O Globo
Volta do país da Idade Média para o
presente é uma boa notícia. Mas nenhum governo pode se contentar só em ‘não
ser’. Sem afirmação, cai
Um espírito ronda o governo Lula —
o espírito dos paradoxos. O fardo transforma-se em ativo. O campo fértil vira
brejo. A idiossincrasia petista robusteceu. Da experiência e moderação
esperadas, nasce um torvelinho de provocações. O que se desmancharia no ar — a
relação com autocracias mundiais — se solidifica. Sólido, o apoio dos Estados
Unidos e da Europa pode evaporar. A esperança acena à
precipitada decepção.
A nostalgia enganadora; arriscado é
regressar para onde se foi feliz. De 2003 a 2010, Lula e o Brasil viveram
tempos extraordinários. Vencida a eleição, o filho pródigo voltou à casa. Mas
nem ele nem o pai são os mesmos. Desapontamentos vêm a galope. Certo, é bobagem
desanimar: há mais de 1.300 dias pela frente. Mas não se pode negar o
surpreendente desperdício de oportunidades. O presidente cercou-se de
contradições.
A tragédia do legado de Jair Bolsonaro é do conhecimento de quem tem olhos de ver. A destruição de ontem exige, hoje, a rearticulação de políticas públicas. A fortuna tem ajudado Lula a transformar limões em limonada para o governo.
O Brasil saiu da truculência para a democracia;
da destruição ambiental à recomposição das relações internacionais. Da fila do
osso à assistência social, do desprezo aos direitos humanos à Justiça; da
desorganização dos orçamentos à concertação das finanças públicas. São
imperativos. Lula não é Bolsonaro, a alegada simetria revelou-se fake.
Mas essa herança maldita verdadeira tem servido para justificar e proteger. Nos cem dias de mandato, comemorou-se — com maior entusiasmo — o adeus a Bolsonaro. O Brasil retorna de uma viagem à Idade Média, onde esteve cercado de brutos. Sua volta ao presente é uma boa notícia. Mas nenhum governo pode se contentar apenas em “não ser”. Sem afirmação, cai.