O lulismo existe sob o signo da contradição. Conservação e mudança, reprodução e superação, decepção e esperança num mesmo movimento. É o caráter ambíguo do fenômeno que torna difícil a sua interpretação (André Singer, Os sentidos do lulismo, 2012, p. 9).
Dez anos se passaram desde a chegada de Lula ao poder. Um balanço geral sobre a experiência petista frente ao governo federal durante este período — quer sob a batuta de Lula, quer sob o comando de Dilma — merece especial atenção não somente para uma melhor compreensão da conjuntura política brasileira na última década, mas para uma formulação mais bem compreendida acerca dos possíveis caminhos a serem seguidos pelos segmentos sociais comprometidos com a ampliação da democratização política e social do país. Nas linhas que se seguem procurarei apresentar, de forma resumida, cinco interpretações da experiência petista desses dez anos de governo, buscando compreender suas orientações principais. Não se trata de afirmar que as leituras aqui mobilizadas sobre o país são as únicas disponíveis no cenário brasileiro. Mas, elas são, a meu ver, as mais sistemáticas e perspicazes elaboradas no campo da esquerda.
Não se trata também, obviamente, de, em poucas linhas, elaborar uma discussão pormenorizada de cada uma dessas interpretações, mas tão somente apontar os sentidos gerais dos principais argumentos mobilizados pelos analistas, explorando aproximações e tensões, para, em seguida, sugerir alguns desafios para o campo da esquerda no sentido de avançar no processo de democratização política e social do país. Os autores selecionados foram divididos em dois grandes blocos, a saber: (1) aqueles que têm construído análises mais positivas sobre os dez anos de governo do PT (Emir Sader, André Singer e Vladimir Safatle); (2) aqueles que tecem considerações mais negativas da experiência petista (Francisco de Oliveira e Luiz Werneck Vianna). Ainda que haja diferenças significativas entre os autores “pertencentes” a cada bloco, é possível sublinhar aproximações em suas concepções mais gerais dos projetos políticos implementados nos governos Lula e Dilma. A ideia a ser sustentada é a de que as análises elaboradas por Singer, Safatle e Werneck Vianna, não obstante suas diferenças, fornecem elementos mais acurados para uma melhor interpretação do Brasil contemporâneo e para a formulação, por parte da esquerda, de uma agenda comum voltada para o aprofundamento do processo de transformação social do país.
Iniciarei esta exposição com um breve resumo da interpretação do Brasil contemporâneo elaborada por Emir Sader, tomando como base texto recente, divulgado em seu blog, vinculado à Carta Maior, intitulado “10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil” (31/12/2012). Neste artigo, o autor tece uma avaliação bem positiva da experiência petista à frente do poder, argumentando que os governos Lula e Dilma se caracterizariam pela procura da superação dos “modelos centrados no mercado, no Estado mínimo, nas relações externas prioritariamente voltadas para os Estados Unidos e os países do centro do sistema”, privilegiando os “processos de integração regional e os intercâmbios Sul-Sul”. Na busca pelo rompimento com a “pesada herança econômica, social e política recebida”, estes governos teriam resgatado o Estado “como indutor do crescimento econômico” e da “garantia dos direitos sociais de todos”, estabelecendo “um modelo de desenvolvimento intrinsecamente articulado com políticas sociais redistributivas, colocando a ênfase nos direitos sociais e não nos mecanismos de mercado”. As consequências da adoção deste novo modelo seriam atestadas pela transformação significativa da “estrutura social do país”, mediante “profundos processos de combate à pobreza, à miséria e à desigualdade”, que teriam conduzido a “formas maciças de ascensão econômica e social, com acesso a direitos fundamentais, de dezenas de milhões de brasileiros”. A “mais forte crise econômica internacional das últimas oito décadas” não teria sido suficiente para estancar este processo de inclusão social, “mesmo em situações econômicas adversas”.
