, é o vice-presidente da República e também o principal articulador político do governo. No começo, era o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), partido criado pela ditadura para abrigar a oposição consentida ao governo militar e conferir uma aparência democrática ao regime autocrático imposto, já sem disfarce, a partir da edição do Ato Institucional n.º 5, de dezembro de 1968. A partir de 1965 o MDB congregou os opositores do regime, uma ampla aliança que reunia de democratas liberais a radicais de esquerda, e liderou a resistência política, até que, por meio de uma abertura "lenta e gradual", os militares deixaram o poder, mais de 20 anos após o golpe de 1964.

Na década de 80, novos partidos começaram a se formar no antigo campo oposicionista. Os dois exemplos mais significativos são o PT e o PSDB. Na ampla diversificação do quadro partidário, o MDB, que em 1980 se tornou Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), transformou-se na maior legenda política do País, condição que mantém até hoje e que tem tudo a ver com sua vocação de aderir ao poder central, do qual sempre desfrutou, cobrando bom preço para garantir a governabilidade aos poderosos de turno.

Produto e melhor exemplo da mentalidade patrimonialista que sempre dominou a política brasileira e foi levada a extremos pelo presidencialismo de coalizão patrocinado pelo populismo lulopetista, o adesista PMDB vive hoje um momento de excepcional fastígio graças à absoluta incompetência política da presidente Dilma Rousseff e seu círculo íntimo de colaboradores. Ao conquistar o domínio das duas Casas do Congresso, o PMDB logrou a façanha de reequilibrar a balança dos Poderes da República, que na última década pendeu pesadamente para o lado do Executivo. Mas esse equilíbrio pode não beneficiar o aperfeiçoamento institucional do País, pois está sendo ostensivamente colocado a serviço de interesses menores representados, por exemplo, pelos projetos políticos pessoais tanto do presidente do Senado como do comandante da Câmara. E nenhum dos dois revela muita compostura quando trata de defender seus projetos. É só ver como trataram o caso da terceirização.

O projeto da terceirização, que o governo e as entidades sindicais rejeitam, depois de tramitar por mais de 10 anos na Câmara, foi aprovado na quarta-feira passada graças ao empenho de Eduardo Cunha. Precisa ser apreciado agora pelo Senado. Mas Renan Calheiros, que jamais se destacou como defensor de causas populares, anunciou que não permitirá que progrida, ora vejam, uma iniciativa que a seu ver prejudica os interesses dos trabalhadores. E proclamou, sem corar: "Não vamos permitir 'pedaladas' contra o trabalhador. Não podemos permitir uma discussão apressada de modo a revogar a CLT". E enfatizou que o tema será analisado "sem pressa" pelos senadores.
Calheiros e Cunha, ao que tudo indica, estão de mal desde que o afilhado de um teve de ceder lugar ao afilhado de outro no Ministério do Turismo. Em vez de acertarem suas diferenças com uma boa conversa - como devem agir políticos responsáveis diante de assunto como esse, de vital importância para o futuro do País -, Calheiros e Renan preferiram se atacar mutuamente, armados dos poderes de que dispõem para comandar o Parlamento, onde deveriam estar em jogo, muito acima de seus interesses pessoais, aqueles que dizem respeito aos destinos do Brasil.

Eduardo Cunha, em sua tosca réplica a Calheiros, prometeu revidar na mesma moeda - ou seja, rejeitando na Câmara projetos aprovados no Senado: "Pau que dá em Chico dá também em Francisco. Engaveta lá, engaveta aqui". Admirável critério para legislar em benefício do bem comum! Esse é o PMDB.

Longe do nocaute – Editorial / Veja

Apesar de toda a pesada carga colocada sobre os ombros dos brasileiros pelos erros passados do governo... Apesar do alto custo dos ajustes recessivos aplicados na economia para corrigir aqueles equívocos... Apesar disso tudo, o Brasil real teimosamente se move na direção certa — e em várias frentes. Na frente política, é motivo de júbilo a aprovação pelo Senado Federal do projeto de voto distrital de autoria do senador José Serra (PSDB-SP). A tão esperada divulgação do balanço auditado da Petrobras, dias antes de se esgotar o prazo legal, é um passo significativo rumo à normalização das atividades da empresa brasileira, um gigante mundial que extrai 2,3 milhões de barris de petróleo por dia. Trazem o mesmo efeito regenerador os dados mais recentes do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) mostrando uma melhora na criação de postos de trabalho na economia brasileira. Também não se pode desprezar o fato de que se tenha estabilizado o índice Nacional de Expectativa do Consumidor (Inec), da Confederação Nacional da Indústria (CNI).

Tudo resolvido, então? Longe disso. Como um lutador de boxe nas cordas, o Brasil não venceu a luta, mas ganhou um tempo para respirar. O nocaute, que parecia inevitável, pode resultar em derrota, ou até vitória, por pontos no fim do ano. Os eventos e os dados animadores da semana passada são dignos de nota porque vieram em meio a um mar de ceticismo e pessimismo com os prognósticos para o ano de 2015. São pequenos avanços, mas altamente significativos.

O voto distrital que passou no Senado valerá, se confirmado pela Câmara dos Deputados, apenas para as eleições de vereadores em cidades com mais de 200 000 eleitores. Pelo seu efeito de aproximar o eleitor do eleito, diminuindo o abismo entre o povo e o Poder Legislativo, essa primeira experiência de voto distrital no país, mesmo que restrita a municípios, vai servir de vitrine para a ampliação do sistema aos demais colégios eleitorais. A divulgação do balanço da Petrobras, com o reconhecimento dos prejuízos bilionários impostos pela corrupção e pela ingerência governamental, permite encerrar um capítulo sombrio da empresa. É irrelevante que o Inec só tenha deixado de cair em março? Não é o caso de soltar foguetes, mas é um alento depois de o índice ter apresentado queda por quatro meses consecutivos. O mesmo raciocínio vale para o Caged, pois, após três meses em declínio, o mercado de trabalho fechou o mês de março com saldo de 19 282 vagas.

Fica em secundaríssimo plano e restrito ao terreno da especulação se esses sinais positivos da semana passada serão bons para o partido A ou B ou se quem mais se beneficiará deles será o governo ou a oposição. VEJA acredita que, quando o cenário político e econômico melhora, isso é bom para todos os brasileiros. Ponto.

Vai sair do meu, do seu, do nosso – Editorial / Època

• O acintoso aumento do fundo partidário, sancionado por Dilma por pressão do PT e outros partidos, mostra como o sistema de financiamento político é mais público do que privado

Vai sobrar para o pobre contribuinte brasileiro, já castigado por uma escorchante carga tributária que ultrapassa os 37% do PIB nacional. Em tempos de Operação Lava Jato, que revelou o duto entre as doações para os partidos políticos da base do governo e os superfaturamentos e propinas nos contratos da Petrobras, está faltando financiador na praça para os partidos políticos. Capitaneados pelo PT, maior prejudicado pelo escândalo, os partidos encontraram a solução para seus problemas financeiros no Orçamento da União. Vão tirar "do meu, do seu, do nosso", na antológica definição do ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga, o dinheiro para cobrir o buraco em suas contas, aberto pelo sumiço dos doadores e agravado pela entressafra eleitoral Com o apoio do relator-geral da proposta de Orçamento de 2015, senador Romero Jucá (PMDB-RR), eles conseguiram aumentar as verbas do fundo partidário, que destina recursos públicos para a manutenção dos partidos políticos, para R$ 867,6 milhões. A cifra representa três vezes o valor da proposta inicial encaminhada pelo governo ao Congresso Nacional.

Enfraquecida politicamente, a presidente Dilma Rousseff se curvou à pressão dos partidos, mesmo tendo de encaminhar um ajuste fiscal, que está impondo à população alguns cortes dolorosos e uma recessão na economia. Sancionou o acintoso aumento do fundo partidário, quando tinha a opção de vetá-lo e depois editar uma medida provisória, estabelecendo um valor menor. A justificativa de assessores do Palácio do Planalto é que Dilma não queria se desgastar com os partidos no momento em que precisa reunir apoios no Congresso para aprovar as medidas que compõem o ajuste fiscal Na verdade, a sanção foi mais uma trapalhada política do Planalto. O aumento dos recursos do fundo partidário é uma desfaçatez em um período de aperto e é mais um motivo de desgaste para a corroída imagem da presidente e dos partidos da base do governo. Feito o estrago, o vice-presidente Michel Temer, em suas atribuições de novo articulador político do governo, tentou remediá-lo. Temer disse que a presidente poderia contingenciar (leia-se bloquear) os recursos do fundo - medida incabível, porque a lei, com o objetivo de preservar os partidos de oposição de retaliações por parte do Executivo, estabelece que o dinheiro dos partidos não pode ser contingenciado.

