sábado, 18 de janeiro de 2020

O que a mídia pensa – Editoriais

Bolsonaro e sua circunstância – Editorial | O Estado de S. Paulo

Não causa surpresa o derretimento acelerado da popularidade do presidente Jair Bolsonaro detectado por uma pesquisa XP/Ipespe recentemente divulgada. O levantamento mostrou que, em um ano, a expectativa positiva em relação ao desempenho do governo para o restante do mandato caiu nada menos que 23 pontos porcentuais, de 63% para 40%. O índice de entrevistados que consideram Bolsonaro “ruim” ou “péssimo” passou de 20% para 39% no mesmo período. Pode-se dizer que esses números refletem não um ou outro problema em especial, mas o conjunto da obra.

O governo Bolsonaro parece se esforçar para inspirar em cada vez mais brasileiros a sensação de que suas decisões estapafúrdias, que carecem de lastro jurídico ou mesmo de racionalidade, não são meros acidentes ou fruto de circunstâncias passageiras, e sim reflexo preciso daquilo que o presidente é.

Não se trata apenas de despreparo para o cargo, dificuldade que se poderia amenizar com alguma dedicação aos livros e atenção aos conselhos de quem já viveu a experiência de governar; a esta altura, passado um ano de mandato, já está claro que Bolsonaro desacredita deliberadamente o exercício da Presidência porque não saberia fazer de outra forma e, graças a essa limitação insuperável, convenceu-se de que foi eleito para desmoralizar a política e sua liturgia institucional, algo que ele faz como ninguém. Vista em retrospectiva, a reunião ministerial em que o presidente apareceu de chinelos e camisa (falsificada) de time de futebol logo nos primeiros dias de governo parece hoje, perto do que já vimos, um encontro de estadistas.

Merval Pereira - Sai Jdanov, entra Goebbels

- O Globo

Responsabilidade primeira é de Bolsonaro, que extinguiu o Ministério da Cultura e escolheu uma pessoa desequilibrada e despreparada para a secretaria

Era só o que faltava para que a imagem do Brasil, que já é péssima aqui no exterior, ficasse ainda pior. A leniência com que o governo Bolsonaro trata a questão ambiental como um todo, e as queimadas da Amazônia em particular, já provocaram protestos e crises internacionais, e continuam em debate na Europa.

A defesa do meio ambiente é uma faceta da cultura que já fez parte do mesmo ministério aqui na França. Desde o início do governo Bolsonaro, a política cultural está em xeque. A partir do momento em que o Ministério da Cultura foi extinto, a designação de um secretário de Cultura subordinado primeiro ao Ministério da Cidadania, e hoje relegado ao do Turismo, deixou claro que o tema não era prioritário para o novo governo.

O que se queria era, nas palavras do presidente, desmontar o esquema esquerdista legado pelos governos petistas para colocar em seu lugar uma política cultural que fizesse “bem ao povo”. Um governo que acha que pode definir e dirigir o que seja cultura é um governo de índole autoritária.

Como em diversos casos, na Cultura o presidente Bolsonaro, que acusa o PT de ter aparelhado o Estado, quer não apenas se livrar “dessa gente”, mas aparelhá-lo com “sua gente”. A mesma disputa política deu-se durante os governos Lula. Logo de saída, em 2003, o cineasta Cacá Diegues classificou como tentativa de “dirigismo cultural” as regras de patrocínio estatal formuladas pela Secretaria de Comunicação, à época sob comando de Luiz Gushiken.

Exigiam contrapartidas sociais e adequação dos projetos a políticas de governo. Cacá as classificou de “política jdanovista”, em referência a Andrei Jdanov, que impôs o realismo socialista como estética do período stalinista.

Mais tarde, a tentativa de aprovação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav), vista por setores da produção de cinema e da TV como autoritária e centralizadora, foi mais um embate no meio cultural brasileiro. Setores do governo queriam a “radicalização democrática das políticas culturais”, e diversos intelectuais, artistas e produtores culturais, como Caetano Veloso, Ferreira Gullar, Cacá Diegues, Luiz Carlos Barreto e Zelito Viana, protestaram contra a centralização cultural pretendida.