A “herança pesada” recebida pelos governos Lula e Dilma, que Sader associa quer aos efeitos da ditadura militar — “que quebrou a capacidade de resistência do movimento popular” —, quer aos “governos neoliberais de mais de uma década” — “de Collor a FHC” —, teria imposto dificuldades para a implementação de um novo processo de desenvolvimento econômico e social no país. Para superar o “Estado desarticulado, uma economia penetrada pelo capital estrangeiro, um mercado interno escancarado para o mercado internacional, uma sociedade fragmentada, com a maior parte dos trabalhadores sem contrato de trabalho”, Lula e Dilma teriam investido em novas agendas capazes de romper com “três aspectos essenciais do modelo neoliberal”: “prioridade das políticas sociais”; “prioridade dos processos de integração regional e das alianças Sul-Sul”; e “retomada do papel do Estado como indutor do crescimento econômico e garantia dos direitos sociais”. Como decorrência dessas medidas, Sader afirma que os governos Lula e Dilma constituíram o “eixo do modelo pós-neoliberal”, que seria comum a “todos os governos progressistas latino-americanos”, que conjugariam a superação do neoliberalismo com a construção de “projetos de integração regional autônomos em relação aos EUA”.
No campo de intepretações mais positivas sobre o governo Lula, não há como não destacar a notável análise de André Singer, elaborada primeiramente em seu artigo “Raízes sociais e ideológicas do lulismo”, publicado na revista do Cebrap, Novos Estudos, em 2009. Este texto teve o grande mérito de suscitar novos debates e reflexões em torno da conjuntura política brasileira ao trazer para o centro da cena uma perspectiva ao mesmo tempo favorável e crítica do modelo implantado desde a chegada de Lula ao poder. Mais recentemente, Singer sintetizou seus argumentos no livro Os sentidos do lulismo. Reforma gradual e pacto conservador (Companhia das Letras, 2012), que contém, além do artigo acima referido, outros textos que expõem de maneira mais pormenorizada seu argumento. Talvez um dos grandes valores da obra de Singer tenha sido o de estabelecer uma interpretação de conjuntura que se ancora em conceitos formulados por autores clássicos — em especial, as noções de “política de massas” e “revolução passiva”, elaboradas, respectivamente, por Marx e Gramsci — em diálogo direto com intepretações clássicas da política brasileira — como aquela sobre o “populismo” realizada por Francisco Weffort — e análises de outros autores brasileiros que vêm procurando compreender o “caráter ambíguo” do lulismo e suas consequências políticas e sociais, como Francisco de Oliveira, Luiz Werneck Vianna, Brasílio Sallum Jr., Marcos Nobre, Juarez Guimarães, Ruy Braga, Rudá Ricci, Jessé Souza, entre outros.
O argumento central de Singer vincula-se à ideia segundo a qual determinadas transformações conjunturais que se intensificaram a partir de 2006 teriam provocado o surgimento do “lulismo”. A combinação entre a adoção, entre 2003 e 2005, por parte do governo Lula, de políticas voltadas para a redução da pobreza com a crise do “mensalão”, em 2005, teria produzido no país aquilo que o autor chama de “realinhamento eleitoral”. Este realinhamento seria responsável, segundo Singer, pela transformação da conjuntura política brasileira: de um lado, uma fração de classe, o “subproletariado”, teria aderido ao projeto de Lula; de outro lado, teria ocorrido o deslocamento da classe média, outrora eleitora do PT, em direção ao PSDB. Para Singer, a base lulista surgida após este “realinhamento” proporcionou ao presidente a possibilidade de ampliação do modelo de diminuição da pobreza, sem que isto representasse qualquer confronto significativo com o capital e com manutenção da ordem. Ao contrário de análises que sustentam a ideia segundo a qual teria havido uma despolarização da política brasileira após ascensão do PT ao poder, o autor afirma que o país estaria vivenciando um processo de “polarização ideológica”, não mais entre esquerda e direita, mas “entre ricos e pobres”, produzindo forte repercussão regional, especialmente no Nordeste.