Apareceram então as divergências internas no PMDB (leia mais sobre as divergências no partido na entrevista de Henrique Eduardo Alves, na página 46). Procurando afastar-se da decisão desastrosa, encaminhada por um aliado, Romero Jucá, com quem costuma ter alinhamento automático, o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), criticou a sugestão de Temer, mas preferiu concentrar seus ataques em Dilma. "A presidente fez o que havia de pior. Sancionou um aumento incompatível com o ajuste fiscal e disse que vai contingenciar. Fez as duas coisas ao mesmo tempo e errou dos dois lados", disse Renan. Segundo o presidente do Senado, Dilma "deveria ter vetado o aumento, como muitos pediram. Aquilo foi aprovado no meio do Orçamento sem que houvesse um debate suficiente". Em meio ao quiproquó, em que alguns peemedebistas se queixaram de que estavam assumindo um ônus político que cabia ao PT, o PMDB soltou uma nota oficial em que anunciou que não usará parte dos recursos do fundo partidário de 2015.

Até por seu lado rocambolesco, o episódio é revelador de vários aspectos da conjuntura política em Brasília. O governo Dilma está tão aturdido politicamente que toma medidas que acredita que apaziguarão seus aliados no Congresso, mas na verdade os atiça. Mesmo com a nomeação do vice-presidente Temer, alguns peemedebistas não perdem uma oportunidade para tripudiar sobre a presidente, como fez Renan. Os "profissionais" do PMDB também estão dando cabeçadas entre si, o que mostra que o maior partido do Congresso continua a ser uma confederação de lideranças regionais, em que cada uma tenta levar a sigla para a defesa de seus interesses imediatos. Por fim, a controvérsia em torno do fundo partidário mostra quão enganosa é a bandeira da exclusividade do financiamento público, levantada pelo PT - que, numa tentativa de limpar sua imagem, anunciou que não aceitará mais doações empresariais. Desde a aprovação da Lei dos Partidos Políticos, em 1995, o fundo partidário tem tido vários incrementos. O valor reservado no Orçamento de 2015 para o fundo ultrapassa em quase R$ 700 milhões o que a lei estabelece como piso mínimo de recursos que o Estado deve transferir para os partidos políticos. Essa conta não inclui o espaço de propaganda no rádio e na TV para os partidos políticos, que é uma despesa também bancada pela União e que costuma ser a mais onerosa nas democracias. Ou seja, o sistema de financiamento político brasileiro é cada vez mais público que privado, ao contrário do que faz crer a campanha dos petistas pela reforma política.

A perda da vergonha – Editorial / IstoÉ

Existe muito de imoral nas deliberações em curso pelo governo e mesmo com toda a carga de protestos e de rejeição a ele não param de surgir medidas que chocam a Nação como um todo. Na sequência de erros atrás de erros, a cada semana, o descalabro da vez foi o aumento inacreditável dos recursos destinados ao fundo partidário, uma dinheirama distribuída fartamente pelo Estado para irrigar os já gordos cofres dessas agremiações e bancar as negociatas de seus dirigentes. A aberração segue em voga há 20 anos. Consumiu nesse tempo mais de R$ 4 bilhões em recursos públicos, segundo as contas do Tribunal Superior Eleitoral, e de lá para cá teve um crescimento exponencial de cotação da ordem de 490%. O que ocorreu na semana passada, de todo modo, ultrapassa qualquer nível de compreensão. 

Para não contrariar os humores políticos, e sob pressão direta do PT para que desse andamento à proposta, a presidente Dilma resolveu simplesmente triplicar a verba destinada a essa rubrica. O governo, que pretendia gastar R$ 289,5 milhões neste ano com a conta, aceitou ser mais generoso e referendou um dote de R$ 867,5 milhões para as legendas. E isso em plena campanha por um ajuste fiscal que, fica cada dia mais evidente, sobrará para ser arcado pela população. A turbinada no Fundo Partidário ocorre em meio ao enfraquecimento notório do poder de barganha de Dilma e teve, segundo assessores próximos, o objetivo de arrebanhar simpatizantes e apoios às suas deliberações. 

Na surrada tática do toma-lá-dá-cá, perdeu-se de vez a vergonha. Ao sancionar a despesa, Dilma não apenas afrontou o senso comum. Sofreu críticas dos próprios aliados a quem pensava agradar. O presidente do Senado, Renan Calheiros, sem poupar palavras, foi ao ataque: "A presidente fez o que havia de pior. Ela deveria ter vetado, como muitos pediram". O repasse extra vai custar mais de meio bilhão de reais (exatos R$ 578 milhões) ao Tesouro. O vice-presidente, Michel Temer, que assumiu o papel de bombeiro para apagar os inúmeros incêndios promovidos pelo governo, tentou contornar o problema. Falou na possibilidade de contingenciamento da verba autorizada. Mas teve, logo depois, de voltar atrás dado que a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) impede o bloqueio, mesmo em parte, desses recursos depois que eles são sancionados. A derrapagem oficial que desmoralizou o discurso de austeridade vai, mais uma vez, pesar no bolso dos brasileiros, sem dó nem piedade

Três Meninas do Brasil - Meninas do Brasil

Pier Paolo Pasolini - A recessão

Reveremos calças com remendos
vermelhos pores do sol sobre as aldeias
vazias de carros
cheias de pobre gente que terá voltado de Turim ou da Alemanha
Os velhos serão donos de suas muretas como poltronas de senadores
e as crianças saberão que a sopa é pouca e o que significa um pedaço de pão
E a noite será mais negra que o fim do mundo e de noite ouviremos os grilos ou os trovões
e talvez algum jovem entre aqueles poucos que voltaram ao ninho tirará pra fora um bandolim
O ar terá o sabor de trapos molhados
tudo estará longe
trens e ônibus passarão de vez em quando como num sonho
E cidades grandes como mundos estarão cheias de gente que vai a pé
com as roupas cinzas
e dentro dos olhos uma pergunta que não é de dinheiro mas é só de amor
somente de amor
As pequenas fábricas no mais belo de um prado verde
na curva de um rio
no coração de um velho bosque de carvalhos
desabarão um pouco por noite
Mureta por mureta
Teto em chapa por teto em chapa
E as antigas construções
serão como montanhas de pedra
sós e fechadas como eram uma vez
E a noite será mais negra que o fim do mundo
e de noite ouviremos os grilos e os trovões
O ar terá o sabor de trapos molhados
tudo estará longe
trens e ônibus passarão
de vez em quando como num sonho
E os bandidos terão a face de uma vez
Com os cabelos curtos no pescoço
e os olhos de suas mães cheios do negro das noites de lua
e estarão armados só de uma faca
O tamanco do cavalo tocará a terra leve como uma borboleta
e lembrará aquilo que foi o silêncio o mundo
e aquilo que será.

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Tradução: Mario S. Mieli

Antonio Gramsci (22/1/1891-27/4/1937) – Estudo da filosofia e da história da cultura

Apontamentos para uma introdução e um encaminhamento ao estudo da filosofia e da história da cultura

I. Alguns pontos preliminares de referência

§ 12. É preciso destruir o preconceito, muito difundido, de que a filosofia é algo muito difícil pelo fato de ser a atividade intelectual própria de uma determinada categoria de cientistas especializados ou de filósofos profissionais e sistemáticos. É preciso, portanto, demonstrar preliminarmente que todos os homens são “filósofos”, definindo os limites e as características desta “filosofia espontânea”, peculiar a “todo o mundo”, isto é, da filosofia que está contida: 1) na própria linguagem, que é um conjunto de noções e de conceitos determinados e não, simplesmente, de palavras gramaticalmente vazias de conteúdo; 2) no senso comum e no bom senso; 3) na religião popular e, conseqüentemente, em todo o sistema de crenças, superstições, opiniões, modos de ver e de agir que se manifestam naquilo que geralmente se conhece por “folclore”.

