Imediatamente, a decisão da sessão do STF do último dia 17 de dezembro virou a conjuntura política do Pais de ponta cabeça. O governo Dilma Rousseff, que sangrava na defensiva e parecia quase batido, assume, com esse oxigênio judicial, atitude ofensiva e agressiva na arena política, onde opera uma tentativa de dividir e pulverizar o PMDB, enquanto na economia retoma, ao menos parcialmente, o caminho da política econômica do primeiro mandato da Presidente. No rastro dessa dupla operação, permitida pela decisão política da Corte Suprema, afasta-se, por ora, possibilidades de um pacto político amplo, terreno em que poderia prosperar, ou não, o nome do Vice-Presidente da República como alternativa constitucional ao status quo governamental. Pintado para a guerra, o governo Rousseff, seguindo o roteiro do partido que o controla, vai ao tudo ou nada, assim como faz também a oposição fundamentalista que esse governo pediu a Deus. Se vingarão esses planos provavelmente só começaremos a saber lá por fevereiro ou março e nunca com certeza certa, ao menos enquanto estejam em curso a Lava Jato e o protagonismo político do Judiciário. Noves fora essa incerteza robusta, o embate faccioso durará três anos, até o próximo pleito presidencial. Ou poderá ir além dele. No momento próprio os sobreviventes, no estado, na economia e na sociedade, farão o balanço das sequelas dessa refrega (ou da sua suspensão judicial), saldo hoje impossível de adivinhar, face as altas nebulosidade e periculosidade do ambiente político.
Parece que um script “argentino” já foi posto em marcha pelo governo, ou ao menos pelo PT. Semelhanças com táticas do kichnerismo são eloquentes, o que não significa que haverá aqui o desfecho eleitoral que acaba de ocorrer no país vizinho. No caso brasileiro, o maior ou menor sucesso da empreitada governista dependerá, a meu ver de: 1. Recuperação relativa da economia, por medidas que, sem confrontar a ideia de ajuste, driblem o problema orçamentário e fiscal como numa “fuga para a frente”; 2. Manterem-se niveladas por baixo as expectativas da sociedade em relação à liderança parlamentar e as dos partidos, cuja baixa reputação provem delas mesmas e, também, em boa medida, da ação consciente da “articulação” política do Governo; 3. As oposições seguirem sem concertar um projeto comum para tirar o País da crise; 4. Ainda haver chance de o Governo, Congresso, partidos (a elite política, enfim), moderarem, mais adiante, o crescente ativismo político da toga, que, por ora, o Executivo usa a seu favor na sua guerra contra a Câmara dos Deputados e o PMDB. Suponho que, dessas quatro condições, a primeira e a última são as mais difíceis de atender.
Para dialogar analiticamente com tais evidências e suposições adotarei, nesse texto, o seguinte procedimento: primeiro tentarei oferecer uma interpretação sobre o transcurso do julgamento do STF, em si; em seguida discutirei seus efeitos imediatos e possíveis desdobramentos sobre a crise política, em especial sobre a discussão da possibilidade de impedimento da Presidente; por fim, esboçarei uma preocupação sobre as possíveis implicações de tudo isso, para além da atual conjuntura, na dinâmica das relações entre os Poderes da República, por conseguinte, na democracia.
Narrativa e interpretação de uma operação política
Todo protagonismo político tem preço. O que o STF já paga é o de passar a ser analisado como uma instituição também política e seus membros como atores que executam scripts também políticos. Um segundo preço é ser objeto de análise por lentes juridicamente leigas. É precisamente o caso da análise que se tenta aqui. Claro, não se trata de equiparar o STF ao Congresso, nem seus ministros a deputados, ou senadores, por mais que em algumas falas individuais e em alguns procedimentos coletivos analogias possam ser sugeridas. A legitimidade do Poder que aquele tribunal encima tem fundamento diverso do eleitoral e isso - a princípio e por princípio - faz a diferença maior, mesmo um leigo sabe disso. Mas ainda assim o STF é uma casa também política, logo de saída no sentido (peço vênia a visões em contrário não juridicamente leigas) de que não é possível lidar com questões constitucionais a partir de uma perspectiva estritamente “técnica”.