Singer situa sua análise no debate mais amplo sobre classes e procura chamar a atenção para o caráter contraditório do lulismo: “ao promover um reformismo suficientemente fraco para desestimular conflitos”, ele acabaria por estender no tempo “a redução da tremenda desigualdade nacional” (p. 22). O realinhamento eleitoral de 2006 e o fenômeno do “lulismo” teriam intensificado a polarização social entre ricos e pobres, de forma “talvez até mais intensa, do que a dramatizada por PTB e UDN nos anos 1950” (p. 36), mas não teria conduzido a uma radicalização política desta mesma polarização social. Para Singer, ao analisar o fenômeno de forma mais ampla, seria possível dizer que o “lulismo” conduziria a uma “ruptura real” da ordem anterior, ao deslocar o subproletariado da burguesia; mas, ao fazê-lo sem mobilização, configurar-se-ia como um caso de “revolução passiva”, na chave pensada por Gramsci. De qualquer modo, o lulismo representaria “a criação de um bloco de poder novo, com projeto político” (p. 37), abrindo “possibilidades inéditas a partir dessa novidade histórica” (p. 44, grifo do autor). “Lento e desmobilizador”, o reformismo lulista permaneceria sendo “reformismo”, ao promover modificações reais, ainda que “em silencioso curso”.
Como se percebe, portanto, a análise de Singer é positiva em relação à experiência petista no poder, destacando suas potencialidades, mas não deixa de apontar para suas contradições e limitações ao promover um processo de transformação que não implica um reformismo forte. Não obstante haja diferenças significativas, a análise de Singer converge, no plano mais geral, com interpretação recente do governo petista, elaborada por Vladimir Safatle, em seu texto “Os impasses do lulismo”, publicado no site da revista Carta Capital (janeiro de 2013). Em ambas as interpretações, reconhecem-se avanços da experiência do PT à frente do governo federal, mas são também destacadas suas contradições. Em seu pequeno, porém arguto artigo, Safatle, ao mesmo tempo em que destaca a importância do “lulismo” para estimular a “transformação do Estado em indutor de processos de ascensão por meio da consolidação de sistemas de proteção social, do aumento real do salário-mínimo e incentivo ao consumo”, chama a atenção para suas limitações no sentido de promover transformações mais significativas no quadro político e social do país. O lulismo se sustentaria “na transformação de grandes alianças heteróclitas em única condição possível de ‘governabilidade’”, com a consequência de retirar da agenda política “toda e qualquer modificação estrutural nos modos de gestão do poder”. Ao referendar um “modo de gestão de conflitos políticos que encontra suas raízes brasileiras na Era Vargas” — marcado pela “transposição dos conflitos entre setores da sociedade civil para o interior do Estado” —, o governo Lula, por “fagocitose de posições”, teria logrado sucesso no sentido de “esvaziar tanto as oposições à direita quanto à esquerda”, processo esse facilitado pela “inanição intelectual completa da oposição à direita”.
Safatle sugere a possibilidade de o governo Dilma representar o “esgotamento do lulismo”, que se converteria, a seu ver, em “um lulismo de baixo crescimento”, gerenciado pela presidente. O modelo, portanto, estaria se esgotando. Se a política social inclusiva foi a marca por excelência da experiência petista, ela não estaria mais dando conta de ir além e romper com o quadro de um país que permanece com “níveis brutais de desigualdade”. O processo de inclusão ver-se-ia acompanhado de um movimento inflacionário, no qual as “demandas de consumo cada vez mais ostentatórias” pressionariam “o custo de vida para cima”, prejudicando os segmentos mais vulneráveis. Se é possível, de fato, afirmar a importância da criação de empregos, estes se caracterizariam, em sua maioria absoluta, por trabalhos com salários de até um e meio salário-mínimo. Além disso, a criação de novos empregos não teria sido seguida por um “programa para a universalização da educação e saúde pública de qualidade”, capaz de minimizar os “efeitos perversos da desigualdade”.
Para além do campo social, Safatle aponta as contradições do governo petista no que tange ao financiamento estatal do capitalismo nacional, que teria estimulado tendências monopolistas da economia brasileira. Os principais setores econômicos estariam sob a dependência do Estado, principalmente via BNDES, “com seus serviços de péssima qualidade e seus preços extorsivos”. O processo de centralização econômica seria acompanhado, segundo Safatle, do processo de centralização política, na figura da presidente Dilma, cujo resultado constituiria na “incapacidade do governo em formular e discutir alternativas” com outros segmentos da sociedade civil, em especial os sindicatos. As “grandes modificações” teriam desaparecido da agenda política do governo petista para dar lugar “a certo ‘gerencialismo’”, focado na “gestão cotidiana”, movimento para o qual teria contribuído sobremaneira a própria trajetória do PT, caracterizada pelo “afastamento definitivo dos núcleos de debate da sociedade civil (universidades, movimentos sociais etc.)”. A continuar este cenário, a política brasileira estaria condenada à reprodução de um quadro dominado por “partidos-curinga”, como PSD e PSB, “que têm, como grande característica, não ter característica alguma”. A única possibilidade de superação desse quadro seria uma eventual “radicalização paulatina dos extremos”, que Safatle encara como “a única condição para que voltemos a pensar politicamente”.
