Por Helena Celestino | Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Para o francês Alain Touraine, a América perderá o domínio da tecnologia em alguns anos para a China
PARIS - Aos 93 anos, o sociólogo francês Alain Touraine começou a escrever seu último livro. Durante 59 anos de carreira acadêmica, já publicou quase 20 obras, daquelas de verdade, faz questão de precisar, em uma conta em que não entram os textos feitos para se distrair ou para entrar no debate da hora. "O último nunca é fácil. Com a minha idade, a probabilidade é que não dê tempo para outro depois", diz, em tom de confidência. Em um apartamento entulhado de livros, ele mora sozinho com um gato e fala do mundo com a mesma intimidade que tem com as ruas de Montparnasse, percorridas há décadas a caminho de suas aulas na École des Hautes Études de Sciences Sociales, em Paris. "Sobre o que vamos falar? Da Europa, do Brasil, da França?", pergunta, enquanto sorve um pequeno gole de Amaro, "licor italiano feito a partir de ervas", detalha.
Touraine continua dando seminários de manhã, já sobre o tema do "livro-testamento" ainda sem título, mas com grandes ambições. Suas duas perguntas básicas são: em que sociedade viveremos e quem serão os atores principais do século XXI? De alguma maneira, esse é seu tema desde os anos 60, quando escrutinava o mundo para entender o que batizou de sociedades pós-industriais, na época em que as fábricas começam a desaparecer e emergir o sujeito forjado pela modernidade, que se mobiliza não só pela consciência de classe, mas, cada vez mais, pela sua identidade e/ou sua cultura.
Foi ele um dos primeiros teóricos dos movimentos sociais, acompanhando desde o Solidariedade, na Polônia, ao Chile nos anos 70; do feminismo nas ruas de Paris aos protestos antinucleares na Alemanha. E assim continua até hoje. "O lugar das mulheres e dos imigrantes continuará a ser o grande debate deste século", diz.
Para marcar a criação dos 50 anos do Comitê de Pesquisa dos Movimentos Sociais, ele foi homenageado, em janeiro, com duas jornadas de debates, em que dialogou com dois famosos ex-alunos: numa delas, conversou sobre a França e a Europa com o sociólogo espanhol Manuel Castells e, em uma segunda, com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso sobre América Latina. Está pessimista com o Brasil. "Bolsonaro é um fenômeno, mas ele mesmo não tem nenhuma força política, nem nenhuma intenção, nenhum programa de governo", diz.
Valor: Os intelectuais fizeram um manifesto, lançando o senhor e Edgar Morin como candidatos à eleição do parlamento europeu. Por que não prosperou?
Alain Touraine: Foi um pequeno projeto, mas Morin tomou a palavra meio autoritariamente, dizendo que não se deveria fazer isso. Eu, que acreditava mais nessa possibilidade, concordei que era praticamente impossível lançar essa lista. Teríamos como bandeira "Por uma Europa migrante e solidária". Mas todos são contra a solidariedade com os imigrantes, salvo alguns intelectuais e alguns velhos católicos.
Valor: Vivemos em um momento de direitização na França e na Europa?
Touraine: Não diria isso. Estamos vivendo com partidos nem de direita nem de esquerda, mas "hors politique " [literalmente, fora da política]. É verdade que existem mais governos de extrema-direita do que de extrema-esquerda. É consequência de um fenômeno quase sem equivalência na história, o desmoronamento do sistema político ocidental. É bem recente. Na França, o ano traumatizante foi 2015, o dos atentados ao "Charlie Hebdo", e depois o Bataclan. Para a maioria, o ano marcante foi 2016, primeiro com o Brexit e, depois, com a eleição de [Donald] Trump. Não foi apenas uma crise. Foi o desmoronamento dos sistemas políticos da Inglaterra e Estados Unidos. Em 2017, apareceu [Emmanuel] Macron, quando na França não havia nem direita nem esquerda, era terra arrasada. Em 2018, teve o início do regime na Itália, com muitas características fascistas, o que não é um detalhe. E ainda veremos acontecer o desmoronamento do partido social-democrata alemão, um fenômeno prodigioso: a ruptura entre os sindicalistas, que formam a metade da social-democracia, e os intelectuais agora transmutados em ecologistas.