A ingenuidade analítica não é superada apenas pela admissão dessa quase óbvia realidade. É que, ao adentrar num dado ambiente, a política leva consigo não só suas dimensões normativa e argumentativa, mas também sua lógica operativa, pragmática por excelência. Em condições de normalidade essa lógica operativa mantém-se latente. Isso permite a um tribunal como o STF ater-se, do ponto de vista político, a considerações sobre doutrinas e à empiria constitucional e assim beneficiar-se de um tratamento, pelo senso comum, como instância “acima” da política. Mas num contexto de crise grave como a que vivenciamos no Brasil, a política é requisitada e mobilizada em todas as suas capacidades de operação pragmática para a solução de problemas. Nesses contextos, explicita-se todo o implícito, a empiria política é chã, está aquém da letra da Carta mas pode sugerir soluções para além dela e de qualquer doutrina. E se nas instâncias mais próprias ao processamento dessas urgências (os poderes Legislativo e Executivo) essa requisição e mobilização são feitas com insuficiência, ineficácia e/ou imperícia, os tribunais logo surgem como locus alternativo da política. Nesse sentido, penso que a sessão do STF do dia 17 foi emblemática.
O politicamente derrotado parecer do ministro Edson Fachin parece ter primado pelo rigor técnico. Sustento-me aqui nas unânimes considerações dos seus pares, mesmo dos que se dedicaram (ministro Barroso à frente) a torná-lo politicamente inócuo, pela amputação de suas razões preliminares. Qual teria sido a consequência política desse parecer tecnicamente rigoroso do relator se o seu voto houvesse prevalecido? Teria sido mínima, do ponto de vista do protagonismo político do Judiciário. Com isso ficariam mantidas as decisões já tomadas na Câmara dos Deputados relativamente à fase preliminar à deflagração de um processo de impedimento da Presidente, ao tempo em que seria cumprida a missão judiciária de, agindo legitimamente na lacuna daquilo em que o Congresso se omitiu, definir o rito posterior de um eventual processo de impedimento. Teria sido o caos?
O ministro Barroso apresentou discordâncias “pontuais”, mas cirurgicamente dirigidas aos pontos circunstancialmente mais relevantes, do ponto de vista político. Refiro-me aos pontos que poderiam reconhecer ou anular as decisões tomadas pela Câmara dos Deputados (a procedência do voto secreto e de candidaturas avulsas na eleição da Comissão Especial, receptora do pedido de impedimento da Presidente) e ao que demarca os respectivos papéis de cada casa do Congresso em processos de impedimento, vale dizer, demarcação do raio de ação da Câmara no desdobramento concreto da ação em curso, num contexto em que ela se encontra (ou se encontrava) rebelada contra a Presidente. As consequências políticas diretas desse voto, que foi acompanhado pela maioria dos ministros, foi a anulação da eleição já processada da comissão da Câmara e a futura submissão, ao Senado Federal, da decisão, por maioria simples, de efetivamente processar, ou não, a Presidente de República.
Além da precisão cirúrgica na apresentação de seu voto em moldes análogos ao de um substitutivo de parecer em casa legislativa, sobressaiu a ação coordenadora do ministro Barroso em plenário. Atuou tal qual um líder de bancada, chegando a interferir para manter nos limites do script as manifestações de colegas apoiadores do seu voto toda vez que o curso do discurso ameaçava exibir, não propriamente discrepâncias, mas a existência de pontas, em vez de superfícies arredondadas.
É possível a um leigo destinar ao voto do relator substituto o mesmo juízo que o mesmo leigo pode destinar ao parecer e ao voto do relator original? Pode-se supor, nesse caso também, que convergiram, virtuosamente, o rigor técnico da decisão e suas consequências políticas? A esse respeito foi muito elucidativo o voto singular do ministro Celso de Melo, o decano do tribunal.