No campo das análises que elaboram interpretações mais negativas dos dez anos de governo petista, vale destacar aquelas realizadas por Francisco de Oliveira e Luiz Werneck Vianna. Ainda que o primeiro assuma uma perspectiva mais contrária à experiência petista no poder, ambos convergem na elaboração de um diagnóstico crítico, que visa a problematizar a visão otimista presente na retórica do governo federal. Desde o primeiro ano do governo Lula, Francisco de Oliveira vem se dedicando a tecer análises questionadoras de suas orientações e direcionamentos, como se verifica em Crítica à razão dualista. O ornitorrinco (2003), atualização de ensaio clássico de 1972, “A economia brasileira. Crítica à razão dualista”, publicado em livro no ano seguinte. Ao mobilizar a imagem do ornitorrinco, animal que não é isso nem aquilo, Oliveira buscou problematizar a conjuntura política do país e enfatizar as “recentes convergências programáticas entre PT e PSDB”. Partindo dessa similaridade, o ponto nodal do argumento do autor foi o destaque para a constituição de uma nova classe social no país, que se estruturaria sobre, “de um lado, técnicos e intelectuais doublés de banqueiros, núcleo duro do PSDB, e operários transformados em operadores de fundos de previdência, núcleo duro do PT”, cuja identidade adviria do “controle do acesso aos fundos públicos” (p. 147).
Em textos mais recentes — com destaque para o artigo publicado originalmente na revista Piauí (janeiro de 2007) e, posteriormente, no livro Hegemonia às avessas. Economia, política e cultura na era da servidão financeira (2010), organizado por Ruy Braga e Cibele Rizek —, Francisco de Oliveira aprofundou suas análises partindo para a caracterização da experiência petista, sob a batuta de Lula, como uma “hegemonia às avessas”. Para o autor, o principal elemento dessa hegemonia, “típica da era da globalização” e semelhante àquela que se construiu na África do Sul do apartheid, seria a abdicação, por parte da classe dominante, do poder a favor dos “dominados” — que Lula, em tese, representaria —, sob a condição de que os fundamentos da sua dominação não fossem questionados. As classes dominadas tomariam a “direção moral da sociedade”, enquanto a “dominação burguesa” se faria de forma “mais descarada”, sem quaisquer questionamentos efetivos à exploração capitalista. Este processo resultaria em uma intensificação da desmobilização das classes subalternas e dos movimentos sociais, conduzindo ao desaparecimento do “conflito de classes”, bem como à configuração de um quadro no qual os dominados pensariam que dominariam, quando, na prática, o governo capitularia frente à “exploração desenfreada”.
Em artigo publicado em outubro de 2009, também na revista Piauí, intitulado “O avesso do avesso”, Oliveira buscou aprofundar uma interpretação das consequências da “hegemonia às avessas” para a política brasileira, implementada pelo governo petista. O governo Lula, “na senda aberta por Collor e alargada por Fernando Henrique Cardoso”, teria ampliado ainda mais “a autonomia do capital, retirando às classes trabalhadoras e à política qualquer possibilidade de diminuir a desigualdade social e aumentar a participação democrática”. Enquanto FHC teria destruído “os músculos do Estado para implementar o projeto privatista”, o governo petista teria destruído “os músculos da sociedade”, mediante a cooptação dos movimentos sociais. A política foi “substituída pela administração” das políticas sociais e o país viu retomada da “cultura do favor”. A negação da política, cada vez mais administrativa e espetacularizada, teria subsumido por completo o conflito de classes. De acordo com a perspectiva de Oliveira, o chamado “lulismo” seria uma “regressão política, a vanguarda do atraso e o atraso da vanguarda”.