Míriam Leitão - Cai o secretário, fica o projeto

- O Globo

O secretário se foi, mas todo o projeto ficou. A questão central é simples: Roberto Alvim não estava só, nem falava sozinho

Roberto Alvim caiu. O ex-secretário de Cultura era até caricato. Não apenas plagiou Joseph Goebbels, o ideólogo de Hitler, ele imitava seus trejeitos, seu penteado e o reverenciava em objetos na sala. Alvim estava à vontade na transmissão da noite da quinta-feira, ao lado do presidente Jair Bolsonaro, que o elogiou. Ele não é mais o secretário. Foi derrubado pela imprudência de ter copiado e colado a fala de Goebbels. O projeto que ele estava colocando em prática permanece e não era só dele. A ideia de que a cultura possa ser limitada, censurada, dirigida e usada para alavancar uma delirante e perigosa visão de mundo, de país e de poder continua nos editais, decisões e nas ideias de muitos integrantes do atual governo.

Goebbels era o ministro da mentira. Ele sabia a força estratégica da mentira e a usou para deflagrar perseguições contra os adversários políticos. Ele foi o agente que criou o ambiente social em que o nazismo prosperou e que permitiu a mais hedionda das tragédias do século XX: o assassinato em massa dos judeus em campos de concentração. O que aconteceu aos judeus no holocausto afeta cada pessoa, seja de que etnia ou credo for e em que país esteja. É a lição mais cara que a História nos deixou. Não se brinca com um crime dessa dimensão. Jamais. Não é aceitável ouvir o que ouvimos na boca de um integrante do governo brasileiro. A lei 9.459 de 1997 pune com a pena de dois a cinco anos a divulgação de símbolos do nazismo. A liberdade de expressão é total numa democracia, mas isso está na categoria do inadmissível.

Arnaldo Bloch - Discurso ecoa noção hitlerista de ‘arte degenerada’

- O Globo / Segundo Caderno

Alvim trouxe à tona vários elementos que constituíram, no que toca à cultura, a gestação do fascismo

Mesmo após a demissão do secretário, seu discurso é uma peça que deve ser ouvida, transcrita e estudada

No delirante discurso que levou à sua queda imediata, o ex-secretário especial da Cultura do governo Bolsonaro, Roberto Alvim, não se limitou a citar, parafrasear, plagiar Joseph Goebbels, o gênio do mal da propaganda nazista. Além do trecho que viralizou, lado a lado com palavras do ideólogo alemão, Alvim, num tom triunfalista calculado e medonho, trouxe à tona vários outros elementos que, há 90 anos, constituíram, no que toca à cultura, a gestação do fascismo europeu e de sua forma germânica.

A ideia de que o povo precisa ser salvo de uma “cultura doente” ecoa claramente a noção hitlerista de uma “arte degenerada” a ser expurgada. Parecido com o afã purificador que, em Berlim, incluiu até uma exposição de pinturas de grandes mestres modernos para fomentar, no grande público, o horror a tudo que respirasse liberdade, crítica, transgressão, pluralidade.

A noção dos “mitos fundantes” nacionais, evocada por Alvim ao som nada nacional de Wagner, faz parecer que nossos mitos não foram jamais visitados por essas plagas, no país de Carlos Gomes, Villa-Lobos, Oswald, Mário, dos tropicalistas, dos sambas de enredo. E em muito lembram os ideais do führer, de uma Alemanha calcada em raízes profundas de diversas filiações, carreadas por uma linhagem que remontaria à Antiguidade Clássica.

Yascha Mounk* - O pior está por vir

- Folha de S. Paulo

Na Índia, Modi causou mais danos nos primeiros meses de seu 2º mandato do que nos 5 anos anteriores

Quando passei um mês numa viagem de pesquisas na Índia, em dezembro de 2014, meio ano após a chegada ao poder de Narendra Modi, os escritores, acadêmicos e intelectuais que encontrei estavam mergulhados numa grande discussão sobre o futuro de seu país.

Todos rejeitavam Modi, nacionalista hindu fervoroso, devido ao seu desdém pela Constituição secular indiana. Mas estavam divididos quanto ao impacto que seu governo provavelmente teria sobre as liberdades fundamentais que eles desfrutavam.

Alguns temiam que Modi pudesse avançar rapidamente para sufocar qualquer dissensão. Outros faziam pouco-caso desses receios, que consideravam exagerados.

