*Karl Marx (1818-1883), “Manifesto Comunista”, Fevereiro, 1848. Boitempo Editorial, p.69. São Paulo, 2005.
Política e cultura, segundo uma opção democrática, constitucionalista, reformista, plural.
domingo, 17 de abril de 2022
Opinião do dia - Karl Marx*: herança democrática
Luiz Sérgio Henriques*: A globalização continua
O Estado de S. Paulo
Do ponto de vista estritamente político, é bem
menos perceptível a diminuição da interdependência entre povos e nações.
Vozes econômicas influentes informam que a
globalização, tal como a conhecemos desde o fim do bloco soviético, tem os dias
contados. O colapso financeiro de 2008, a pandemia e, por último, a invasão da
Ucrânia teriam fraturado a articulação dos mercados e causado a crise da
segunda grande onda globalizante, assim como a Guerra de 1914 teria encerrado a
primeira. A discussão econômica está em aberto, naturalmente, ainda que, do
ponto de vista estritamente político, seja bem menos perceptível a diminuição
da interdependência entre povos e nações.
Na política, tudo continua a se relacionar tanto quanto antes – ou talvez mais. O fracasso eleitoral da oposição unificada na Hungria, caso paradigmático de “democracia iliberal”, reverbera como advertência para nós, tão distantes daquele singularíssimo país. As eleições francesas colocam novamente em confronto, repetindo o cenário de 2017, o centro liberal-democrático de Macron e a extrema-direita de Le Pen. E nem é bom imaginar o efeito de eventual mudança de rumos na política francesa, que corroeria a unificação europeia e sinalizaria o revigoramento da “Internacional de nacionalismos”, um dos muitos oxímoros que nos atormentam nestes tempos confusos.
Paulo Fábio Dantas Neto*: O fato Simone, entre dois realismos
Se o assunto é a próxima eleição
presidencial, são evidentes algumas aplicações práticas dessas afirmações
gerais, quando as relacionamos ao cenário visto neste momento eleitoral, cada
vez menos “pre”, que se vive no Brasil. O fato razoavelmente demonstrado é que
são muito pequenas as chances de se firmar candidatura competitiva alternativa
ao embate entre Bolsonaro e Lula. Esse é o principal fato, Sua Excelência, com
a qual análises realistas não podem brigar. É ele também o fato auspicioso que
políticas realistas dos dois polos do embate factual devem celebrar, conservar
e cultivar, com zelo reverencial, como têm feito os realismos simetricamente
opostos de Lula e Bolsonaro. E é ele o fato que uma política realista
adversária desses dois atuais polos, se não pode ignorar, também não pode
tratar como uma excelência. Se assim o fizer, deixará de ser política realista
por renunciar à política. Partidos vocacionados para a mediação e não para a
intensificação de conflitos ocupam um dado lugar no espaço político, seja ele
nomeado de centro democrático ou atenda a outra denominação que esses atores
adotem ou que recebam de analistas ou adversários. Eles podem, claro, dar uso
mais ou menos eficaz a esse espaço. Mas o realismo político, nesse caso, manda
que se agreguem num campo político e tratem o fato, já demonstrado, da
polarização que os exclui como uma excrescência a remover.
Creio não ser preciso detalhar aqui a excrescência apontada pelo metro do centro político. Do ponto de vista de quem nele se situa, ou de quem o valoriza, os riscos que a democracia brasileira corre hoje são excessivos, antes de mais nada, por serem desnecessários, pois existe uma preferência majoritária pela democracia, nas elites políticas e também no eleitorado. Porém, como largamente sabido, nesse último a preferência democrática é pouco intensa, instável, podendo tornar-se fluida por antigas e várias razões. No centro do problema (ou no problema do centro) estão desigualdades que levam outros temas a se mostrarem emergenciais para amplas parcelas do eleitorado, negando ao da democracia política e suas instituições a prioridade desejada pela camada democraticamente politizada desse mesmo eleitorado. Por outro lado, no plano das elites políticas e seus vários partidos, a competição eleitoral em cenário de desigualdades críticas atua no sentido de rebaixar ali também a intensidade da preferência democrática de modo a ajustar sua postura à do eleitorado que pretende representar.