Luiz Werneck Vianna, por sua vez, também vem desenvolvendo uma interpretação negativa dos governos petistas, embora, possa se afirmar, que ele, de maneira geral, reconheça mais avanços nestes dez anos do que Oliveira. Em textos como “O Estado Novo do PT” (2007) e “A viagem (quase) redonda do PT” (julho de 2009), publicados, respectivamente, no site Gramsci e o Brasil e no Jornal de Resenhas, Werneck procura criticar aquilo que denomina como a “viagem quase redonda”, realizada pelo PT ao chegar ao governo federal. Para o autor, o partido teria promovido uma retomada do nacional-desenvolvimentismo que antes tanto criticara, sem, contudo, reinventá-lo em uma chave progressista. As forças sociais representadas pelo partido, que deveriam apresentar a descontinuidade, se tornaram as portadoras da continuidade, trazendo de volta a lógica política dos processos de modernização pregressos, com as mudanças sendo processadas “pelo alto”. A principal consequência desse processo seria a subsunção do social ao Estado, que passaria a processar e arbitrar os conflitos entre classes e frações de classes no interior do próprio governo. Ainda que os governos petistas tenham tido êxito no sentido de contemplar interesses substantivos de diversos segmentos da sociedade, a política estaria sendo cooptada pelo Estado, sob a liderança de um chefe carismático, e pela condução de um processo de modernização a partir do alto, que, a despeito da retórica fraterna, não traria consigo o moderno, que suporia autonomia dos sujeitos na trama do social.
Aí está o âmago da crítica de Werneck à experiência petista — mais bem explorada nos artigos que compõem seu A modernização sem o moderno (Contraponto, 2011): a modernização “por cima”, realizada por Lula e Dilma, impediria a afirmação do moderno no país, compreendido como “um contínuo aprofundamento da democracia política, de valorização da auto-organização do social e da autonomia da vida associativa diante do Estado” (p. 20). Os governos petistas, pela história do próprio partido e pela herança legada ao país pela Constituição de 1988, teriam encontrado condições propícias para efetivar uma agenda política capaz de trazer o moderno, mas, ao fim e ao cabo, teriam sucumbido a mais um ciclo de modernização — na esteira de Vargas, JK e do regime militar —, que se mostrou incapaz de “interpelar criticamente a nossa experiência republicana”, trazendo de volta, “alguns dos seus aspectos mais recessivos” (p. 20). Mesmo em um contexto marcado pela expansão econômica e pela modernização das estruturas sociais, a experiência petista mostrou-se inábil no sentido de inovar o repertório político, concedendo “nova vida às instituições cediças”, mediante a ação de um Estado disposto assimetricamente à sociedade e de uma política pragmática capaz de subsumir o moderno à modernização.
Em textos mais recentes publicados no jornal O Estado de S. Paulo, Werneck vem avançando em suas críticas à experiência petista, procurando vinculá-la àquilo que intitula de “projeto nacional grão-burguês”. Uma de suas principais objeções a este projeto relaciona-se às tentativas feitas pelo governo de vincular retoricamente sua política ao ideário “nacional-popular”, que, embora gestado no segundo governo Vargas, encontrou maior expressão na década de 1960, mediante intensa participação popular. Para Werneck, a experiência petista não pode ser associada ao “nacional-popular”, na medida em que se constrói mediante um projeto “de cima para baixo”, conduzido por elites dirigentes constituídas pela tecnocracia e pelo grande empresariado, imersas em cálculos de macroeconomia, sem a participação ativa da sociedade e dos segmentos subalternos. O nacional seria subsumido, dessa forma, à lógica da modernização econômica e as razões instrumentais conduziriam a construção de uma noção de “grande potência mundial”, que secundaria a agenda da sociedade civil, que, no máximo, seria encarada enquanto agente passivo e beneficiário dos êxitos da acumulação capitalista.
Não se trata neste texto de escrutinar as cinco análises da conjuntura brasileira acima resumidas em busca de semelhanças e diferenças específicas. O objetivo foi tão somente o de tentar traçar os sentidos gerais dos argumentos desses autores de modo a ilustrar as linhas principais de intepretações do Brasil contemporâneo formuladas por intelectuais vinculados ao campo da esquerda. Ao separá-las em dois grandes blocos — análises positivas e negativas —, corri o risco da generalização ou da simplificação de leituras muito mais complexas do que aquelas acima esboçadas. Tal movimento interpretativo, no entanto, foi realizado com o intuito de sublinhar as principais questões e tensões que estão presentes no debate mais amplo acerca da conjuntura política nacional.