Acompanhou e apoiou, aduzindo argumentos, o relator substituto na crítica ao parecer do relator original quanto ao ponto em que este reconhecia, numa eventual decisão da Câmara favorável ao processamento da Presidente, poder vinculatório que obrigaria o Senado a instaurar o processo.
Divergentemente, Celso de Melo reconhecia o poder do Senado de decidir sobre a instauração, limitando-se a Câmara a autorizar essa possibilidade. No caso, a sua interpretação e a da maioria dos ministros do STF agrada conjunturalmente ao governo, mas se trata aí apenas de uma afinidade acidental, juridicamente motivada e não de uma afinidade eletiva. Interpretações controversas à parte, estava em jogo, nesse ponto, uma regra constitucional cuja aplicação requeria posição do STF.
Difícil dizer o mesmo de outros dois cortes efetuados pelo bisturi político do ministro Barroso no parecer do ministro Fachin. Ambos os pontos não tiveram o apoio de Celso de Melo e um deles, o de Teori Zavascki. A pergunta que não cala em tantos quantos assistiram à sessão com alguma isenção e com juízo leigo, mas minimamente informado, é sobre qual foi a regra fundamental de caráter constitucional que a Câmara infringiu ao estipular o voto secreto para eleger a Comissão Especial do impeachment e ao aceitar candidaturas avulsas, isto é, não indicadas pelos líderes de bancada, naquela eleição. A resposta a essa pergunta não sobressai nos argumentos verbais do ministro Barroso e dos outros cinco ministros que o seguiram integralmente em seus votos. Nesse território de sombra reluziu o protagonismo político que o STF chamou a si ao preferir o voto ativista do ministro Barroso ao minimalista do ministro Fachin. Ao fazê-lo, o tribunal fez mais que preencher uma lacuna por não decisão legislativa, algo que tem sido habitual e compreensível. Anulou decisões de outro Poder sem deixar suficientemente claro em que a Constituição o obrigava a tão extrema decisão.
É claro que a sessão da Câmara que elegeu a comissão fora um espetáculo de pouco decoro e muita manipulação, de todas as partes. A origem dos desentendimentos já estava, de um modo mais geral, na própria crise política nas relações do Poder Executivo com o Legislativo e os partidos políticos. E de um modo especifico localizou-se na decisão de líderes de partidos governistas (entre eles, com realce, o do PMDB) de seguir a orientação do governo de não respeitar, nas indicações partidárias para a comissão, a diversidade existente nas bancadas. A rebelião oposicionista através de um chapa de candidaturas avulsas, combinada à opção do Presidente da Câmara pelo voto secreto (que deixou à vontade para votarem contra a Presidente Dilma deputados com interesses em jogo no Executivo), foram decisões reativas. Estiveram dentro da “cultura” da Casa, embora não da sua “melhor cultura”, isto é, a de decisões sobre regras se darem por consenso e de ser partidária a designação para os cargos. Mas se os governistas têm razão nesse mérito, quem poderá atirar a primeira pedra no quesito ofensa à “melhor cultura”? Os que vandalizaram urnas e cabines de votação? Seja como for o que parece claro é que se tratara de um problema político, sobre o qual, bem ou mal, a Câmara decidira, dentro dos atuais limites de qualidade política que ali imperam. Mas não de problema de desrespeito à Constituição, a justificar a intervenção da instância judiciária encarregada de guardá-la.
Tudo isso quer dizer que a maioria do STF está alinhada ao Governo e manipulada por ele? Óbvio que longe disso. Vejo que no interior do tribunal despontou, nesse processo, o ministro Barroso como ator politicamente orientado, em parte um contraponto ao ministro Gilmar Mendes, habitual visitante de territórios ambíguos entre o judicial e o político. Mais do que isso: no caso o ministro Barroso foi, além de politicamente orientado, politicamente orientador. Seu êxito sugere haver, realmente, ministros, digamos assim, mais suscetíveis a argumentos ativistas. Mas nada disso quer dizer que há grupos ou coalizões internas permanentes, politicamente articuladas e estáveis naquele colegiado. O bom senso fala mais no sentido de estar crescendo ali um ativismo decorrente de uma crescente permeabilidade de ministros à política, como decorrência de sua também crescente exposição pública. Nisso reside, a meu ver, um risco de a democracia brasileira paulatinamente hipotecar os cuidados com sua saúde política a uma visão judiciária do mundo, que leva a práxis de sentido, por vezes cirúrgico, de uma corporação propensa, por definição, ao exercício de guardianias. No momento o governo Dilma Rousseff é seu beneficiário político imediato, mas isso é detalhe de processo mais amplo e não justifica o espocar de garrafas de champanhe em ambientes palacianos.