Luiz Carlos Azedo: Autoritarismo e corrupção são naturalizados no pleito
Correio Braziliense / Estado de Minas
Falta uma candidatura robusta que possa cumprir
o papel de pautar o futuro no debate eleitoral e oferecer uma alternativa nova
para o país
Por suas convicções, declarações e
atitudes, o presidente Jair Bolsonaro (PL) é considerado pela oposição uma
ameaça à democracia no Brasil. Sua visão de mundo, a compreensão sobre o papel
do Estado na vida nacional, seus métodos de atuação, tudo corrobora o seu
perfil político autoritário. Em decorrência disso, e da postura negacionista e
da falta de empatia com as vítimas da pandemia de covid-19, disseminou-se uma
grande rejeição na opinião pública à sua reeleição, que se reflete nas
pesquisas.
Em contrapartida, o ex-presidente Luiz
Inácio Lula da Silva (PT) aparecia como franco favorito nas pesquisas
eleitorais, gerando grande expectativa de poder, uma vez que já não estava
preso e suas condenações foram anuladas pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Diante de um cenário de 660 mil mortos, 11 milhões de desempregados, alta da
inflação e estagnação econômica, a volta de Lula ao poder parecia apenas uma
questão de tempo e não, como seria necessário ser, de uma estratégia
bem-sucedida para consolidar o isolamento de Bolsonaro.
O presidente parecia fadado a ser enxotado do poder pelo eleitor. Com fim da pandemia, a situação mudou completamente. A principal preocupação da população já não é com a saúde. Passou a ser com a economia, cujos problemas relatados acima estão sendo mitigados pelo governo. O programa de transferência de renda Auxílio Brasil substituiu o Bolsa Família, uma herança do governo Lula. Outras medidas estão sendo adotadas, como mudanças na tabela do imposto de renda, subsídios para o gás de cozinha, adiantamento de 13º salário, liberação do fundo de garantia etc.
Cristovam Buarque*: Reforma ou revogação
Blog do Noblat / Metrópoles
Os partidos que apoiam Lula caem no
negacionismo ao exigirem que ele, se eleito, revogue a reforma trabalhista
Há três anos somos governados por um
negacionista, cuja cabeça é orientada por crenças do passado. Este espírito
revogatório da realidade exige a unidade dos democratas para obterem os votos
necessários e impedir sua reeleição. Tudo indica que o caminho para isto é o
voto em Lula.
Mas faltando cinco meses para a eleição, muitos eleitores começam a temer que Lula traga também um espírito negacionista, tentando revogar a realidade, com base em crenças diferentes do Bolsonaro, mesmo assim crenças baseadas em ideologias que negam a realidade onde funciona a economia contemporânea de qualquer país. A visão de líderes próximos a Lula assustam aos que não querem mais governos negacionistas, assustam ainda mais ao perceber-se o risco de que por isto ele perca votos e milhões de antibolsonaristas optem pelo voto nulo, em consequência reelegendo Bolsonaro.
Merval Pereira: Os políticos se protegem
O Globo
O cientista social Fábio Kerche, professor
da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), publica no novo
número da revista Insight Inteligência um interessante artigo analisando as
semelhanças entre o sistema de justiça brasileiro e o dos Estados Unidos que
levam ao incentivo de um procurador-geral da República mais condescendente,
como temos hoje Augusto Aras, e processo semelhante que aconteceu nos
Estados Unidos com relação ao promotor responsável por acusar o presidente de
lá.
Em ambos os casos, ressalvando as profundas diferenças entre os modelos,
Fabio Kerche constata que os políticos, da situação e da oposição,
apoiaram que o promotor encarregado de processar os presidentes tivesse menos autonomia
do que em outros momentos da história recente desses países. “Altas doses de
autonomia parecem ser um risco que os políticos nem sempre estão
dispostos a apostar”, ressalta.
Elio Gaspari: A terceira via é um deserto de ideias
O Globo / Folha de S. Paulo
O pessoal que busca o candidato que evitará
a polarização Bolsonaro x Lula pratica um jogo de cubos que até agora rendeu
noticiário, e só
Quatro partidos buscam um candidato de consenso
para marcharem unidos na eleição presidencial. Parece piada. Consenso em
relação a quê? O PSDB fez uma prévia vencida pelo governador João Doria. O MDB
tem uma candidata na rua e boa parte de sua caciquia na sala dos jantares de
Lula. O União Brasil (ex-DEM, ex-PFL. Ex-PDS e ex-Arena) tem no doutor Luciano
Bivar um candidato de fantasia.