Após demonstrar que todos são filósofos, ainda que a seu modo, inconscientemente — já que, até mesmo na mais simples manifestação de uma atividade intelectual qualquer, na “linguagem”, está contida uma determinada concepção do mundo —, passa-se ao segundo momento, ao momento da crítica e da consciência, ou seja, ao seguinte problema: é preferível “pensar” sem disto ter consciência crítica, de uma maneira desagregada e ocasional, isto é, “participar” de uma concepção do mundo “imposta” mecanicamente pelo ambiente exterior, ou seja, por um dos muitos grupos sociais nos quais todos estão automaticamente envolvidos desde sua entrada no mundo consciente (e que pode ser a própria aldeia ou a província, pode se originar na paróquia e na “atividade intelectual” do vigário ou do velho patriarca, cuja “sabedoria” dita leis, na mulher que herdou a sabedoria das bruxas ou no pequeno intelectual avinagrado pela própria estupidez e pela impotência para a ação), ou é preferível elaborar a própria concepção do mundo de uma maneira consciente e crítica e, portanto, em ligação com este trabalho do próprio cérebro, escolher a própria esfera de atividade, participar ativamente na produção da história do mundo, ser o guia de si mesmo e não mais aceitar do exterior, passiva e servilmente, a marca da própria personalidade?

Nota I. Pela própria concepção do mundo, pertencemos sempre a um determinado grupo, precisamente o de todos os elementos sociais que compartilham um mesmo modo de pensar e de agir. Somos conformistas de algum conformismo, somos sempre homens-massa ou homens-coletivos. O problema é o seguinte: qual é o tipo histórico de conformismo, de homem-massa do qual fazemos parte? Quando a concepção do mundo não é crítica e coerente, mas ocasional e desagregada, pertencemos simultaneamente a uma multiplicidade de homens-massa, nossa própria personalidade é compósita, de uma maneira bizarra: nela se encontram elementos dos homens das cavernas e princípios da ciência mais moderna e progressista, preconceitos de todas as fases históricas passadas estreitamente localistas e intuições de uma futura filosofia que será própria do gênero humano mundialmente unificado. Criticar a própria concepção do mundo, portanto, significa torná-la unitária e coerente e elevá-la até o ponto atingido pelo pensamento mundial mais evoluído. Significa também, portanto, criticar toda a filosofia até hoje existente, na medida em que ela deixou estratificações consolidadas na filosofia popular. O início da elaboração crítica é a consciência daquilo que é realmente, isto é, um “conhece-te a ti mesmo” como produto do processo histórico até hoje desenvolvido, que deixou em ti uma infinidade de traços acolhidos sem análise crítica. Deve-se fazer, inicialmente, essa análise.

Nota II. Não se pode separar a filosofia da história da filosofia, nem a cultura da história da cultura. No sentido mais imediato e determinado, não se pode ser filósofo — isto é, ter uma concepção do mundo criticamente coerente — sem a consciência da própria historicidade, da fase de desenvolvimento por ela representada e do fato de que ela está em contradição com outras concepções ou com elementos de outras concepções. A própria concepção do mundo responde a determinados problemas colocados pela realidade, que são bem determinados e “originais” em sua atualidade. Como é possível pensar o presente, e um presente bem determinado, com um pensamento elaborado em face de problemas de um passado freqüentemente bastante remoto e superado? Se isto ocorre, significa que somos “anacrônicos” em face da época em que vivemos, que somos fósseis e não seres que vivem de modo moderno. Ou, pelo menos, que somos bizarramente “compósitos”. E ocorre, de fato, que grupos sociais que, em determinados aspectos, exprimem a mais desenvolvida modernidade, em outros manifestam-se atrasados com relação à sua posição social, sendo, portanto, incapazes de completa autonomia histórica.

Nota III. Se é verdade que toda linguagem contém os elementos de uma concepção do mundo e de uma cultura, será igualmente verdade que, a partir da linguagem de cada um, é possível julgar a maior ou menor complexidade da sua concepção do mundo. Quem fala somente o dialeto ou compreende a língua nacional em graus diversos, participa necessariamente de uma intuição do mundo mais ou menos restrita e provinciana, fossilizada, anacrônica em relação às grandes correntes de pensamento que dominam a história mundial. Seus interesses serão restritos, mais ou menos corporativistas ou economicistas, não universais. Se nem sempre é possível aprender outras línguas estrangeiras a fim de colocar-se em contato com vidas culturais diversas, deve-se pelo menos conhecer bem a língua nacional. Uma grande cultura pode traduzir-se na língua de outra grande cultura, isto é, uma grande língua nacional historicamente rica e complexa pode traduzir qualquer outra grande cultura, ou seja, ser uma expressão mundial. Mas, com um dialeto, não é possível fazer a mesma coisa.

Nota IV. Criar uma nova cultura não significa apenas fazer individualmente descobertas “originais”; significa também, e sobretudo, difundir criticamente verdades já descobertas, “socializá-las” por assim dizer; e, portanto, transformá-las em base de ações vitais, em elemento de coordenação e de ordem intelectual e moral. O fato de que uma multidão de homens seja conduzida a pensar coerentemente e de maneira unitária a realidade presente é um fato “filosófico” bem mais importante e “original” do que a descoberta, por parte de um “gênio” filosófico, de uma nova verdade que permaneça como patrimônio de pequenos grupos intelectuais.

Conexão entre o senso comum, a religião e a filosofia. A filosofia é uma ordem intelectual, o que nem a religião nem o senso comum podem ser. Ver como, na realidade, tampouco coincidem religião e senso comum, mas a religião é um elemento do senso comum desagregado. Ademais, “senso comum” é um nome coletivo, como “religião”: não existe um único senso comum, pois também ele é um produto e um devir histórico. A filosofia é a crítica e a superação da religião e do senso comum e, nesse sentido, coincide com o “bom senso” que se contrapõe ao senso comum.

Relações entre ciência-religião-senso comum. A religião e o senso comum não podem constituir uma ordem intelectual porque não podem reduzir-se à unidade e à coerência nem mesmo na consciência individual, para não falar na consciência coletiva: não podem reduzir-se à unidade e à coerência “livremente”, já que “autoritariamente” isto poderia ocorrer, como de fato ocorreu, dentro de certos limites, no passado. O problema da religião, entendida não no sentido confessional, mas no laico, de unidade de fé entre uma concepção do mundo e uma norma de conduta adequada a ela: mas por que chamar esta unidade de fé de “religião”, e não de “ideologia” ou, mesmo, de “política”? [12]

Com efeito, não existe filosofia em geral: existem diversas filosofias ou concepções do mundo, e sempre se faz uma escolha entre elas. Como ocorre esta escolha? É esta escolha um fato puramente intelectual, ou é um fato mais complexo? E não ocorre freqüentemente que entre o fato intelectual e a norma de conduta exista uma contradição? Qual será, então, a verdadeira concepção do mundo: a que é logicamente afirmada como fato intelectual, ou a que resulta da atividade real de cada um, que está implícita na sua ação? E, já que a ação é sempre uma ação política, não se pode dizer que a verdadeira filosofia de cada um se acha inteiramente contida na sua política? Este contraste entre o pensar e o agir, isto é, a coexistência de duas concepções do mundo, uma afirmada por palavras e a outra manifestando-se na ação efetiva, nem sempre se deve à má-fé. A má-fé pode ser uma explicação satisfatória para alguns indivíduos considerados isoladamente, ou até mesmo para grupos mais ou menos numerosos, mas não é satisfatória quando o contraste se verifica nas manifestações vitais de amplas massas: neste caso, ele não pode deixar de ser a expressão de contrastes mais profundos de natureza histórico-social. Isto significa que um grupo social, que tem uma sua própria concepção do mundo, ainda que embrionária, que se manifesta na ação e, portanto, de modo descontínuo e ocasional — isto é, quando tal grupo se movimenta como um conjunto orgânico —, toma emprestado a outro grupo social, por razões de submissão e subordinação intelectual, uma concepção que não é a sua, e a afirma verbalmente, e também acredita segui-la, já que a segue em “épocas normais”, ou seja, quando a conduta não é independente e autônoma, mas sim submissa e subordinada. É por isso, portanto, que não se pode separar a filosofia da política; ao contrário, pode-se demonstrar que a escolha e a crítica de uma concepção do mundo são, também elas, fatos políticos.