Implicações da decisão do STF e de outros fatores sobre a futura discussão do impeachment
Numa tentativa de resumir numa frase a percepção sobre o “estado da arte” do tema do impeachment de Dilma Rousseff após a recente decisão do STF, pode-se dizer que ele saiu da ordem do dia, mas não da agenda, na qual ainda figura, mas agora de modo apenas latente.
Passou da iminência à latência, em primeiro lugar, porque o STF devolveu ao governo a chance de matar o pedido de impedimento antes da sua conversão em processo. Se não puder fazê-lo na própria Câmara, por meio de votação aberta para constranger deputados mais pragmáticos e do uso da repercussão da decisão judicial e da reversão de expectativas que ela gerou para cooptar mais deputados, em número suficiente, o governo terá maior chance no Senado, se lá a denúncia chegar.
Em segundo lugar, passou da iminência à latência porque a decisão do STF cortou talvez definitivamente as asas de Eduardo Cunha. Isso deixa o grupo parlamentar que ele comanda cada vez mais à deriva e, portanto, como clientela disponível para novas estratégias de cooptação.
Em terceiro lugar, simultaneamente à decisão do STF sobre o rito do impeachment deflagrou-se a fase Catilinárias da Lava Jato. Ela insinua atingir fortemente o PMDB, expectativa das torcidas petista e tucana para afastar do protagonismo um partido vocacionado à conciliação. O campo está aberto, em via dupla, à destruição radical do centro político. Entrevistas de Aécio Neves e a vitória do Deputado Imbassahy na eleição para líder da bancada tucana na Câmara dificultam uma aliança com o PMDB, enquanto uma operação governista tenta desviar o espólio de Cunha da incorporação à base conciliadora de Temer e levá-lo à antiga posição de tropa parlamentar de um governo petista.
Uma pulverização mais forte do PMDB pela Lava Jato é hoje mais provável do que a de que o partido seja atingido apenas seletivamente, nas facções políticas de Cunha e Renan Calheiros e no esquema governista de Piciani. Essa hipótese facilitaria, inclusive, o trabalho de Temer de unificar institucionalmente o partido, sob sua liderança. Mas a guerra aberta que contra ele movem o Governo e Renan (com ajuda decerto involuntária de parte da imprensa focada na subsunção da política à lógica judiciária), mostra que as facções podem suplantar o partido, por um tempo. Além disso, a menção a Temer em vazamentos da Lava Jato é feita num contexto em que explicações suas, mesmo se convincentes, terão que disputar espaço, na política real, com as forças que trabalham para, de um só golpe, tirar o PMDB do centro político e o seu nome das cogitações para liderar uma transição.
Esse último ponto seria, em si mesmo, uma dissuasão do impeachment, enquanto solução.
Por outro lado, a decisão do STF finca uma nova realidade que, a médio e longo prazo, retira do governo e do PT o argumento de que um impeachment, no caso de Dilma Rousseff, seria um golpe de Estado. Sendo eliminadas do processo, agora ritualizado, as digitais de Eduardo Cunha e fixando-se, como centro decisório de eventual impedimento, um Senado transitoriamente presidido pelo Presidente do STF, a versão de golpe não será persuasiva, a não ser em conversas autorreferentes, nos arredores do petismo e do governismo. Do mesmo modo, sepulta-se argumentos do lulismo e do petismo de que, na Lava Jato, eles seriam vítimas de uma “armação” policial e judiciária patrocinada pelas “elites” e pelo assim chamado partido da imprensa golpista. Ainda que sigam dizendo que o tal do PIG existe, não poderão mais dizer, ou mesmo insinuar, que o Judiciário está a seu serviço.
