1. Introdução
A presença de Bobbio como base teórica para auxiliar a compreensão do universo político brasileiro não é uma novidade. Uma rápida busca na internet permite a qualquer um encontrar alguns daqueles temas que caracterizaram a reflexão política do filósofo e jurista italiano: democracia dos modernos e dos antigos, direitos e deveres, transparência e poder oculto somam-se às discussões sobre direita e esquerda, esta sem dúvida a mais “popular” delas, notadamente em virtude da disputa de narrativas que caracterizou a última corrida presidencial.
Nesse contexto, é digno de nota o artigo publicado em junho de 2017 – “Um eloquente silêncio sobre Norberto Bobbio” –, em que Ricardo Zamora se refere ao livro Contra os novos despotismos como uma oportunidade para “devolver aos debates políticos no Brasil a presença sempre iluminadora de seu pensamento” (ZAMORA, 2017). Tendo como base o governo Temer, o autor salientava que “o despotismo que se insinua no Brasil decorre não de uma unificação de poderes em uma só pessoa, mas da articulação – como talvez nunca antes na história desse país, entre o monopólio das comunicações, as organizações patronais e o Poder Executivo” (ZAMORA, 2017), razão pela qual o livro de Bobbio, “embora trate de um problema específico, o berlusconismo, e de um momento político também específico da Itália, pode trazer luzes valiosas para iluminar o caótico processo brasileiro” (ZAMORA, 2017).
Mais recentemente, um artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo deu continuidade a essa “presença de Bobbio” em território nacional com o título “Bolsonaro e o pessimismo da razão”, trazendo como destaque a sugestiva afirmação: “o que dizia Norberto Bobbio para a Itália dos anos 70 vale para o Brasil de hoje”. Em virtude da repercussão e alcance desse artigo, partirei dele para desenvolver alguns questionamentos: se for de todo razoável operar o arcabouço teórico bobbiano para pensar a realidade política brasileira, o que a atualidade de Bobbio tem a nos dizer sobre a atual forma de governo? Estaríamos diante de uma degeneração da democracia? Seria possível associar essa ideia com o discurso sobre o despotismo?
Dou início a essas reflexões, portanto, destacando como se deu o emprego de Bobbio no texto publicado pelo referido jornal em 10 de maio. Após salientar algumas manifestações do presidente Jair Bolsonaro – discursos em que diz, de um lado, que respeita a Constituição e, do outro, que ele mesmo é a Constituição e que “tudo tem um limite” –, o artigo não deixa de notar: “afirmações como essas, que exaltam a importância da Constituição ao mesmo tempo que justificam o desrespeito a ela, não são novas na vida política contemporânea”. E é exatamente neste ponto que aparece a conexão com o pensamento de Bobbio, oriundo de citações de dois textos – “A Constituição não tem culpa”, de 09 de janeiro de 1978, o primeiro a ser citado, e “O dever de sermos pessimistas”, de 15 de maio 1977, ambos publicados em As ideologias e o poder em crise, de 1981.
Uma vez destacada a caótica situação vivida pela Itália na década de 1970 em virtude do assassinato do ex-primeiro-ministro Aldo Moro, o texto do jornal O Estado de S. Paulo realça que Bobbio foi uma das vozes que se levantou contra a confusão – por vezes deliberada – em torno do sentido democrático da Constituição italiana em um país recém-saído do fascismo. Nesse sentido, o artigo cita uma passagem do texto de 1978 que caracteriza o texto constitucional como “um compromisso, necessário e a longo prazo benéfico, entre forças políticas apoiadas em ideias morais e sociais diferentes, algumas vezes até opostas” (BOBBIO, 1994, p. 187). Daí a assertiva do jornal: “O que se espera da Constituição é que ela defina as regras do jogo”.
Trata-se, no entanto, de uma definição que não aponta – e não pode apontar – para qual “lado” deve-se jogar. Se o governo se movimentará para a esquerda ou para a direita, é algo impossível de se estabelecer constitucionalmente, como o próprio Bobbio diz. E é exatamente neste ponto que o artigo “Bolsonaro e o pessimismo da razão” atinge seu ápice. Após afirmar que o modo de jogar dentro das regras do jogo faz com que as partes atuem apenas como adversários, pode-se encontrar a seguinte reflexão:
qualquer afronta a essas regras rompe o pacto constitucional, levando-os, então, a se converterem em inimigos. E essa é a lógica da guerra e da barbárie, segundo a qual quem não é amigo tem de ser destruído, lembrava Bobbio (“Bolsonaro e o pessimismo da razão”, 10 de maio de 2020).
Ainda assim, existiria algo ainda mais perigoso: a presença de certos atores na cena política, “pessoas perigosas, porque falam como adversários, mas agem como inimigos, pondo em risco assim as instituições democráticas”, momento em que a articulação com o autor italiano volta a aparecer. Se Bobbio dizia que esses sujeitos devem ser “denunciados” e “combatidos” enquanto houver tempo – e uma vez mais é o artigo do jornal O Estado de S. Paulo quem nos lembra desse posicionamento – o recado está dado: o presidente Jair Bolsonaro materializaria um prenúncio que teria sido descrito por Bobbio em outro texto do mesmo período, o também já mencionado “O dever de sermos pessimistas”, de 1977.