Professor da Universidade de Nova York alerta para ‘uso sub-reptício do poder’ por líderes populistas para driblar instituições democráticas e diz que modelo redistributivo da social-democracia pode ter chegado ao limite
- André Duchiade | O Globo
Em “Crises da democracia”, lançado neste ano pela Companhia das Letras, o cientista político Adam Przeworski faz uma advertência sobre o recente filão editorial sobre ameaças antidemocráticas: “Não devemos acreditar na enxurrada de escritos que têm todas as respostas”. Nascido na Polônia e atualmente professor da Universidade de Nova York, Przeworski entende que a crise é profunda e de difícil solução. Em sua própria análise, ele chama a atenção para aspectos econômicos, sociais e culturais que permitiram a ascensão de líderes extremistas, e afirma que instituições democráticas como a separação entre poderes são insuficientes para contê-los. Na entrevista com O GLOBO, ele discute as eleições americanas, Trump, Biden, a política pós-pandemia e se o chamado populismo veio para ficar.
• No começo de seu livro, o senhor observa que a maioria dos cientistas políticos americanos não previu a vitória de Donald Trump, e que seus colegas no Brasil não anteciparam a de Jair Bolsonaro. Desta vez, é possível prever algo para a eleição americana de novembro?
Todas as pesquisas mostram que Joe Biden tem vantagem. Sabemos também que Trump já está questionando a legitimidade da eleição, o que sugere que ele não está disposto a aceitar derrota. Ele já prepara o terreno para questionar o resultado nos tribunais, e a grande questão é o que pode vir a fazer. Se perder no Colégio Eleitoral por uma grande margem, não haverá muitas opções, mas, se a diferença for só de dois ou três estados, acho garantido que irá à Justiça. A situação constitucional não é muito clara em casos de resultados contestados. E temo que esse impasse possa irradiar-se para as ruas.
• As leis federais americanas são preparadas para lidar com resultados contestados?
Não. As eleições neste país são geridas não pelo governo federal, mas por estados, ou, em alguns estados do Sul, até no nível subestadual e municipal. Então ele pode perder no voto popular em um estado, e, a princípio, a legislatura pode decidir enviar delegados que o apoiem. Não há dispositivo constitucional a impedir isso. Portanto, se ele perder em três Estados, controlados por legislaturas republicanas, ele pode tentar desfazer esses resultados. Em 2000, não era muito claro quem deveria realmente decidir o resultado final das eleições. A Suprema Corte tomou para si a decisão, mas é possível que a decisão vá para o Congresso.
• Em seu livro, o senhor diz que as democracias funcionam quando algo está em jogo nas eleições, mas quando não há coisas demais em jogo. O que está em jogo em novembro?
O que está em jogo desta vez é algo enorme, por causa das políticas deste governo, que promovem um afastamento radical de todos os anteriores, incluindo o de George W. Bush, que se voltou contra Trump. Escolha qualquer área da política, e haverá uma grande mudança. Isto acontece no meio ambiente, na distribuição de renda, em nosso sistema de saúde, na imigração, na posição americana no mundo. São sempre mudanças radicais. Se os democratas vencerem, eles reverterão algumas destas medidas, mas não todas. E os apoiadores de Trump são muito ardorosos. Estão verdadeiramente arrebatados.
• Se ele perder, voltaremos a algo que costumávamos considerar a normalidade da política, ou este é o novo normal?
Tendo a estar muito cético, senão pessimista. Como você se lembra, a conclusão do livro é de que a divisão na sociedade realmente tenha passado a permear todos os tipos de níveis e instituições, em diferenças extraordinariamente profundas. Portanto, sou cético quanto à possibilidade de os resultados da eleição produzirem unidade. Acho que as divisões e os conflitos vão continuar. Quanto ao Partido Republicano, Trump o controla de forma muito eficaz, mas trata-se de um grupo muito heterogêneo, que pode se virar para diferentes direções. Mas, de qualquer forma, as divisões e a animosidade na sociedade vão permanecer. Isso é o que me preocupa nos Estados Unidos, na Polônia e, também, no Brasil