Então, se em qualquer ponto dessa crise - que prossegue, agora aparentemente amainada em sua dimensão política - o tema do impedimento passar de novo da agenda à ordem do dia, Dilma Rousseff estará despojada de vestes de vítima. Nesse ponto cabe lembrar que a ideia de afastamento da Presidente não sai da agenda política mediata, por outros motivos, alheios à decisão do STF. O principal deles é o item 1 das condições enumeradas na introdução desse texto. Falo, portanto, daquilo que está fora do alcance do circuito STF/MPF/PF. Sim, pois nem tudo está sob o controle desse circuito com o qual, momentaneamente, o governismo flerta, apesar de temores quanto a Lula.
O controle e a recuperação da economia são assuntos que comportam sinalizações negativas para o governo. Por um lado, convém admitir que a substituição de Levy por Nelson Barbosa pode dar à política econômica mais sintonia com a Presidente e com a escassa base social que resta ao governo. Mais ainda: ao usar o fôlego financeiro relativo que obteve, via recentes votações do ajuste fiscal pelo Congresso, para soltar a mão que segura o crédito e outras bondades, o governo pode reforçar a sua base parlamentar e social e até recuperar apoio de setores empresariais específicos. Mas por outro lado, inflação e desemprego são problemas resistentes a esse improviso pragmático e pontual. Se ficar só nele, a nova gestão da economia tropeçará nas contradições da base aliada. Portanto, sem precisar falar dos habituais argumentos liberais ortodoxos quanto à baixa confiança de investidores capitalistas nesse tipo de política e quanto ao que ela implica em retomada de irresponsabilidade fiscal, os fantasmas que espreitam o retorno parcial e limitado, desenhado no momento, a algo próximo à dita “nova matriz econômica”, são, por razões econômicas e/ou políticas, uma crise social e a contaminação de um espectro social mais amplo de cidadãos por uma polarização política ativa, que hoje se concentra em atores estatais e em suas correias de transmissão na sociedade civil.
Fantasmas podem, em tese, ser exorcizados, ainda que a trajetória pregressa da gestão da economia denuncie um pendor governamental por atiçá-los. Por isso a hipótese do script argentino se firma.
Outro ponto é o efeito bumerangue que pode ter para o governo o isolamento relativo de Michel Temer no PMDB. Se for bem-sucedido nessa tática, o governo sentirá as consequências de ficar mais intensamente nas mãos de Piciani & Cia na Câmara e definitivamente nas de Renan no Senado. Isso ainda não foi vivido plenamente no Planalto e parece ser subestimado por conselheiros incautos que avaliam como idênticos, ou similares, os papéis jogados por Temer e por aqueles personagens.
Uma eventual vitória incontrastável das facções contra o comando institucional de um partido do porte do PMDB, ao lado da balcanização do partido, poderá fazer com que a incomensurabilidade de demandas aliadas e a finitude de um orçamento crítico criem, para o Governo, uma equação insolúvel. Na ausência do argumento do golpe, a quais recorrerá o Governo para reagir aos efeitos políticos da deserção, por descontentamento ou por cálculo, de aliados preferenciais que escolheu? Recorrerá ao STF dessa vez contra Renan? Ou avalia que a Lava Jato cuidará dele antes?