Deve-se, portanto, explicar como ocorre que em cada época coexistam muitos sistemas e correntes de filosofia, como nascem, como se difundem, por que nessa difusão seguem certas linhas de separação e certas direções, etc. Isto mostra o quanto é necessário sistematizar crítica e coerentemente as próprias intuições do mundo e da vida, fixando com exatidão o que se deve entender por “sistema”, a fim de evitar compreendê-lo num sentido pedante e professoral. Mas esta elaboração deve ser feita, e somente pode ser feita, no quadro da história da filosofia, que mostra qual foi a elaboração que o pensamento sofreu no curso dos séculos e qual foi o esforço coletivo necessário para que existisse o nosso atual modo de pensar, que resume e compendia toda esta história passada, mesmo em seus erros e em seus delírios, os quais, de resto, não obstante terem sido cometidos no passado e terem sido corrigidos, podem ainda se reproduzir no presente e exigir novamente a sua correção.

Qual é a idéia que o povo faz da filosofia? Pode-se reconstruí-la através das expressões da linguagem comum. Uma das mais difundidas é a de “tomar as coisas com filosofia”, a qual, analisada, não tem por que ser inteiramente afastada. É verdade que nela se contém um convite implícito à resignação e à paciência, mas parece que o ponto mais importante seja, ao contrário, o convite à reflexão, à tomada de consciência de que aquilo que acontece é, no fundo, racional, e que assim deve ser enfrentado, concentrando as próprias forças racionais e não se deixando levar pelos impulsos instintivos e violentos. Essas expressões populares poderiam ser agrupadas com as expressões similares dos escritores de caráter popular (recolhidas dos grandes dicionários), nas quais entrem os termos “filosofia” e “filosoficamente”; e assim se poderá perceber que tais expressões têm um significado muito preciso, a saber, o da superação das paixões bestiais e elementares numa concepção da necessidade que fornece à própria ação uma direção consciente. Este é o núcleo sadio do senso comum, que poderia precisamente ser chamado de bom senso e que merece ser desenvolvido e transformado em algo unitário e coerente. Torna-se evidente, assim, por que não é possível a separação entre a chamada filosofia “científica” e a filosofia “vulgar” e popular, que é apenas um conjunto desagregado de idéias e de opiniões.

Mas, nesse ponto, coloca-se o problema fundamental de toda concepção do mundo, de toda filosofia que se transformou em um movimento cultural, em uma “religião”, em uma “fé”, ou seja, que produziu uma atividade prática e uma vontade nas quais ela esteja contida como “premissa” teórica implícita (uma “ideologia”, pode-se dizer, desde que se dê ao termo “ideologia” o significado mais alto de uma concepção do mundo, que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas as manifestações de vida individuais e coletivas) — isto é, o problema de conservar a unidade ideológica em todo o bloco social que está cimentado e unificado justamente por aquela determinada ideologia. A força das religiões, e notadamente da Igreja Católica, consistiu e consiste no seguinte: elas sentem intensamente a necessidade de união doutrinária de toda a massa “religiosa” e lutam para que os estratos intelectualmente superiores não se destaquem dos inferiores. 

A Igreja romana foi sempre a mais tenaz na luta para impedir que se formassem “oficialmente” duas religiões, a dos “intelectuais” e a das “almas simples”. Esta luta não foi travada sem que ocorressem graves inconvenientes para a própria Igreja, mas estes inconvenientes estão ligados ao processo histórico que transforma a totalidade da sociedade civil e que contém, em bloco, uma crítica corrosiva das religiões. E isto faz ressaltar ainda mais a capacidade organizativa do clero na esfera da cultura, bem como a relação abstratamente racional e justa que a Igreja, em seu âmbito, soube estabelecer entre intelectuais e pessoas simples. Os jesuítas foram, indubitavelmente, os maiores artífices deste equilíbrio e, para conservá-lo, eles imprimiram à Igreja um movimento progressivo que tende a satisfazer parcialmente as exigências da ciência e da filosofia, mas com um ritmo tão lento e metódico que as modificações não são percebidas pela massa dos simples, embora apareçam como “revolucionárias” e demagógicas aos olhos dos “integristas”.

Uma das maiores debilidades das filosofias imanentistas em geral consiste precisamente em não terem sabido criar uma unidade ideológica entre o baixo e o alto, entre os “simples” e os intelectuais. Na história da civilização ocidental, o fato verificou-se em escala européia, com o fracasso imediato do Renascimento e, parcialmente, também da Reforma em face da Igreja Católica. Esta debilidade manifesta-se na questão da escola, na medida em que, a partir das filosofias imanentistas, nem mesmo se tentou construir uma concepção que pudesse substituir a religião na educação infantil, do que resultou o sofisma pseudo-historicista, defendido por pedagogos a-religiosos (aconfessionais), realmente ateus, que permite o ensino da religião porque ela é a filosofia da infância da humanidade, que se renova em toda infância não metafórica. O idealismo também se manifestou contrário aos movimentos culturais de “ida ao povo”, expressos nas chamadas Universidades populares e instituições similares, e não apenas pelos seus aspectos equivocados, já que nesse caso deveriam somente ter procurado fazer melhor. Todavia, estes movimentos eram dignos de interesse e mereciam ser estudados: eles tiveram êxito, no sentido em que revelaram, da parte dos “simples”, um sincero entusiasmo e um forte desejo de elevação a uma forma superior de cultura e de concepção do mundo. 

Faltava-lhes, porém, qualquer organicidade, seja de pensamento filosófico, seja de solidez 
organizativa e de centralização cultural; tinha-se a impressão de que se assemelhavam aos primeiros contatos entre os mercadores ingleses e os negros africanos: trocavam-se coisas sem valor por pepitas de ouro. De resto, a organicidade de pensamento e a solidez cultural só poderiam ocorrer se entre os intelectuais e os simples se verificasse a mesma unidade que deve existir entre teoria e prática, isto é, se os intelectuais tivessem sido organicamente os intelectuais daquelas massas, ou seja, se tivessem elaborado e tornado coerentes os princípios e os problemas que aquelas massas colocavam com a sua atividade prática, constituindo assim um bloco cultural e social. Tratava-se, pois, da mesma questão já assinalada: um movimento filosófico só merece este nome na medida em que busca desenvolver uma cultura especializada para restritos grupos de intelectuais ou, ao contrário, merece-o na medida em que, no trabalho de elaboração de um pensamento superior ao senso comum e cientificamente coerente, jamais se esquece de permanecer em contato com os “simples” e, melhor dizendo, encontra neste contato a fonte dos problemas que devem ser estudados e resolvidos? Só através deste contato é que uma filosofia se torna “histórica”, depura-se dos elementos intelectualistas de natureza individual e se transforma em “vida”.

(Talvez seja útil distinguir “praticamente” entre a filosofia e o senso comum, para melhor indicar a passagem de um momento para o outro. Na filosofia, destacam-se notadamente as características de elaboração individual do pensamento; no senso comum, ao contrário, destacam-se as características difusas e dispersas de um pensamento genérico de uma certa época em um certo ambiente popular. Mas toda filosofia tende a se tornar senso comum de um ambiente, ainda que restrito (de todos os intelectuais). Trata-se, portanto, de elaborar uma filosofia que — tendo já uma difusão ou possibilidade de difusão, pois ligada à vida prática e implícita nela — se torne um senso comum renovado com a coerência e o vigor das filosofias individuais. E isto não pode ocorrer se não se sente, permanentemente, a exigência do contato cultural com os “simples”.)

Uma filosofia da práxis só pode apresentar-se, inicialmente, em atitude polêmica e crítica, como superação da maneira de pensar precedente e do pensamento concreto existente (ou mundo cultural existente). E portanto, antes de tudo, como crítica do “senso comum” (e isto após basear-se sobre o senso comum para demonstrar que “todos” são filósofos e que não se trata de introduzir ex novo uma ciência na vida individual de “todos”, mas de inovar e tornar “crítica” uma atividade já existente); e, posteriormente, como crítica da filosofia dos intelectuais, que deu origem à história da filosofia e que, enquanto individual (e, de fato, ela se desenvolve essencialmente na atividade de indivíduos singulares particularmente dotados), pode ser considerada como “culminâncias” de progresso do senso comum, pelo menos do senso comum dos estratos mais cultos da sociedade e, através desses, também do senso comum popular. É assim, portanto, que uma introdução ao estudo da filosofia deve expor sinteticamente os problemas nascidos no processo de desenvolvimento da cultura geral, que só parcialmente se reflete na história da filosofia, a qual, todavia, na ausência de uma história do senso comum (impossível de ser elaborada pela ausência de material documental), permanece a fonte máxima de referência para criticá-los, demonstrar o seu valor real (se ainda o tiverem) ou o significado que tiveram como elos superados de uma cadeia e fixar os problemas novos e atuais ou a colocação atual dos velhos problemas.