Doria ganhou a prévia, mas Eduardo Leite
não saiu do páreo. Simone Tebet sabe, desde o primeiro momento, que suas
dificuldades estão numa caciquia que não pretende descolar de Lula. Cada um dos
candidatos da terceira via não tem consenso a começar no próprio partido.
Isso não se deve à falta de conversas. É
por falta de ideias que seus candidatos não conseguem chegar ao segundo dígito.
O país parece estar saindo de uma pandemia que matou mais de 600 mil pessoas,
na qual milhões foram salvas pelo SUS. Os planos de saúde ameaçam com um
aumento histórico. No início da pandemia, recusaram-se a cobrir os custos de
testes. Alguém ouviu uma palavra dos candidatos da terceira via sobre a saúde
pública? Inflação? Desemprego?
O pessoal que busca o candidato que evitará
a polarização Bolsonaro x Lula pratica um jogo de cubos que até agora rendeu
noticiário, e só. Isso está estatisticamente demonstrado pelas pesquisas. Não
falam para o andar de baixo, e quem vive nele não mostra interesse pelas suas
ilustres figuras. Lula e Bolsonaro têm penetração no andar de baixo, cada um à
sua maneira, e por isso a eleição está polarizada.
Até meados de maio a turma da terceira via e do consenso buscará um sabor comum a dois punhados de areia, um pedaço de melancia e meio bife. Podem até se unir em torno de um candidato que cresça, mas dificilmente irão juntos até a eleição.
Bernardo Mello Franco: O vermelho e o azul
O Globo
O diretório nacional do PT aprovou com
folga a escolha de Geraldo Alckmin como vice de Lula. A votação desta quarta
removeu a última pendência para a união entre os antigos adversários. Falta
definir como o ex-tucano vai influir na campanha e no programa de governo.
O petista quer apresentar a chapa como uma
frente ampla contra o bolsonarismo. “Não sou só o candidato do PT. Quero ser o
candidato de um movimento de recuperação da democracia”, afirmou, em fevereiro.
O problema é que uma frente ampla exige
mais que um vice conservador. Lula precisa atrair setores que se desiludiram
com Jair Bolsonaro e não acreditam na tal terceira via, mas ainda torcem o
nariz para a ideia de votar no PT.
“O campo vermelho da sociedade já está com
Lula. Agora temos que abrir conversas com o campo azul”, defende o líder da
oposição no Senado, Randolfe Rodrigues.
Convidado a integrar a coordenação da campanha petista, o senador da Rede prega o diálogo com grupos que aderiram ao capitão em 2018. “Alckmin é um símbolo importante, mas não fará a frente ampla sozinho. Temos que furar as bolhas do agronegócio, dos evangélicos, dos empresários. Se não tirarmos votos do Bolsonaro, vamos perder a eleição”, alerta.
Rogerio Studart*: Políticas de austeridade ameaçam a democracia
O Globo
Usar os juros contra surtos inflacionários
é um remédio socialmente amargo. Mas, como os mais pobres não têm como se
proteger da corrosão da inflação, o resultado pode ser positivo socialmente se
o remédio for eficaz e rápido, se a desigualdade for baixa e se existir um
sistema de proteção social. Não é o caso no mundo, muito menos no Brasil.
Primeiro, surto inflacionário é
principalmente fruto de choques de oferta. Portanto o remédio pode exigir uma
profunda retração de demanda, da produção e do emprego. Segundo, nas últimas
três décadas, mesmo nos países ricos, os mecanismos de proteção social foram
dilapidados, e a iniquidade aumentou de forma assustadora. O quadro hoje é
dramático: segundo a Oxfam, os dez homens mais ricos do mundo têm hoje seis vezes
mais riqueza do que os 3,1 bilhões mais pobres. Enquanto isso, nos Estados
Unidos, a maior economia do mundo, mais de 60% da população não pode pagar suas
contas se não receber um mês de salário.