Implicações de tudo isso sobre um futuro mais largo
O marco principal do futuro próximo é 2018. Essa data se refere a uma convocação eleitoral e está institucionalizada no nosso calendário político. Esperamos que assim prossiga. Mas ao se pensar nesse marco percebe-se que, da atual crise até lá, será preciso fazer uma travessia muito espinhosa. O PMDB fez documento voltado a ela e parte desse partido passou a articulá-la em torno do nome de Michel Temer. Ainda não perdeu, mas está, no momento, em posição de conjugar ao menos o gerúndio desse verbo. O PSDB, como partido, não assume, até aqui, a pregação dos seus quadros mais afoitos que entendem não haver outra travessia possível senão a antecipação da eleição para 2016. Mas caminha no curto prazo para essa posição, por falta de outra. Talvez atole na esquina seguinte, por falta também de uma clara política de alianças para a travessia. O mesmo é possível dizer de Marina Silva e sua Rede, a opção mais ou menos outsider que por enquanto se vê no cardápio político. Já o PT optou por repicar a aposta da oposição, pagando para ver se ela é capaz de levantar o País contra a reincidência de uma política que atolou a economia num pântano e quebrou o orçamento do Estado. Se for para abandonar essa política, cara do partido, na percepção petista é melhor abandonar o governo e a Presidente e ir para a oposição durante a dura travessia. O governo Rousseff adotou a solução petista, da qual parece não poder mais recuar. Nesse gueto a alternativa não é outra senão pântano ou morte. Por isso, diferentemente do partido, precisaria considerar (mesmo que dissimuladamente, para não irritar a base que lhe restou) a ideia de arrumar suas contas.
No limite a que chegamos cabe pensar em algo que há poucos meses pareceria delírio. Na hipótese de a sociedade não aguentar o pântano por mais três anos e, se frustrada uma solução da crise pela via político-institucional, no deserto político medrará a miragem de uma transição judicializada, com protagonismo aberto e não mais dissimulado; contínuo e não mais episódico, do STF. Impossível antecipar com precisão aonde nos conduziria o ativismo judiciário, se investido temporariamente no Poder Executivo, por força da linha sucessória presidencial e, em seguida, na tutela de um presidente politicamente fraco, eleito de modo indireto para um mandato tampão, por um Congresso rendido. As pistas estão nos ecos da atuação diligente do ministro Barroso e da do Presidente Lewandowski na sessão do STF do dia 17 de dezembro. Embora haja no colegiado um decano com audiência entre seus pares e até um ministro calouro mais ponderado, a lógica daquela sessão tenderia a prevalecer.
Políticos mais realistas já tentam resolver quem substituirá Eduardo Cunha, depois Renan Calheiros, nas presidências das Casas Legislativas. Alguém posicionado na linha sucessória e que possa escapar da Lava Jato pode ser a última chance de evitar o deserto político, se Rousseff não resistir. Mas do jeito que vai o andor, o consenso social mais fácil de obter será o de que esse deserto é o caminho para sair do pântano. É a oração quimérica do senso comum a uma guardiania judiciária cirúrgica.
É curioso e irônico que a mais recente e, talvez, mais relevante brecha aberta a essa hipótese tenha sido provocada por partidos e parlamentares focados na defesa aguerrida do mandato de uma presidente eleita por voto popular. Suprema prioridade que não admite meios termos, mas pode ser anulada pelo protagonismo político sem voto da Suprema Corte. Importa menos ao argumento saber se isso ocorrerá. Importa mais constatar o desaviso que grassa na elite política, a ponto de flertar-se com essa hipótese preferindo-a à alternância partidária no poder. Elite política dessa qualidade talvez mereça ter como endereço o cemitério de oligarquias a que se referia o conservador Vilfredo Pareto.
Mas nem isso sugere desistência a quem olha a democracia com olho crítico de quem também a ama. Um pacto amplo para tirar o Brasil da crise segue sendo a esperança que deve morrer por último.
Chego a uma interrogação final, que mencionarei sem desenvolver. Que futuro se pode ver para a relação entre os Poderes da República no Brasil, após passado o tempo da crise que, afinal, não será eterna? Essa não é uma questão da conjuntura, não está na ordem do dia do governo ou da oposição.
Mas é nela que devemos pensar ao notar o modo como a política vem rodopiando. A democracia brasileira, ainda trintona e já autora de obra socialmente virtuosa, mostra uma vitalidade institucional animadora. Mas um déficit continuado de interação política pode vir a ameaçar essa vitalidade.
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[1]Cientista político e professor da UFBA.
[2]Escrito em 20.12.2015 para publicação pela “Gazeta dos Búzios” (www.gazetadosbuzios.com.br);