O início
No ponto onde o mar se extingue
e as areias se levantam
cavaram seus alicerces
na surda sombra da terra
e levantaram seus muros
do frio sono das pedras.
Depois armaram seus flancos:
trinta bandeiras azuis
plantadas no litoral.
Hoje, serena, flutua,
metade roubada ao mar,
metade à imaginação,
pois é do sonho dos homens
que uma cidade se inventa.
O navegador holandês
Outrora o tempo era intacto
em seus braços prolongados
e às suas línguas de areia,
virgens de pés e barcaças,
virgens de olhos e lunetas
(até de imaginação)
chegou, tranquilo e exato,
o argonauta do improviso,
trazendo o sol na cabeça
e o mar do fundo dos olhos,
um gosto de azul na boca
sob a audácia dos bigodes
flamengos e retorcidos.
Mas, depois de algumas bulhas
com o português cristão
e alguns segredos de amor
com as donzelas de então,
escorraçado voltou,
deixando-nos essas coisas
que a sua presença atestam:
algumas mulheres prenhas
destes Wanderleys que restam.
Esse tempo, há muito gasto,
resiste apenas, agora,
em feriados de escola
e em frias e sonolentas
ordens do dia, em quartéis
onde fofos capitães,
esverdeados por fora,
ganham a vida e as estrelas,
o dia, o mês e o ano
à custa do amarelinho
e alegre ‘porque me ufano’.
Manoel, João e Joaquim
Desse tempo, é o que resta
para um discreto dizer,
pois quem cantou esse tempo
já não é do meu saber.
Hoje a cidade possui
os seus cantores que podem
ser resumidos assim:
Manoel, João e Joaquim.
No jardim Treze de Maio,
Manoel vai ficar plantado,
para sempre e mais um dia,
sereno, bustificado,
pois quem da terra se ausenta
deve assim ser castigado.
Dali não poderá ver
a casa do seu avô
e nem a rua da Aurora,
nem o que o tempo acabou,
nem o mar nem a sereia
e nem boi morto na cheia
desse rio escuro e triste,
de lama podre no fundo
e baronesas na face,
que vem, modorra e preguiça,
parando pelas campinas
e escorregando nos montes,
até este sítio claro,
onde cobriram seu leito
de pedra, ferro e cimento
organizados em pontes.
Desde a Velha, carcomida,
paisagem para detentos,
que é por onde sempre passa
esse povo marginal,
escuro e anfíbio que habita
o cais dito do Areal,
até à ponte mais nova
que tem o nome mais velho:
a ponte de Duarte Coelho.
Mas tudo o que for do rio,
água, lama, caranguejos,
os peixes e as baronesas
e qualquer embarcação,
está sempre e a todo instante
lembrando o poeta João
que leva o rio consigo
como um cego leva um cão.
Mas vieram de longe as águas
que aqui no Recife estão,
já começaram areia e pedra
lá bem perto do sertão
e é por isso, talvez,
que escuras e tristes são.
Porém não foi só tristeza
sua peregrinação,
em seu trajeto tiveram
a farta satisfação
de dar de beber a secos
homens, cavalos e bois
e em seu incerto caminho
ainda viram depois
os sítios cheios de sombra,
onde dorme o sonho espesso
do poeta Joaquim que foi
fazer uma estação de águas
nos olhos do seu amor
e trouxe nos seus, acesos,
os cajueiros em flor.
A Praia
Mas não é só junto ao rio
que o Recife está plantado,
hoje a cidade se estende
por sítios nunca pensados,
dos subúrbios coloridos
aos horizontes molhados.
Horizontes onde habitam
homens de pouco falar,
noturnos como convém
à fúria grave do mar.
Que comem fel de crustáceos
e que vivem do precário
desequilíbrio dos peixes.
Nesse lugar, as mulheres
cultivam brancos silêncios
e nas ausências mais longas,
pousam os olhos no chão,
saem do fundo da noite,
tiram a angústia do bolso
e a contemplam na mão.
Só os velhos adormecem,
lembrando o tempo que foi,
vazios como o vazio
e fácil sono de um boi.
Subúrbios
Nos subúrbios coloridos
em que a cidade se estende,
em seus longos arredores,
onde, a cada instante nasce
uma rosa de papel,
caminham as tecelãs.
Restos de amor nos cabelos
que ocultam por ocultar,
levam a noite no ventre
e a madrugada no olhar
e em esqueletos da sombra,
onde a luz chega filtrada,
as tecelãs vão parar.
Adeus lembrança de amores,
adeus leve caminhar.
Agora resta somente
um desencanto sereno:
o gerente e as botinas,
magoando o silêncio pleno.
Mas, nos domingos mais claros,
as tecelãs se transformam
em puras rosas de sal
e oferecem os seus braços
à curva do litoral.
Nem se lembram mais do mangue,
podre, virgem, vegetal,
onde os homens são sem sonhos,
como qualquer mineral.
A Lua
Mas, enquanto tudo é fome,
por todo o reino animal,
existe ainda fartura
na "terceira capital",
pois os que forem passear
no cais da rua Aurora,
em certa noite do mês,
poderão sair dizendo,
todos juntos, de uma vez:
Era uma lua tão grande,
de tão vermelha amplidão
que mesmo Ascenso Ferreira,
comendo só a metade,
morria de indigestão.