A relação entre filosofia “superior” e senso comum é assegurada pela “política”, do mesmo modo como é assegurada pela política a relação entre o catolicismo dos intelectuais e o dos “simples”. As diferenças entre os dois casos são, todavia, fundamentais. O fato de que a Igreja deva enfrentar um problema dos “simples” significa, justamente, que existiu uma ruptura na comunidade dos “fiéis”, ruptura que não pode ser eliminada pela elevação dos “simples” ao nível dos intelectuais (a Igreja nem sequer se propõe esta tarefa ideal e economicamente desproporcional em relação às suas forças atuais), mas mediante uma disciplina de ferro sobre os intelectuais para que eles não ultrapassem certos limites nesta separação, tornando-a catastrófica e irreparável. No passado, essas “rupturas” na comunidade dos fiéis eram remediadas por fortes movimentos de massa, que determinavam ou eram absorvidos na formação de novas ordens religiosas em torno a fortes personalidades (Domingos, Francisco). (Os movimentos heréticos da Idade-Média — que surgiram como reação simultânea à politicagem da Igreja e à filosofia escolástica que foi uma sua expressão, e que se baseavam nos conflitos sociais determinados pelo nascimento das Comunas — foram uma ruptura entre massa e intelectuais no interior da Igreja, ruptura “corrigida” pelo nascimento de movimentos populares religiosos reabsorvidos pela Igreja, através da formação das ordens mendicantes e de uma nova unidade religiosa.) Mas a Contra-Reforma esterilizou este pulular de forças populares: a Companhia de Jesus é a última grande ordem religiosa, de origem reacionária e autoritária, com caráter repressivo e “diplomático”, que assinalou, com seu nascimento, o endurecimento do organismo católico. As novas ordens surgidas posteriormente têm um pequeníssimo significado “religioso” e um grande significado “disciplinar” sobre a massa dos fiéis: são ramificações e tentáculos da Companhia de Jesus (ou se tornaram isso), instrumentos de “resistência” para conservar as posições políticas adquiridas, não forças renovadoras de desenvolvimento. O catolicismo se transformou em “jesuitismo”. O modernismo não criou “ordens religiosas”, mas sim um partido político: a democracia cristã. (Recordar a anedota, narrada por Steed em suas Memórias, do cardeal que explica ao protestante inglês filocatólico que os milagres de São Genaro são úteis para o populacho napolitano mas não para os intelectuais, que também nos Evangelhos existem “exageros”, etc. E à pergunta: “Mas nós não somos cristãos?”, responde: “Nós somos ‘prelados’, isto é, ‘políticos’ da Igreja de Roma”.)

A posição da filosofia da práxis é antitética a esta posição católica: a filosofia da práxis não busca manter os “simples” na sua filosofia primitiva do senso comum, mas busca, ao contrário, conduzi-los a uma concepção de vida superior. Se ela afirma a exigência do contato entre os intelectuais e os simples não é para limitar a atividade científica e para manter uma unidade no nível inferior das massas, mas justamente para forjar um bloco intelectual-moral que torne politicamente possível um progresso intelectual de massa e não apenas de pequenos grupos intelectuais.

O homem ativo de massa atua praticamente, mas não tem uma clara consciência teórica desta sua ação, a qual, não obstante, é um conhecimento do mundo na medida em que o transforma. Pode ocorrer, aliás, que sua consciência teórica esteja historicamente em contradição com o seu agir. É quase possível dizer que ele tem duas consciências teóricas (ou uma consciência contraditória): uma, implícita na sua ação, e que realmente o une a todos os seus colaboradores na transformação prática da realidade; e outra, superficialmente explícita ou verbal, que ele herdou do passado e acolheu sem crítica. Todavia, esta concepção “verbal” não é inconseqüente: ela liga a um grupo social determinado, influi sobre a conduta moral, sobre a direção da vontade, de uma maneira mais ou menos intensa, que pode até mesmo atingir um ponto no qual a contraditoriedade da consciência não permita nenhuma ação, nenhuma escolha e produza um estado de passividade moral e política. A compreensão crítica de si mesmo é obtida, portanto, através de uma luta de “hegemonias” políticas, de direções contrastantes, primeiro no campo da ética, depois no da política, atingindo, finalmente, uma elaboração superior da própria concepção do real. A consciência de fazer parte de uma determinada força hegemônica (isto é, a consciência política) é a primeira fase de uma ulterior e progressiva autoconsciência, na qual teoria e prática finalmente se unificam. Portanto, também a unidade de teoria e prática não é um dado de fato mecânico, mas um devir histórico, que tem a sua fase elementar e primitiva no sentimento de “distinção”, de “separação”, de independência quase instintiva, e progride até a aquisição real e completa de uma concepção do mundo coerente e unitária.

 É por isso que se deve chamar a atenção para o fato de que o desenvolvimento político do conceito de hegemonia representa, para além do progresso político-prático, um grande progresso filosófico, já que implica e supõe necessariamente uma unidade intelectual e uma ética adequada a uma concepção do real que superou o senso comum e tornou-se crítica, mesmo que dentro de limites ainda restritos.
Todavia, nos mais recentes desenvolvimentos da filosofia da práxis, o aprofundamento do conceito de unidade entre a teoria e a prática permanece ainda numa fase inicial: subsistem ainda resíduos de mecanicismo, já que se fala da teoria como “complemento” e “acessório” da prática, da teoria como serva da prática. Parece justo que também este problema deva ser colocado historicamente, isto é, como um aspecto da questão política dos intelectuais. Autoconsciência crítica significa, histórica e politicamente, criação de uma elite de intelectuais: uma massa humana não se “distingue” e não se torna independente “para si” sem organizar-se (em sentido lato); e não existe organização sem intelectuais, isto é, sem organizadores e dirigentes, ou seja, sem que o aspecto teórico da ligação teoria-prática se distinga concretamente em um estrato de pessoas “especializadas” na elaboração conceitual e filosófica. Mas este processo de criação dos intelectuais é longo, difícil, cheio de contradições, de avanços e de recuos, de debandadas e de reagrupamentos; e, neste processo, a “fidelidade” da massa (e a fidelidade e a disciplina são inicialmente a forma que assume a adesão da massa e a sua colaboração no desenvolvimento do fênomeno cultural como um todo) é submetida a duras provas. O processo de desenvolvimento está ligado a uma dialética intelectuais-massa; o estrato dos intelectuais se desenvolve quantitativa e qualitativamente, mas todo progresso para uma nova “amplitude” e complexidade do estrato dos intelectuais está ligado a um movimento análogo da massa dos simples, que se eleva a níveis superiores de cultura e amplia simultaneamente o seu círculo de influência, com a passagem de indivíduos, ou mesmo de grupos mais ou menos importantes, para o estrato dos intelectuais especializados. No processo, porém, repetem-se continuamente momentos nos quais entre a massa e os intelectuais (ou alguns deles, ou um grupo deles) se produz uma separação, uma perda de contato, e, portanto, a impressão de “acessório”, de complementar, de subordinado. A insistência sobre o elemento “prático’’ da ligação teoria-prática — após se ter cindido, separado e não apenas distinguido os dois elementos (o que é uma operação meramente mecânica e convencional) — significa que se está atravessando uma fase histórica relativamente primitiva, uma fase ainda econômico-corporativa, na qual se transforma quantitativamente o quadro geral da “estrutura” e a qualidade-superestrutura adequada está em vias de surgir, mas não está ainda organicamente formada. Deve-se sublinhar a importância e o significado que têm os partidos políticos, no mundo moderno, na elaboração e difusão das concepções do mundo, na medida em que elaboram essencialmente a ética e a política adequadas a elas, isto é, em que funcionam quase como “experimentadores” históricos de tais concepções. Os partidos selecionam individualmente a massa atuante, e esta seleção opera-se simultaneamente nos campos prático e teórico, com uma relação tão mais estreita entre teoria e prática quanto mais seja a concepção vitalmente e radicalmente inovadora e antagônica aos antigos modos de pensar. Por isso, pode-se dizer que os partidos são os elaboradores das novas intelectualidades integrais e totalitárias [13], isto é, o crisol da unificação de teoria e prática entendida como processo histórico real; e compreende-se, assim, como seja necessária que a sua formação se realize através da adesão individual e não ao modo “laborista”, já que — se se trata de dirigir organicamente “toda a massa economicamente ativa” — deve-se dirigi-la não segundo velhos esquemas, mas inovando; e esta inovação só pode tornar-se de massa, em seus primeiros estágios, por intermédio de uma elite na qual a concepção implícita na atividade humana já se tenha tornado, em certa medida, consciência atual coerente e sistemática e vontade precisa e decidida. Uma destas fases pode ser estudada na discussão através da qual se verificaram os mais recentes desenvolvimentos da filosofia da práxis, discussão resumida em um artigo de D. S. Mirski, colaborador da Cultura[14]. Pode-se ver como ocorreu a passagem de uma concepção mecanicista e puramente exterior para uma concepção ativista, que está mais próxima, como observamos, de uma justa compreensão da unidade entre teoria e prática, se bem que ainda não lhe tenha captado todo o significado sintético. Pode-se observar como o elemento determinista, fatalista, mecânico, tenha sido um “aroma” ideológico imediato da filosofia da práxis, uma forma de religião e de excitante (mas ao modo dos narcóticos), tornada necessária e justificada historicamente pelo caráter “subalterno” de determinados estratos sociais. Quando não se tem a iniciativa na luta e a própria luta termina assim por identificar-se com uma série de derrotas, o determinismo mecânico transforma-se em uma formidável força de resistência moral, de coesão, de perseverança paciente e obstinada. “Eu estou momentaneamente derrotado, mas a força das coisas trabalha por mim a longo prazo, etc.” A vontade real se disfarça em um ato de fé, numa certa racionalidade da história, numa forma empírica e primitiva de finalismo apaixonado, que surge como um substituto da predestinação, da providência, etc., próprias das religiões confessionais. Deve-se insistir sobre o fato de que, também nesse caso, existe realmente uma forte atividade volitiva, uma intervenção direta sobre a “força das coisas”, mas de uma maneira implícita, velada, que se envergonha de si mesma; portanto, a consciência é contraditória, carece de unidade crítica, etc. Mas, quando o “subalterno” se torna dirigente e responsável pela atividade econômica de massa, o mecanicismo revela-se num certo ponto como um perigo iminente; opera-se, então, uma revisão de todo o modo de pensar, já que ocorreu uma modificação no modo social de ser.