Modi causou danos consideráveis em seus cinco primeiros anos no poder, enfraquecendo tanto as liberdades desfrutadas por seus críticos quanto as minorias religiosas do país. Mas o pior ainda estava por vir.

Quando Modi foi eleito com maioria ainda mais expressiva na primavera do ano passado, seu governo começou a tomar iniciativas radicais para desmontar o secularismo da Constituição indiana; pode-se argumentar que ele causou mais danos nos primeiros meses de seu segundo mandato do que havia feito nos cinco anos anteriores. Algumas das preocupações levantadas sobre Modi que pareceram exageradas ao término de seu primeiro mandato agora começam a revelar-se prescientes.

Um grande movimento de protesto tomou forma nas últimas semanas para se opor a essas medidas radicais. Em cidades e universidades de todo o país, cidadãos de todas as religiões vêm protestando contra o governo de Modi. Sua reação tem sido brutal: em alguns estados o governo evocou estatutos da era colonial para proibir reuniões com mais de cinco pessoas. Outros estados fecharam o acesso à internet. Vídeos brutais mostram policiais agredindo estudantes suspeitos de ter protestado contra o governo.

Muitos observadores da Índia se surpreendem pelo fato de Modi ter ficado tão mais extremo em seu segundo mandato. Mas uma comparação traçada com governos populistas em todo o mundo sugere que a Índia está seguindo um roteiro previsível do que fazem candidatos a líderes autoritários quando são reeleitos.

Wagner Pinheiro Pereira* - Simples, emotiva e popular, fala de Alvim recuperou premissa da propaganda nazista

- Folha de S. Paulo

A 'estetização da política', conceito cunhado por Walter Benjamin, é marcante na estética empregada ao longo do vídeo

As estratégias propagandísticas de manipulação das massas e as diretrizes políticas para a produção artístico-cultural preconizadas pelo ditador alemão Adolf Hitler e orquestradas pelo seu ministro da Propaganda Joseph Goebbels para a Alemanha durante os doze anos do regime nazista (1933-1945) parecem ter servido de modelo de inspiração e referência para o vídeo de Roberto Alvim, então secretário especial da Cultura do governo do presidente Jair Bolsonaro, divulgado nesta quinta-feira (16) para anunciar o Prêmio Nacional das Artes, projeto do governo federal no valor total de mais de R$ 20 milhões, para o “patrocínio de produções inéditas em diversas áreas da cultura”, divididas em sete categorias: “ópera, teatro, pintura, escultura, literatura (contos), música e história em quadrinhos”.

O vídeo do pronunciamento parece ter sido retirado de um filme de propaganda nazista da década de 1930, produzido sob os auspícios de Joseph Goebbels: a “estetização da política”, famoso conceito cunhado pelo filósofo alemão Walter Benjamin para definir como o nazi-fascismo objetivava uma espetacularização da política, ou seja, a transformação dos projetos políticos-ideológicos em espetáculos artísticos-culturais, é marcante na estética empregada ao longo do vídeo; a aparência resoluta, o tom solene e a voz forte do então secretário —que parece até recordar a teatralização política dos discursos de Goebbels—, envoltos sob a atmosfera da trilha sonora de "Lohengrin" (1846-1848), famosa ópera do compositor alemão Richard Wagner, artista adorado por Hitler (“só entende o nazismo quem conhece Wagner”, confidenciava o ditador) e que fora amplamente utilizado pelo regime nazista, servem para dar um tom monumental, épico —e autoritário— ao projeto do governo Bolsonaro de “renascimento da cultura brasileira”, que almejaria o salvamento da juventude brasileira e estaria ancorada “na nobreza de nossos mitos fundantes”: “a Pátria, a Família, a coragem do povo e sua profunda ligação com Deus, amparam nossas ações na criação de políticas públicas”.

Joseph Goebbels é uma figura de fundamental importância para a compreensão da relação entre poder político e cultura da mídia no mundo contemporâneo por ter sido o grande mentor responsável pelo desenvolvimento e aprimoramento de técnicas e conceitos de propaganda política —ainda utilizados e eficazes até a atualidade— disseminados pelos meios de comunicação (imprensa, rádio, cinema e televisão) e que seriam vitais para o sucesso do “mito Adolf Hitler” como o salvador da Alemanha e do fascínio da promessa do Terceiro Reich como um poderoso império milenar, responsável por conduzir os alemães, a “raça superior”, a cumprir o destino histórico de dominarem o mundo e exterminarem as “raças inferiores”, que não se encaixavam na cosmovisão nazista.