No Brasil, a situação é ainda mais grave. De acordo com o Relatório Global de Desigualdade, 10% dos mais ricos detêm 80% da riqueza total, 1% detém quase 50% (!), e 50% da população possui mero 1%. Vinte milhões passam fome diariamente. Pouquíssimos podemos poupar, e parte significativa das poupanças vai para a dívida pública. Como demonstra o próprio Tesouro Nacional no seu Relatório Mensal da Dívida Federal, cerca de 30% são propriedade de instituições financeiras, e quase 60% são intermediadas por elas. Não por outra razão, os bancos tiveram, como indicado em notícia recente, lucros recordes (R$ 81,6 bilhões) em 2021.
Míriam Leitão: Áudios do STM provam tortura na ditadura
O Globo
Superior Tribunal Militar, dia 24 de junho
de 1977, o general Rodrigo Octávio Jordão Ramos fala. “Fato mais grave suscita
exame, quando alguns réus trazem aos autos acusações referentes a tortura e
sevícias das mais requintadas, inclusive provocando que uma das acusadas, Nádia
Lúcia do Nascimento, abortasse após sofrer castigos físicos no Codi-DOI.” Conta
que o aborto foi provocado por “choques elétricos no aparelho genital”. Em
seguida lê o que disse Nádia. “Deseja ainda esclarecer que estava grávida de
três meses, ao ser presa, tinha receio de perder o filho, o que veio a
acontecer no dia 7 de abril de 1974”.
As vozes desse tempo sombrio foram
resgatadas pelo historiador Carlos Fico, titular de História do Brasil da UFRJ.
— O Superior Tribunal Militar passou a gravar as sessões a partir de 1975, mesmo as secretas. Até 1985 são 10 mil horas. Em 2006, o advogado Fernando Augusto Fernandes pediu acesso. Não conseguiu. Foi ao Supremo, que mandou liberar. O STM não obedeceu. Em 2011, a ministra Cármen Lúcia determinou o acesso irrestrito aos autos. O plenário acompanhou a ministra. Em 2015, as centenas de fitas de rolo foram digitalizadas. Fernandes analisou apenas 54 sessões. Em 2017 consegui copiar a totalidade das sessões. Aprimorei o áudio e passei a ouvir — explica o professor.
Eliane Cantanhêde: O “inimputável”
O Estado de S. Paulo
Os escândalos do MEC estão na ‘alma’, mas
também no ‘coração’ do governo
Ao premiar Ciro Nogueira com a Casa Civil, o
presidente Jair Bolsonaro admitiu que estava
entregando “a alma do governo” ao Centrão, o que poderia ser confundido,
maldosamente, com “vender a alma ao diabo”. Assim como o “gabinete paralelo” do
Ministério da Saúde operava dentro do Planalto para compra de vacinas, o
“gabinete oculto” do FNDE e o “do culto” do MEC estão na “alma do governo”.
A bem da verdade, os dois escândalos estão na alma, mas também no coração do governo: na Casa Civil e no gabinete do presidente. O Planalto abriu as portas 35 vezes para os pastores que participavam de reuniões, desfilavam em aviões da FAB, achacavam prefeitos e, conforme o ex-ministro Milton Ribeiro à PF, foi Bolsonaro quem pôs
Vinicius Torres Freire: Se organizar direitinho, todo o mundo rouba
Folha de S. Paulo
Faz dois anos, presidente da rachadinha
rachou o governo com o centrão
Sinais ostensivos de roubança no governo
não prejudicaram a popularidade
de Jair Bolsonaro. Nem o repique da inflação, nem
o aumento dos combustíveis.
Há indícios de que seu prestígio subiu um par de pontos.
A avaliação de Bolsonaro não está muito
abaixo do que era nos tempos menos anormais de seu governo. No ano anterior ao
início da epidemia, até fevereiro de 2020, 34% do eleitorado lhe dava nota
"ótimo/bom", em média. No início deste abril, 29% (dados da pesquisa
Ipespe, de maior frequência).
Sim, Bolsonaro leva nota "ruim/péssimo"
de 54% desde agosto de 2021. Mas o assunto aqui é resistência eleitoral e
política. Neste abril, faz dois anos que Bolsonaro organizou a sua sobrevida.
Na primavera da epidemia de 2020, o
desprestígio de Bolsonaro crescia rápido por causa de sua indiferença à morte.