 Os limites e o domínio da “força das coisas” se restringiram. Por quê? Porque, no fundo, se o subalterno era ontem uma coisa, hoje não o é mais: tornou-se uma pessoa histórica, um protagonista; se ontem era irresponsável, já que era “resistente” a uma vontade estranha, hoje sente-se responsável, já que não é mais resistente, mas sim agente e necessariamente ativo e empreendedor . Mas, mesmo ontem, será que ele era apenas simples “resistência”, simples “coisa”, simples “irresponsabilidade”?

 Não, por certo; deve-se, aliás, sublinhar que o fatalismo é apenas a maneira pela qual os fracos se revestem de uma vontade ativa e real. É por isso que se torna necessário demonstrar sempre a futilidade do determinismo mecânico, o qual, explicável como filosofia ingênua da massa e, somente enquanto tal, elemento intrínseco de força, torna-se causa de passividade, de imbecil auto-suficiência, quando é elevado a filosofia reflexiva e coerente por parte dos intelectuais; e isto sem esperar que o subalterno torne-se dirigente e responsável. Uma parte da massa, ainda que subalterna, é sempre dirigente e responsável, e a filosofia da parte precede sempre a filosofia do todo, não só como antecipação teórica, mas também como necessidade atual.

O fato de que a concepção mecanicista tenha sido uma religião de subalternos é revelado por uma análise do desenvolvimento da religião cristã, que — em um certo período histórico e em condições históricas determinadas — foi e continua a ser uma “necessidade”, uma forma necessária da vontade das massas populares, uma forma determinada de racionalidade do mundo e da vida, fornecendo os quadros gerais para a atividade prática real. Neste trecho de um artigo da Civilità Cattolica (“Individualismo pagano e individualismo cristiano”, fascículo de 5 de março de 1932), parece-me bem explícita esta função do cristianismo: “A fé em um porvir seguro, na imortalidade da alma destinada à beatitude, na certeza de poder atingir o eterno gozo, foi a mola propulsora para um trabalho de intenso aperfeiçoamento interno e de elevação espiritual. O verdadeiro individualismo cristão encontrou nisso o impulso para as suas vitórias. Todas as forças do cristão foram concentradas em torno a este nobre fim. Libertado das flutuações especulativas que lançam a alma na dúvida, e iluminado por princípios imortais, o homem sentiu renascer as esperanças; certo de que uma força superior o sustentava na luta contra o mal, ele fez violência a si mesmo e venceu o mundo”. Mas, também neste caso, trata-se do cristianismo ingênuo, não do cristianismo jesuitizado, transformado em simples ópio para as massas populares.

Mas a posição do calvinismo, com a sua férrea concepção da predestinação e da graça, que determina uma vasta expansão do espírito de iniciativa (ou torna-se a forma deste movimento), é ainda mais expressiva e significativa. (Sobre este assunto, consulte-se Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo, publicado nos Nuovi Studi, fascículos de 1931 e ss.; bem como o livro de Groethuysen sobre as origens religiosas da burguesia na França [15].)

Por que e como se difundem, tornando-se populares, as novas concepções do mundo? Neste processo de difusão (que é, simultaneamente, de substituição do velho e, muito freqüentemente, de combinação entre o novo e o velho), influem (e como e em que medida), a forma racional em que a nova concepção é exposta e apresentada, a autoridade (na medida em que é reconhecida e apreciada, pelo menos genericamente) do expositor e dos pensadores e cientistas nos quais o expositor se apóia, a participação na mesma organização daquele que sustenta a nova concepção (após ter entrado na organização, mas por outro motivo que não aquele de partilhar da nova concepção)? Na realidade, estes elementos variam de acordo com o grupo social e com o nível cultural do referido grupo. Mas a pesquisa é interessante, sobretudo, no que diz respeito às massas populares, que mais dificilmente mudam de concepção e que, em todo caso, jamais a mudam aceitando a nova concepção em sua forma “pura”, por assim dizer, mas -- apenas e sempre -- como combinação mais ou menos heteróclita e bizarra. A forma racional, logicamente coerente, a perfeição do raciocínio que não esquece nenhum argumento positivo ou negativo de certo peso, têm a sua importância, mas está bem longe de ser decisiva; ela pode ser decisiva apenas secundariamente, quando determinada pessoa já se encontra em crise intelectual, oscila entre o velho e o novo, perdeu a confiança no velho e ainda não se decidiu pelo novo, etc. O mesmo pode ser dito com relação à autoridade dos pensadores e cientistas. Ela é muito grande no povo. Mas, de fato, toda concepção tem pensadores e cientistas a seu favor e a autoridade é dividida; além disso, é possível, com relação a todo pensador, distinguir, colocar em dúvida que haja dito as coisas precisamente dessa maneira, etc. Pode-se concluir que o processo de difusão das novas concepções ocorre por razões políticas, isto é, em última instância, sociais, mas que o elemento formal (a coerência lógica), o elemento de autoridade e o elemento organizativo têm uma função muito grande neste processo tão logo tenha tido lugar a orientação geral, tanto em indivíduos singulares como em grupos numerosos. Disto se conclui, entretanto, que, nas massas como tais, a filosofia não pode ser vivida senão como uma fé. Que se pense, ademais, na posição intelectual de um homem do povo; ele elaborou para si opiniões, convicções, critérios de discriminação e normas de conduta. Todo aquele que sustenta um ponto de vista contrário ao seu, enquanto é intelectualmente superior, sabe argumentar as suas razões melhor do que ele e, logicamente, o derrota na discussão. Deveria, por isso, o homem do povo mudar de convicções? E apenas porque, na discussão imediata, não sabe se impor? Se fosse assim, poderia acontecer que ele devesse mudar uma vez por dia, isto é, todas as vezes que encontrasse um adversário ideológico intelectualmente superior. Em que elementos baseia-se, então, a sua filosofia? E, especialmente, a sua filosofia na forma que tem para ele maior importância, isto é, como norma de conduta? O elemento mais importante, indubitavelmente, é de caráter não racional: é um elemento de fé. Mas de fé em quem e em quê? Sobretudo no grupo social ao qual pertence, na medida em que este pensa as coisas também difusamente, como ele: o homem do povo pensa que tantos não podem se equivocar tão radicalmente, como o adversário argumentador queria fazer crer; que ele próprio, é verdade, não é capaz de sustentar e desenvolver as suas razões como o adversário faz com as dele, mas que, em seu grupo, existe quem poderia fazer isto, certamente ainda melhor do que o referido adversário; e, de fato; ele se recorda de ter ouvido alguém expor, longa e coerentemente, de maneira a convencê-lo, as razões da sua fé. Ele não se recorda concretamente das razões apresentadas e não saberia repeti-las, mas sabe que elas existem, já que ele as ouviu expor e ficou convencido delas. O fato de ter sido convencido uma vez, de maneira fulminante, é a razão da permanente persistência na convicção, ainda que não se saiba mais argumentar.