Alexa Salomão - Mercado sinaliza que, por retorno, opera até contra democracia

Ruído na política é um dos agentes mais corrosivos da democracia

- Folha de S. Paulo

Mês após mês, diferentes áreas do atual governo deram demonstração de falta de traquejo para lidar com a democracia e flertaram com o autoritarismo. A sociedade reagiu nas redes sociais. Representantes dos demais Poderes se manifestaram. Mas o setor empresarial e o mercado financeiro não se abalaram.

Mês após mês, a cada polêmica, o reflexo na Bolsa e no dólar foi zero.

O argumento recorrente para esse comportamento é que a entidade batizada de mercado financeiro, que reúne bancos e corretoras, é amoral e apolítica. Sua única preocupação é garantir o retorno dos investimentos de seus clientes, e só há reação quando esse retorno é ameaçado. Se a área econômica do governo é bem gerida, não importa o resto.

Não importa se há aumento de queimadas na Amazônia. Não importam denúncias de corrupção num governo que se elegeu como paladino da Justiça. Não importam manifestações oficiais falando sobre a volta do regime de exceção de um AI-5. Não importa o revisionismo da história para trocar golpe por revolução. Não importa o movimento evangélico na gestão pública para banir personagens místicos dos livros infantis.

Não importa se um vídeo oficial do Ministério da Cultura, recomendado pelo presidente em sua live semanal, seja uma paródia da estética nazista.

Há três problemas nesses argumentos.

‘Quem namora o nazismo quer colher tempestade política’

Lilia Moritz Schwarcz, antropóloga e historiadora Historiadora questiona versão de Alvim de que houve ‘coincidência’ de discursos: ‘Alusão é ofensiva a todos’

Ubiratan Brasil | O Estado de S. Paulo

A antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwarcz repudia as semelhanças entre o discurso do ex-secretário de Cultura Roberto Alvim e o de Joseph Goebbels.

• Como avalia a essência do discurso de Alvim no vídeo?

Não há piada alguma no fato de o então secretário da Cultura citar Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Hitler, sob uma música de fundo de Wagner, cabelos colados na cabeça e uma cruz ortodoxa da Hungria na lateral (mais informações nesta página). A alusão é ofensiva a todos os cidadãos brasileiros. Inaceitável. Quem namora com o nazismo quer colher tempestade política. É preciso que nossas instituições democráticas repudiem com veemência esse tipo de paralelo histórico.

• Alvim disse que foi “coincidência retórica”. Afirmou ainda que “a origem é espúria, mas as ideias contidas na frase são perfeitas e eu assino embaixo”.

Não há coincidência. A estrutura das frases é idêntica, não é possível se repetir um parágrafo inteiro sem ser proposital.

Uma coisa é coincidência, a outra é uma citação. O significado se faz em contexto. Na live com Bolsonaro, Alvim disse que ia apoiar projetos conservadores no plano de cultura.

• A sra. já disse que ditaduras começam aparelhando a área cultural...

É preocupante o aparelhamento da cultura. Regimes ditatoriais começam atacando artistas, queimando livros, defendendo projetos populistas. Ou se corrompe a grande arte ou se promovem artistas muito engajados com o governo. Esse projeto cultural proposto pelo Alvim é um atentado à nossa Constituição, ao nosso direito de cidadão.

• A citação sobre Wagner poderia levar à discussão de que a obra de um grande artista deveria ser avaliada independentemente do contexto histórico?

Nesse caso, não falamos de uma ode ao Wagner. O fato de o ex-secretário se apresentar no vídeo entre uma bandeira e uma cruz húngara, e fazer um discurso em que ao menos um parágrafo é uma citação de Goebbels, não permite uma análise isolada da beleza da música de Wagner. Não estamos para julgar a música, mas o uso que Alvim faz dela.