Perdia feio no Congresso. Temia o impeachment e a prisão de filhos.
Foi um abril de reviravolta e ataques em várias frentes. No início do mês, aconselhado por seus generais, Bolsonaro chamou o centrão. No dia 16, demitiu Luiz Mandetta, o popular ministro da Saúde. No dia 19, foi ao comício diante do Quartel-General do Exército, no qual se pedia golpe militar contra Congresso e Supremo. No dia 24, Sergio Moro caiu.
Hélio Schwartsman: Autores veem extrema direita como alternativa a liberalismo
Folha de S. Paulo
Para eles, o liberalismo destrói a
identidade etnocultural dos grupos
Hoje recomendo um livro de terror: "A World After Liberalism", de Matthew Rose. É brincadeira, mas é
sério. É brincadeira porque "A World..." não se encaixa bem no gênero
terror se o pensarmos como a categoria literária a que pertencem
"Frankenstein", "O Médico e o Monstro" e
"Drácula". "A World..." não é uma peça de ficção, e sim uma
coleção de pequenos ensaios que ficam entre o jornalístico e o sociológico. Mas
é sério porque o livro de Rose, até mais do que os clássicos citados, mete
medo.
Rose mostra que, por trás das sandices e dos impropérios lançados por militantes em redes sociais, existe um pensamento de extrema direita mais consistente e mais profundo. Ele perfila cinco autores que foram responsáveis por lançar algumas dessas ideias: Oswald Spengler, Julius Evola, Francis Parker Yockey, Alain Benoist e Samuel Francis. Confesso que conhecia minimamente Spengler, já tinha ouvido falar em Evola e ignorava os outros três.
Janio de Freitas: A oportunidade dos saudosistas
Folha de S. Paulo
Incógnita é até onde irá apego ao ideário
da ditadura e ao poder de impô-lo em caso de derrota eleitoral do presidente
Nenhuma instituição mostra maiores perdas,
na confrontação dos conceitos públicos mais aparentes, do que as Forças
Armadas atingidas pelas características do mandato
de Bolsonaro.
O Judiciário, com seus momentos de alta e
de baixa, a Câmara nos níveis mais deploráveis, o Senado, os partidos e a
política em geral reproduzem, neste período singular, as suas imagens
anteriores. Graças ao SUS, o serviço público viveu a experiência de aplaudido,
com exceção das polícias.
As Forças Armadas, e o Exército em particular,
têm situação sem precedente há mais de um século, desde os tempos de Floriano e
de Hermes da Fonseca.
É eloquente, cheio de significados, o
rompimento da cautela nas referências aos militares, criada pelas represálias
de violência vigentes por muito tempo.
Cartunistas, humoristas, boa parte dos e
sobretudo das comentaristas profissionais, cartas de leitores e, claro, as
redes de internet praticam, uns, a franqueza de crítica, outros a libertação do
sarcasmo e do deboche.
Militares mais antigos, crias e guardiães da ditadura como realidade e como memória, viram na candidatura de Bolsonaro, com as circunstâncias produzidas pelos agentes da Lava Jato, a oportunidade ideal: impor as visões da ditadura sem a ditadura, tornada difícil e talvez insustentável.
Dorrit Harazim: Ovo e segredo
O Globo
Muito além de seu significado no calendário
cristão, a Páscoa tem um inigualável sabor de criança. Ela não só atiça ao
máximo a imperiosa curiosidade dos pequenos, como infla de impaciência a gulosa
imaginação própria àquela idade. Com ovos de Páscoa exibindo-se da quitanda à
megastore, o atropelo de dúvidas e desejos infantis costuma ser intenso. É pra
querer logo o maior de todos? Ou aquele menor e reluzente, na cor preferida?
Como adivinhar se ele é oco? Ou, no chacoalhar da sacudida, como saber qual a
surpresa que esconde? E esse outro que faz barulho maior?
Da criança bem-nascida àquela que jamais terá a ventura de segurar em mãos um chocolate para chamar de seu, imaginar que segredos escondem aquelas oferendas é parte da farra. De todo modo, é preciso paciência para abrir o caminho até chegar ao tesouro: soltar primeiro as fitas, depois o papel celofane, que está ali para proteger o papel laminado, que por sua vez protege a massa oval do chocolate. E é ela que preserva a surpresa final, o segredo mais bem guardado.