Estas considerações, contudo, conduzem à conclusão de que as novas convicções das massas populares são extremamente débeis, notadamente quando estas novas convicções estão em contradição com as convicções (igualmente novas) ortodoxas, socialmente conformistas de acordo com os interesses das classes dominantes. Isso pode ser visto quando refletimos sobre os destinos das religiões e das igrejas. A religião, e uma Igreja determinada, mantém a sua comunidade de fiéis (dentro de certos limites, das necessidades do desenvolvimento histórico global) na medida em que mantém permanente e organizadamente a própria fé, repetindo infatigavelmente a sua apologética, lutando sempre e em cada momento com argumentos similares, e mantendo uma hierarquia de intelectuais que emprestem à fé pelo menos a aparência da dignidade do pensamento. Todas as vezes em que a continuidade das relações entre Igreja e fiéis foi interrompida violentamente, por razões políticas, como ocorreu durante a Revolução Francesa, as perdas sofridas pela Igreja foram incalculáveis; e, se as condições que dificultavam o exercício das práticas habituais tivessem excedido certos limites de tempo, é de se supor que tais perdas teriam sido definitivas e uma nova religião teria surgido, o que, aliás, ocorreu na França, em combinação com o velho catolicismo. Disto se deduzem determinadas necessidades para todo movimento cultural que pretenda substituir o senso comum e as velhas concepções do mundo em geral, a saber: 1) não se cansar jamais de repetir os próprios argumentos (variando literariamente a sua forma): a repetição é o meio didático mais eficaz para agir sobre a mentalidade popular; 2) trabalhar de modo incessante para elevar intelectualmente camadas populares cada vez mais vastas, isto é, para dar personalidade ao amorfo elemento de massa, o que significa trabalhar na criação de elites de intelectuais de novo tipo, que surjam diretamente da massa e que permaneçam em contato com ela para se tornarem seus “espartilhos”. Esta segunda necessidade, quando satisfeita, é a que realmente modifica o “panorama ideológico” de uma época. 

Ademais, estas elites não podem constituir-se e desenvolver-se sem que, no seu interior, se verifique uma hierarquização de autoridade e de competência intelectual, que pode culminar em um grande filósofo individual, se este for capaz de reviver concretamente as exigências do conjunto da comunidade ideológica, de compreender que ela não pode ter a rapidez de movimento própria de um cérebro individual e, portanto, de conseguir elaborar formalmente a doutrina coletiva de maneira mais aderente e adequada aos modos de pensar do que um pensador coletivo.

É evidente que uma construção de massa desta espécie não pode ocorrer “arbitrariamente”, em torno a uma ideologia qualquer, pela vontade formalmente construtiva de uma personalidade ou de um grupo que se proponha esta tarefa pelo fanatismo das suas próprias convicções filosóficas ou religiosas. A adesão ou não-adesão de massas a uma ideologia é o modo pelo qual se verifica a crítica real da racionalidade e historicidade dos modos de pensar. As construções arbitrárias são mais ou menos rapidamente eliminadas pela competição histórica, ainda que por vezes, graças a uma combinação de circunstâncias imediatas favoráveis, consigam gozar de certa popularidade; já as construções que correspondem às exigências de um período histórico complexo e orgânico terminam sempre por se impor e prevalecer, ainda que atravessem muitas fases intermediárias nas quais a sua afirmação ocorre apenas em combinações mais ou menos bizarras e heteróclitas.

Estes desenvolvimentos colocam inúmeros problemas, sendo os mais importantes os que se resumem no modo e na qualidade das relações entre as várias camadas intelectuais qualificadas, isto é, na importância e na função que deve e pode ter a contribuição criadora dos grupos superiores, em ligação com a capacidade orgânica de discussão e de desenvolvimento de novos conceitos críticos por parte das camadas intelectualmente subordinadas. Em outras palavras, trata-se de fixar os limites da liberdade de discussão e de propaganda, liberdade que não deve ser entendida no sentido administrativo e policial, mas no sentido de autolimitação que os dirigentes põem à sua própria atividade; ou seja, mais precisamente, trata-se da fixação de uma orientação de política cultural. Em suma: quem fixará os “direitos da ciência” e os limites da pesquisa científica? Poderão esses direitos e esses limites serem realmente fixados? Parece-me necessário que o trabalho de pesquisa de novas verdades e de melhores, mais coerentes e claras formulações das próprias verdades seja deixado à livre iniciativa dos cientistas individuais, ainda que eles reponham continuamente em discussão os próprios princípios que parecem mais essenciais. Por outro lado, não será difícil perceber quando estas iniciativas de discussão tiverem motivos interessados e não de natureza científica. Também não é impossível pensar que as iniciativas individuais possam ser disciplinadas e ordenadas, de maneira que passem pelo crivo de academias ou institutos culturais de natureza diversa, tornando-se públicas somente após um processo de seleção, etc.

Seria interessante estudar concretamente, em um determinado país, a organização cultural que movimenta o mundo ideológico e examinar seu funcionamento prático. Um estudo da relação numérica entre o pessoal que está ligado profissionalmente ao trabalho cultural ativo e a população de cada país seria igualmente útil, com um cálculo aproximativo das forças livres. A escola — em todos os seus níveis — e a Igreja são as duas maiores organizações culturais em todos os países, graças ao número de pessoas que utilizam. Os jornais, as revistas e a atividade editorial, as instituições escolares privadas, tanto as que integram a escola de Estado quanto as instituições de cultura do tipo das universidades populares. Outras profissões incorporam em sua atividade especializada uma fração cultural não desprezível, como a dos médicos, dos oficiais do exército, da magistratura. 

Entretanto, deve-se notar que em todos os países, ainda que em graus diversos, existe uma grande cisão entre as massas populares e os grupos intelectuais, inclusive os mais numerosos e mais próximos à periferia nacional, como os professores e os padres. E isso ocorre porque o Estado, ainda que os governantes digam o contrário, não tem uma concepção unitária, coerente e homogênea, razão pela qual os grupos intelectuais estão desagregados em vários estratos e no interior de um mesmo estrato. A Universidade, com exceção de alguns países, não exerce nenhuma função unificadora; um livre pensador, freqüentemente, tem mais influência do que toda a instituição universitária, etc.