Sérgio Augusto - Goebbels tabajara

- O Estado de S. Paulo

Roberto Alvim, o demitido secretário, começou com um Waterloo moral, ao insultar Fernanda Montenegro

Alguém grafitou, no Twitter, que o inacreditável foi abolido no Brasil. Aqui tudo pode acontecer, já aconteceu ou está por acontecer.

O governo Bolsonaro praticamente se inaugurou no exterior com um sintomático forfait no encontro de Davos, no ano passado. Aquela foto com a mesa vazia, só com os placements de Araújo, Guedes, Moro e Bolsonaro, entrou para a história do vexame e da patetice universais no instante em que o fotógrafo fez clique.

Duvido que no momento exista país mais ridículo e ridicularizado que o Bolsonistão. Como somos um povo gozador, suspeito que só conseguimos sobreviver até agora aos fatos inacreditáveis de nosso dia a dia graças, exclusivamente, ao nosso bem-humorado estoicismo.

Dia desses, um dos personagens do chargista André Dahmer acusou seu interlocutor de não ser “lunático o suficiente para ganhar um cargo no governo”. Em vez de lunático, o “malvado” poderia ter dito: mentiroso, ignorante, semianalfabeto, corrupto, miliciano, evangélico. Ou, simplesmente, militar da reserva.

Bolsonaro escalou militares da reserva cuidando de escolas, do INSS, como se o programa prioritário de seu governo fosse punir servidores públicos e dar emprego aos colegas de farda. Se bem que ainda melhor do que ser oficial da reserva e ganhar uma boquinha no serviço público é ser filha de militar com pensão vitalícia. Uma delas embolsou em dezembro R$ 537 mil.

Prossigamos. Mentiroso é o que mais tem entre os áulicos do capitão Jair. Por osmose ou sabujice, eles distorcem fatos e números, reescrevem a história, e nem se avexam de atribuir à atual administração obras de governos anteriores. O ministro estratosférico Marcos Pontes, coonestado pelo vice Mourão, não exaltou a inauguração da nova Estação Antártica Comandante Ferraz como um projeto do governo Bolsonaro? Quando o presidente tomou posse, as obras da Estação – iniciadas ainda no governo Dilma – já estavam nos finalmentes.

Adriana Fernandes* - Quem compra o Brasil?

- O Estado de S.Paulo

Investidores gostam de segurança. E eles estão cada vez mais atentos

O assustador episódio do vídeo com a fala de inspiração nazista do agora demitido secretário de Cultura Roberto Alvim mostra que a melhora econômica de um País não é suficiente e não pode servir de escudo para aberrações em outras áreas do governo.

Não há como negar que o vídeo, que levou o presidente Jair Bolsonaro a demitir o seu auxiliar e provocou tanta indignação (inclusive de apoiadores do próprio governo), manchou ainda mais a imagem do País.

É bem verdade que a visão do mundo sobre Brasil já era ruim por diversas razões: corrupção, violência nas grandes cidades, política ambiental desastrosa... Mas ficou muito pior nesta sexta-feira depois da repercussão do vídeo de Roberto Alvim que parafraseia o ministro da Propaganda de Adolf Hitler.

Choca pensar que uma pessoa com esse perfil estava ocupando um cargo importante na área cultural no governo e sendo pago pelo contribuinte brasileiro.

É verdade que indicadores econômicos estão melhores, depois de um período longo de recessão. Uma reforma robusta da Previdência foi aprovada, os juros caíram de forma significativa, o crédito aumentando e a atividade econômica apontando uma luz no caminho até agora titubeante da recuperação. Outras reformas estão no Congresso para serem aprovadas.

Marcos Guterman* - Goebbels assinaria embaixo discurso de ex-secretário

- O Estado de S. Paulo

Não será surpresa se a atenção da opinião pública se concentrar no tal parágrafo inspirado em Goebbels como prova definitiva, para alguns, do “nazismo” latente do governo. O problema, contudo, não é o trecho em questão, mas todo o discurso. Do início ao fim, quase todas as ideias ali contidas são as mesmas que integraram a doutrina da maioria dos regimes ditatoriais de perfil totalitário ao longo da história contemporânea, inclusive o nazista.