Igrejas
Não é que somente em luas,
o Recife farto seja;
é farto, também de igrejas.
Tem a de São Francisco,
na rua do Imperador,
com rezas pra Santo Antônio
e promessas por amor;
tem a Igreja de São Pedro,
no pátio do mesmo nome
que se fosse gente, há muito
tinha morrido de fome,
mas, como é, firme, resiste,
sozinha, em seu abandono
e em seu destino bem triste
de igreja quase sem dono.
E como se fosse pouco
seu exílio obrigatório,
ainda está condenada
a ver o bar de Gregório,
onde os nossos literatos,
criados a uva e maçãs,
levam os amigos de fora
pra comer sarapatel,
depois transformado em obra
com tinta escura e papel.
Mas não é só; o Recife
ainda tem muitas igrejas
lavando os pecados seus.
Tem lá perto do mar,
plantada em meio do mal,
a sua concatedral
chamada Madre de Deus,
que é onde essas menininhas
de Maria Madalena
vão à missa e à novena.
O bairro do Recife
Ali é que é o Recife
mais propriamente chamado,
com seu pecado diurno
e o seu noturno pecado,
mas tudo muito tranquilo,
sereno e equilibrado.
No andar térreo, moram os bancos
(capitais da Capital)
no primeiro, a ex-austera
Associação Comercial,
no segundo, a sempre fútil
Câmara Municipal
e, no terceiro, afinal,
está a alegre pensão
da redonda Alzira, a viga
mestra da prostituição.
Mas como vivem tão bem,
em tão segura união,
qualquer dia, todos juntos,
vão fundar a Associação
dos Múltiplos Pecadores,
com banqueiros, comerciantes,
prostitutas, vereadores,
ingleses do British Club,
homens doentes e sãos,
pois o camelô já disse
que somos todos irmãos.
Esse é o bairro do Recife
que tem um cais debruçado
nas verdes águas do Atlântico
e ainda tem o cais do Apolo,
apodrecido e romântico,
beleza que ainda resiste
lá nos desvãos da memória
desse bairro que se escoa
pela Ponte Giratória,
que é uma estranha armação
que aguenta em seu férreo dorso
automóvel, caminhão
e trem de carga bem cheio,
mas não resiste às barcaças
que a fendem do meio a meio.
São José
É por ela que se chega
ao bairro de São José,
de ruas de casas juntas,
cariadas, mas de pé.
De classe média arruinada,
mas de gravata e até
missa ao domingo, pois sempre
é bom ter alguma fé.
Bairro português que outrora
foi de viver e poupar,
nascer, crescer e casar
naquela igreja chamada
São José de Ribamar.
Chope
Na avenida Guararapes,
o Recife vai marchando.
O bairro de Santo Antônio,
tanto se foi transformando
que, agora, às cinco da tarde
mais se assemelha a um festim.
Nas mesas do Bar Savoy,
o refrão tem sido assim:
são trinta copos de chope,
são trinta homens sentados,
trezentos desejos presos,
trinta mil sonhos frustrados.
Ah, mas se a gente pudesse
fazer o que tem vontade:
espiar o banho de uma,
a outra, amar pela metade
e daquela que é mais linda
quebrar a rija vaidade.
Mas como a gente não pode
fazer o que tem vontade,
o jeito é mudar a vida
num diabólico festim.
Por isto no Bar Savoy,
o refrão é sempre assim:
são trinta copos de chope,
são trinta homens sentados,
trezentos desejos presos,
trinta mil sonhos frustrados.
Oradores
Este ponto verde aqui,
feito de folhas e flores,
é o Jardim Treze de Maio,
onde os nossos oradores
vão um ao outro contar
como foi que conseguiram
a vida inteira passar
nas trevas da ignorância
sem nunca desconfiar.
Pois, cada qual sente um gênio
dentro de si borbulhar
e, coitadinhos, nem sabem,
que o que borbulha é a ameba
que não puderam tratar.
Secos e molhados
Ainda existe muita coisa
de bom e ruim pra contar,
mas como sou conhecido
por discreto no falar,
irei, agora, evitar.
Mas não sem antes passar
pelos armazéns de estiva,
mar dos nossos tubarões,
de brasileiros sabidos
e portugueses sabidões
que na vida leram menos
que o olho cego de Camões,
mas que em patacas possuem
muito mais que Ali Babá
e os seus quarenta ladrões.
É por isto que aos domingos,
cada qual na sua Igreja,
reza, assim, as orações:
Naquele mastro real,
vê se descobres um meio
de aumentar meu capital.
Vendendo carne de charque,
importando bacalhau,
dizendo que prata é ouro
e latão é bom metal.
É assim que vivemos desde
Pedro Álvares Cabral.
Pois o Papa já nos pôs,
no Trato das Tordesilhas,
além do bem e do mal.
O fim
Recife, cruel cidade,
águia sangrenta, leão.
Ingrata para os da terra,
boa para os que não são.
Amiga dos que a maltratam,
inimiga dos que não
este é o teu retrato feito
com tintas do teu verão
e desmaiadas lembranças
do tempo em que também eras
noiva da revolução