Cacá Diegues: As suçuaranas da cultura
O Globo
E ‘A Primeira Missa’ e o ‘Independência ou
morte’ vão seguir como exemplos de nosso respeito pela nação
A televisão revelou, a partir de um
dispositivo fotográfico montado estrategicamente dentro da mata litorânea do
Rio de Janeiro, a sobrevivência de suçuaranas, belas onças-pardas típicas da
região, dadas como em extinção há cerca de um século.
Saudemos portanto as suçuaranas, de volta
às aventuras selvagens em nossas matas. Podemos dizer que o Brasil renasce um
pouco pelas patas desses heroicos animais, representantes do que sempre tivemos
de mais belo, raro e nosso.
Aliás, sempre acabamos por nos iludir com o país e com o que ele tem de aparentemente mais louvável. Durante o Segundo Reinado, quando tivemos o período mais longo de nossa história com um só chefe da nação, Dom Pedro II resolveu incentivar o orgulho da população e relançar o Brasil no mundo, numa operação ao mesmo tempo política, turística e de autoafirmação.
Celso Lafer*: Lygia Fagundes Telles
O Estado de S. Paulo
Para seus amigos e confrades, como para os
seus leitores, é um consolo lembrar o que dizia Cícero no ‘De amicitia’.
A presença de Lygia tinha o sopro de uma
aura. Conjugava-se com sua beleza, que perdurou no correr dos muitos anos de
sua vida. O seu olhar tinha características próprias que transpareciam no
contato pessoal. Era um olhar pluriantenado de sensibilidade que agudizava a
sua percepção das coisas, das pessoas e do mundo. Traduziu-se numa obra
literária de primeira grandeza que, no romance e no conto, possui a limpidez
adequada a uma visão que penetra e revela, como observou Antonio Candido.
Filia-se no seu escrever à linhagem de Machado de Assis. Na sua obra, para
evocar Octavio Paz em Blanco,
na transcriação de Haroldo de Campos, “a irrealidade do que é visto / dá
realidade à visão”.
A recente publicação (2018) de um volume que reúne os seus contos vem acompanhada de um brilhante posfácio de Walnice Nogueira Galvão. Nele Walnice destaca que, na diversidade das estruturas e das matérias de seus contos, o fio condutor da limpidez de sua linguagem é a criatividade literária de uma imagem pregnante. Esta é “um concentrado ou condensado de sentido, uma síntese extremada de tudo o que o conto insinua”. A multiplicidade destas “imagens pregnantes” – o isqueiro, a cor verde, o colar de âmbar ou de pérolas, as mãos dadas, o espartilho, o vestido bordado –, como indica Walnice na análise dos seus contos, traz “consigo um senso de revelação, iluminando como um rastilho toda a narrativa”.
O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões
Editoriais
O fracasso das políticas de segurança
O Globo
Não é aceitável que mais da metade dos
moradores de uma cidade queiram mudar-se com medo da violência. É o que
acontece com 59% dos cariocas e 55% dos paulistanos, de acordo com pesquisa do
Datafolha. A melhor tradução da mensagem desses dados é que a maior parte da
população das duas maiores cidades do país não acredita que os administradores
públicos que elegeram sejam capazes de protegê-la.
Rio e São Paulo são vítimas do mesmo
populismo que permite a ocupação desordenada de áreas das cidades que se convertem
em santuários paralelos à margem da lei. No Rio, pela topografia local, as
favelas podem ser mais visíveis que em São Paulo. Um paulistano que não saia
dos bairros nobres das zonas Sul e Oeste pode passar a vida ao largo delas, mas
nas periferias persistem as mesmas mazelas: falta de saneamento, ausência de
agentes públicos, moradias improvisadas (com frequência em áreas de risco) e a
sensação de insegurança trazida pelas facções criminosas.
É certo que houve avanço no combate à criminalidade, mas a pandemia trouxe um recuo dramático. O aumento da pobreza, da fome e a multiplicação na quantidade de moradores de rua contribuem para ampliar a sensação de abandono e insegurança nas grandes cidades. As redes sociais funcionam como um amplificador de notícias sobre assaltos e assassinatos, frequentemente em bairros onde a situação parecia controlada há poucos anos.