A ideia da elaboração de uma “arte nacional, capaz de encarnar simbolicamente os anseios da maioria da população”, está na essência do controle político e social acalentado por qualquer ditadura totalitária. Nesse modelo, será “nacional” somente aquilo que obedecer aos critérios estabelecidos pelo Estado; logo, tudo o que não se enquadrar nisso será “arte degenerada”, como as autoridades nazistas qualificaram as obras produzidas por artistas que o Estado havia classificado como inimigos. Levado ao extremo, tal programa violenta de forma brutal a diversidade cultural, sem a qual não se pode falar em democracia.

Alvim declarou que, “quando a cultura adoece, o povo adoece junto”, frase que bem poderia ter sido dita por qualquer ideólogo nazista. No Terceiro Reich, o inimigo era tratado como uma doença que ameaçava “contaminar” o “corpo nacional” por meios insidiosos – sendo a cultura o principal veículo dessa “infecção”.

Marco Aurélio Nogueira* - O desafio de Huck à esquerda

- O Estado de S. Paulo

Apresentador incomoda porque manifesta posições avançadas, faz propostas e busca viabilizar uma ideia de articulação democrática que explora caminhos não usuais

Lula pontificou: “Luciano Huck não representa a centro-esquerda. Representa a Central Globo de Televisão”.

Reverbera o que vários petistas e parte da esquerda falam. Ao mesmo tempo, dá o tom para que se continue com a campanha de desconstrução de Huck.

É do jogo. Lula faz o que dele muitos esperam. Quer limpar a área, não ser desafiado, fazer com que as coisas girem em torno dele. Sua frase sobre Huck pode até mesmo ser um chega-prá-lá no governador Flavio Dino (MA), que andou conversando com o apresentador dias atrás.

Chama mais atenção a conduta dos que seguem cegamente a catilinária lulista. Destruir Huck tornou-se a diversão preferida de tantos que se proclamam democratas. É um veto bem pouco democrático, que parte de supostos falsos, hipócritas, politicamente atrapalhados.

A associação Huck-Globo é uma bobagem oportunista, que intenciona carimbar o apresentador como direitista, um empresário servil aos interesses da “mídia conservadora” e do grande capital. Trabalhar numa empresa significaria, para essa turma, incorporar automaticamente a cultura, o modo de ser, o pensamento e os projetos do empregador.

Acrescente-se a isso a ideia de que Huck não tem experiência, como se antes dele, em 1994, 1998 e 2002, Lula a tivesse, por exemplo. Se o cara é jovem e não integra um partido tido como de esquerda ou centro-esquerda, não presta. Ora…

Marcus Pestana - “Democracia em vertigem”: a arte e a verdade

A arte existe porque a vida não basta (Ferreira Gullar).

A inquietude humana nos leva a buscar permanentemente espaços além do real, a fantasia como realização metafórica de desejos e sonhos, a construção da arte como exercício máximo de criatividade e talento. A arte traduz nossa insatisfação com os limites da vida real e a partir das reflexões e dos sentimentos despertados provoca mudanças de atitude e o impulso de fazer concreto o impossível.

A arte não é uma repetição pobre e monótona da realidade. A boa arte é necessariamente provocativa, desafiadora, imaginativa. A relação entre arte e verdade é complexa, além do que, a verdade depende sempre do olhar e dos valores de quem a aborda. Para Adorno, “a arte é a magia livre da mentira de ser verdade”. Já o poeta Manoel de Barros brincou certa vez: “Noventa por cento do que escrevo é invenção, só dez por cento é mentira”.

Dentro de um país radicalmente polarizado ideologicamente a noção de “guerra cultural” ganha cada vez mais protagonismo. A extrema direita enxerga em tudo a presença de um suposto “marxismo cultural” ligado às construções teóricas do italiano Antonio Gramsci a contaminar a maioria das manifestações artísticas de um esquerdismo atroz. Claro que a arte não é imune e impermeável à luta política de seu tempo. Mas toda a tentativa de instrumentalizar a arte, através do didatismo político ou do proselitismo ideológico, fracassou, já que produz arte de baixíssima qualidade. Nada é mais chato e ineficaz do que um livro, um filme ou um poema panfletário. A boa arte é necessariamente sutil, ou quando agressiva, deve ser esteticamente bem construída.