Para concluir, gostaria de chamar a atenção para as interpretações que considero mais problemáticas e mais relevantes para percepção da conjuntura brasileira. Particularmente penso que duas análises pertencentes a cada um dos blocos — a saber, a de Emir Sader e a de Francisco de Oliveira — se equivocam em sentidos opostos: enquanto a primeira exagera na louvação da experiência petista, enfatizando apenas os aspectos positivos dos governos Lula e Dilma, a segunda pesa a mão na crítica, ao caracterizar o lulismo enquanto uma radicalização do governo tucano. Se é um erro considerar os governos Lula e Dilma como de superação à agenda neoliberal e de construção de um projeto alternativo ao capitalismo, é da mesma maneira equivocado, não perceber o quanto os governos petistas alteraram a conjuntura política brasileira a favor de um projeto de esquerda, ao retomarem a importância do papel do Estado na economia, ao iniciarem uma nova forma de diálogo com os movimentos sociais, ao trazerem novamente para o centro da cena o debate sobre a desigualdade social, ao investirem maciçamente na criação de empregos e no aumento real do salário-mínimo e ao buscarem a construção de uma política externa mais soberana.
Não obstante contenha alguns problemas, as análises formuladas por André Singer, Vladmir Safatle e Luiz Werneck Vianna oferecem maior clareza para compreender a conjuntura política brasileira, ao enfatizarem os aspectos contraditórios e conflitantes de um governo de coalizão de classes. As interpretações de Singer e Safatle têm o mérito de analisar dialeticamente avanços e limitações da experiência petista, superando os problemas acima destacados das análises de Sader e Oliveira. Ainda que haja diferenças entre ambas as leituras do Brasil, elas se assemelham no sentido de chamar a atenção para o fato de que houve uma transformação real e significativa entre os governos tucano e petista, que não são a mesma coisa, como sugere Oliveira. Suas análises também se identificam ao destacarem os limites da experiência petista — algo que passa batido da intepretação de Sader —, sobretudo no sentido de impulsionar transformações mais significativas que conduzam a um efetivo projeto de democratização política e social do país.
Nesse sentido, a crítica levantada por Werneck Vianna merece grande destaque por trazer à baila o debate sobre a forma de condução da experiência petista frente ao governo federal. Conquanto seja exagerada sua associação dos governos Lula e Dilma a um “projeto nacional grão-burguês”, sua análise tem o mérito de trazer para o centro do debate as limitações políticas de um projeto de esquerda que, não obstante seus méritos, tem sido construído mais “de cima para baixo”, do que via participação autônoma da sociedade civil. Ao mobilizar o debate político para o núcleo de sua crítica, Werneck aponta para as contradições inscritas em um projeto que traz uma pauta substantiva de enorme peso para a esquerda — a redução da desigualdade —, sem que o mesmo seja acompanhado de uma mobilização mais ampla dos segmentos subalternos, encarados mais como cliente de programas importantes do que como agentes partícipes do processo de transformação social. No fundo, trata-se de uma crítica habermasiana que problematiza a colonização do mundo da vida e da esfera pública pelos subsistemas econômicos e políticos que executam as políticas de “cima para baixo” a partir de burocracias e tecnocracias distanciadas das instâncias da sociedade civil.
A tomar pelas análises acima destacadas, é possível dizer que tem havido um esforço por parte de autores provenientes de diferentes campos da esquerda no sentido de empreender uma interpretação do Brasil contemporâneo. A despeito do fato de considerar as análises de Singer, Safatle e Werneck Vianna mais bem acuradas para decifrar os avanços e limites das experiências petistas frente ao governo federal, creio que todas as intepretações trazem elementos substantivos que contribuem para um melhor entendimento da conjuntura política atual. Talvez o grande desafio para acelerar e radicalizar o processo de democratização política e social do país esteja vinculado à necessidade da ampliação do diálogo público entre diferentes segmentos da esquerda brasileira. Cada vez mais desconectados, os diversos partidos e grupos vinculados ao campo da esquerda se vêm forçados mais a responder pragmaticamente ou utopicamente às demandas da conjuntura do que a pensarem em projetos que os unifiquem no longo prazo. O repto que se coloca, nesse sentido, refere-se à criação de atividades conjuntas em universidades, sindicatos, associações de bairro, igrejas e demais espaços da sociedade civil, que possibilitem a construção de agendas políticas comuns que transcendam a salutar e necessária diferença entre os partidos e segmentos da esquerda não partidarizada.