Nota I. Com respeito à função histórica desempenhada pela concepção fatalista da filosofia da práxis, pode-se fazer o seu elogio fúnebre, reivindicando a sua utilidade para um certo período histórico, mas, justamente por isso, sustentando a necessidade de sepultá-la com todas as honras cabíveis. É possível, na verdade, comparar a sua função à da teoria da graça e da predestinação nos inícios do mundo moderno, teoria que posteriormente, porém, culminou na filosofia clássica alemã e na sua concepção da liberdade como consciência da necessidade. Ela foi um sucedâneo popular do grito “Deus assim o quer”; todavia, mesmo neste plano primitivo e elementar, era o início de uma concepção mais moderna e fecunda do que a contida no “Deus assim o quer” ou na teoria da graça. Será possível que uma nova concepção se apresente “formalmente” em outra roupagem que não na rústica e desordenada da plebe? Todavia, o historiador — com toda a necessária distância — consegue fixar e compreender que os inícios de um novo mundo, sempre ásperos e pedregosos, são superiores à decadência de um mundo em agonia e aos cantos de cisne que ele produz. O desaparecimento do “fatalismo” e do “mecanicismo” indica uma grande reviravolta histórica; daí a profunda impressão causada pela resenha de Mirski. Que se pense no que ela provocou. Que se pense na discussão com Mario Trozzi, em Florença, em novembro de 1917, e a primeira menção a bergsonismo, voluntarismo, etc. [16]. Poder-se-ia fazer um quadro semi-sério de como realmente se apresentava esta concepção. Que se pense, também, na discussão com o Professor Presutti, em Roma, em junho de 1924. Comparação com o capitão Giulietti, feita por G. M. Serrati, que para ele foi decisiva e de condenação total. Para Serrati, Giulietti era como o confuciano para o taoísta, como o chinês do sul, mercador ativo e operante, para o literato mandarim do Norte, que olhava com supremo desprezo de iluminado e de sábio, para quem a vida já não tem mistérios, estes homenzinhos do sul que acreditavam poder “abrir caminho” com os seus irrequietos movimentos de formiga. Discurso de Cláudio Treves sobre a expiação. [17]. Havia neste discurso um certo espírito de profeta bíblico: quem quisera e fizera a guerra, quem abalara o mundo em suas bases e, portanto, era responsável pela desordem do após-guerra, deveria expiar e carregar a responsabilidade desta desordem. Tinham cometido o pecado do “voluntarismo”: deviam ser punidos pelo seu pecado, etc. Havia uma certa grandeza sacerdotal neste discurso, um grito de maldições que deveriam petrificar de espanto e, ao contrário, foram um grande consolo, já que indicavam que o coveiro ainda não estava preparado e que Lázaro podia ressuscitar.

NOTAS

1. Antonio Labriola (1843-1904), importante filósofo marxista italiano, ao qual Gramsci se referirá várias vezes nos Cadernos, concedeu em 1902 (e não em 1903) uma entrevista na qual justificava a ação colonial italiana na Líbia, afirmando que ela contribuía para levar a civilização a um povo atrasado.

2. Quando foi Ministro da Instrução Pública no regime fascista, o filósofo neo-hegeliano Giovanni Gentile (1875-1944) – autor ao qual Gramsci retorna freqüentemente nos Cadernos -- justificou o caráter obrigatório do ensino religioso na escola primária alegando que a religião era algo próprio da “infância da humanidade”. Liberal em sua juventude, Gentile tornou-se mais tarde um dos principais ideólogos do fascismo.

3. Bertrando Spaventa (1817-1883) foi o mais importante expoente da chamada “escola hegeliana de Nápoles”. Foi deputado por três legislaturas e defendeu, em sua atuação filosófica e política, propostas liberais progressistas. Teve um importante papel na formação filosófica do seu sobrinho Benedetto Croce (1866-1952), um dos mais importantes interlocutores de Gramsci nos Cadernos.

4. Referência a uma passagem do jovem Marx: “Uma escola [a escola histórica do direito] que legitima a vilania de hoje com a vilania de ontem; uma escola que considera um ato de rebeldia todo grito do servo contra o cnute[chicote] quando este é um cnutecarregado de anos, tradicional, histórico” (Karl Marx, “Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução” [1844], in Temas de ciências humanas, São Paulo, Grijalbo, vol. 2, 1977, p. 3).

5. Alusão às experiências do “Exército do Trabalho”, realizada nos primeiros anos da Rússia soviética. Cf., infra, n. 38, parte II, 1.

6. A citação de Andler está em francês no original.

7. Em várias passagens dos Cadernos, Gramsci refere-se a outras notas de sua autoria, remetendo sempre à numeração das páginas que ele próprio estabelecera no interior de cada caderno. Para não sobrecarregar o nosso próprio aparato de notas, adotamos o critério de remeter em alguns casos, no próprio texto de Gramsci, aos números do caderno e do parágrafo tal como estabelecidos na edição Gerratana (A. Gramsci, Quaderni del carcere, Turim, Einaudi, 1975, a seguir citada como QC) e retomados em nossa presente edição.

8.Com a expressão “idealismo atual”, Gramsci refere-se, aqui e em várias outras passagens dos Cadernos, à chamada “filosofia do ato puro”, elaborada por Giovanni Gentile.

9. Em 1864, a Cúria Romana publicou um elenco de supostos “erros” em matéria religiosa e moral. Conhecido como Sillabo, ou catálogo, esse documento é expressão das posições mais reacionárias da Igreja Católica.

10. “Rerum Scriptor” é o pseudônimo de Gaetano Salvemini (1873-1957). Inicialmente colaborador do Avanti!, jornal do Partido Socialista Italiano, Salvemini torna-se, entre 1911 e 1920, um dos editores do semanário Unità, empenhado na luta contra o protecionismo e no debate da chamada “questão meridional”. Exilado no período fascista, foi um dos fundadores do movimento liberal-socialista Giustizia e libertà.

11. Inicialmente colaborador do jornal fascista Il popolo d’Italia, Giuseppe Renzi se afasta desse movimento após a Marcha sobre Roma, em 1922, que culmina com a nomeação de Mussolini para a chefia do governo. O VI Congresso Nacional de Filosofia (Milão, 28-30 de março de 1926), suspenso pelas autoridades, significou uma manifestação pública de antifascismo. Depois dele, Gentile ironiza a nova orientação “liberal” de Renzi.

12. Aqui, como em muitas notas subseqüentes, Gramsci alude ao específico conceito de “religião” de Benedetto Croce, que — no parágrafo “Croce e a religião” (cf., infra, caderno 10, I, § 5) — ele resume do seguinte modo: “Para Croce, a religião é uma concepção da realidade com uma moral conforme a essa concepção, apresentada em forma mitológica. Portanto, é religião toda filosofia, ou seja, toda concepção do mundo na medida em que se tornou ‘fé’, isto é, em que é considerada não como atividade teórica [...], mas sim como estímulo à ação”.

13. Como em outras passagens dos Cadernos, Gramsci usa aqui positivamente o termo “totalitário”. Dado o sentido negativo que essa expressão assumiu posteriormente, é importante ressaltar que, para ele, “totalitário” significa apenas algo unitário e que tem dimensão universal.

14. Trata-se do artigo de Dimitri Petrovitch Sviatopolski-Mirski, “Bourgeois History and Historical Materialism”, in The Labour Monthly, julho de 1931.

15. A revista Nuovi Studi di Diritto, Economia e Politica, em vários números entre 1931 e 1932, publicou a primeira edição em italiano do conhecido ensaio de Max Weber. O livro de Bernard Groethuysen, citado a seguir, chama-se Origines de l’esprit bourgeois en France, I: L’Église et la bourgeoisie, Paris, 1927.

16. Por causa de sua enfática defesa da Revolução Russa de 1917, Gramsci foi acusado pelos reformistas -- em particular por Claudio Treves -- de ser “bergsoniano” e “voluntarista”. Ele se defendeu dessas acusações num famoso artigo, intitulado “O nosso Marx”, publicado em Il Grido del Popolo de 4 de maio de 1918. Em seguida, o texto menciona episódios menos claros. Enrico Presutti, depois do assassinato de Mateotti em 1924, participa com Gramsci do parlamento “aventiniano”. Mas não se conhece o teor do diálogo entre eles. Quanto ao líder socialista G. M. Serrati, ele polemiza publicamente, no Avanti!, com Gramsci e o grupo de L’Ordine Nuovo, mas não foi possível encontrar em tal polêmica a comparação entre Gramsci e Giuseppe Giulietti, líder sindical dos trabalhadores marítimos.

17. Na Câmara dos Deputados, em 30 de março de 1920, Treves pronuncia o chamado “discurso da expiação”, criticado imediatamente por Gramsci como “manifestação do pensamento oportunista”. Treves dizia aos deputados liberais: “A crise consiste justamente nisso: os senhores não mais podem nos impor sua ordem e nós ainda não podemos impor-lhes a nossa”. A desordem do pós-guerra e a impossibilidade de resolvê-la, num ou noutro sentido, eram precisamente a expiação do crime cometido: a aventura bélica. Na prática, como acentua Gramsci, Treves indicava a inviabilidade de uma solução socialista.

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Antonio Gramsci, Cadernos do Cárcere, v 1. pp. 93-114. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2006..