Penso, particularmente, em três agendas políticas que poderiam se não unificar, mas, ao menos, aproximar a esquerda brasileira, no sentido de acelerar o processo de democratização política e social do país. Em primeiro lugar, trata-se de avançar em um debate verdadeiramente democrático e capaz de mobilizar a sociedade civil em torno da reforma política, que, a meu ver, deveria se pautar tanto no fortalecimento da democracia representativa — de modo a superar o comodismo acrítico por parte do PT em torno do “presidencialismo de coalizão”, que prejudica sobremaneira o nosso sistema político —, quanto na criação de mecanismos capazes de estimular formas diretas de participação da sociedade no debate e deliberação de assuntos públicos. A pressão em torno do financiamento público das campanhas eleitorais, de um lado, e do uso mais sistemático de mecanismos participativos facultados pela Constituição de 1988 — como referendos e plebiscitos —, de outro, devem adquirir centralidade na agenda política da esquerda, na medida em que eles podem significar o fortalecimento público e participativo da democracia representativa e direta no país.
Em segundo lugar, faz-se necessário um aprofundamento do debate na esquerda em torno do papel do Estado no sentido de promover uma transformação mais efetiva do país. Sob o impacto dos desastrosos resultados do neoliberalismo, a esquerda brasileira se fiou no Estado como panaceia para a solução de todos os problemas da vida democrática contemporânea. Se é verdadeira a percepção de que o mercado por si só não dá conta de resolver os problemas da sociedade, como bem evidenciou a crise econômica de 2008, também é factível pensar que o Estado por si só não basta para a mobilização da sociedade em torno de um projeto verdadeiramente democrático. Trata-se, portanto, de uma atualização teórica e prática do debate sobre a democratização do Estado, bem como de sua relação com o mercado e com a sociedade civil, que implica trazer para o centro da cena uma reflexão mais acurada em torno da forma como são formuladas e implementadas as políticas públicas no país.
Por fim, creio ser fundamental que a esquerda se mobilize em torno de um debate mais efetivo sobre a questão da desigualdade social. Nesse sentido, a reflexão poderia se encaminhar para dois direcionamentos principais: em primeiro lugar, importa pensar sobre o papel das políticas sociais no processo de emancipação dos subalternos. Não resta dúvida sobre a importância fundamental de programas como o Bolsa Família no combate à miséria e no processo de inclusão social. O que importa é debater como estes programas sociais podem ser institucionalizados de modo a virarem políticas de Estado e não de governos, bem como de que maneira eles podem contribuir para uma emancipação não apenas social, mas efetivamente política daqueles que vivem em condições de extrema pobreza. Em segundo lugar, vale refletir sobre como avançar na aprovação de iniciativas como a taxação de grandes fortunas e a redução da jornada do trabalho, que implicam mudanças substanciais na abissal desigualdade que ainda impera no país.
Quero crer que a ampliação do debate e da reflexão em torno dessas três agendas — reforma política, papel do Estado e desigualdade social — por parte da esquerda podem se constituir como caminhos fundamentais para pressionar as contradições centrais do capitalismo brasileiro, criando novas possibilidades de debate e avanço para uma ordem mais democrática e igualitária. Não resta dúvida de que a esquerda brasileira permanece e permanecerá divida em torno da maior parte desses temas. Mas a aposta no diálogo em torno de agendas públicas comuns, em fóruns permanentes que envolvam os diferentes segmentos da sociedade civil organizada e desorganizada, pode ser um caminho para se pressionar pela construção de um projeto mais democrático de sociedade.
Fernando Perlatto é doutorando do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp-Uerj) e Pesquisador do Centro de Estudos Direito e Sociedade (Cedes/PUC-RJ)..
Fonte: Gramsci e o Brasil