Julianna Sofia - Bela porcaria

- Folha de S. Paulo

Chefe da Secom precisa abrir lista de clientes e faturamento de suas empresas

Em uma defesa pouco afervorada e deixando a porta aberta para rever as próprias palavras, o presidente Jair Bolsonaro avalia até aqui a performance de seu chefe da Comunicação como excelente. "Se fosse um porcaria, igual alguns que tem por aí, ninguém estaria criticando ele", reagiu, em despautério e com insultuosos ataques, às revelações da Folha de flagrante conflito de interesses na atuação do secretário especial Fabio Wajngarten.

Ato falho ou não, o presidente emprega o mesmo termo que, há menos de um mês, Carlos Bolsonaro usara para descascar o desempenho do secretário. O filho 02 classificou o trabalho da Secom de "uma bela de uma porcaria". Carluxo e o gabinete do ódio, implantado no Palácio do Planalto, se contrapõem aos métodos tradicionais da comunicação institucional, hoje sob o comando de Wajngarten e seu superior, general Luiz Eduardo Ramos.

Demétrio Magnoli* - Haddad e os intermediários

- Folha de S. Paulo

Natureza indireta da interferência do MEC na escolha de livros didáticos não a tornou menos contundente

Fernando Haddad assina coluna na Folha, mas terceiriza a assinatura de cartas que escreve ao Painel do Leitor. Na cartinha dirigida a mim (13/1), Nunzio Haddad Briguglio simula não entender o que escrevi (em 11/1), desafiando-me a exibir um caso de ingerência do MEC na seleção de livros didáticos para a compra pública federal. Ofereço-lhe duas respostas: 1) Sob os governos do PT, o MEC interferiu em todos os processos de seleção; 2) Até onde sei, o MEC nunca vetou explícita e diretamente um livro específico.

O truque da cartinha firmada por intermediário tem finalidade óbvia: dependendo das circunstâncias, Haddad pode assumir ou renegar a responsabilidade pelo texto. Na coluna, descrevi a estratégia pela qual, indiretamente, o MEC passou a “esculpir as narrativas pedagógicas”. Expliquei que os agentes da seleção são comissões universitárias de “especialistas” colonizadas por professores-ativistas. Como no caso prosaico da cartinha, a intermediação desempenha seu papel, isentando o governo da função de promover a censura ideológica direta. Nunzio Briguglio, um jornalista experiente, sabe ler —mas ganha para escrever o que lhe solicitam.

A natureza indireta da interferência do MEC não a tornou menos contundente. No alvorecer da “era lulopetista”, em março de 2004, um parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE) estabeleceu uma série de “princípios” a serem seguidos pelas escolas, entre os quais “o fortalecimento de identidades e de direitos”. Segundo o texto, tal princípio “deve orientar para o esclarecimento a respeito de equívocos quanto a uma identidade humana universal”. Aí, na linguagem hermética típica das burocracias, encontra-se a semente de um programa político-pedagógico.

Mario Sergio Conti – Autocrítica cara-pálida

- Folha de S. Paulo / Ilustrada

No livro 'Por Que Falhamos - O Brasil de 1992 a 2018', senador acerta contas com a política democrata e progressista

Cristovam Buarque é um homem honrado. Ao ver uma foto de Lula com crianças em Toritama, Pernambuco, ele foi até lá. Quis conhecer aquelas meninas e meninos descalços e sem camisa, apartados do presidente por uma cerca de arame farpado. Um ano antes, em 2004, Lula o demitira, pelo telefone, do Ministério da Educação.

Visitou as crianças e falou com pais e professoras. Esteve na escola onde fazia um calor dos diabos. Viu o chão de terra batida, as carteiras desconfortáveis, a poeira, a pedagogia ineficaz. Escreveu uma carta a Lula contando o que vira.

Disse ao presidente que ele “não era culpado da tragédia que observei, mas seria se, uma década depois, a situação não melhorasse”. Cristovam, que assumira sua cadeira no Senado, deu-lhe também ideias para melhorar a educação em Toritama e em todo o Brasil.

Voltou lá dez anos depois, em 2015. Nenhuma criança que conhecera terminou a escola. Ticiana teve um filho aos 16 anos. Cambiteiro, vigilante, foi assassinado aos 19. Rubinho, que não aprendeu a ler, virou pai aos 17. Diego foi esfaqueado, fugiu do hospital, sumiu. A escola seguia péssima.

A narrativa das visitas a crianças e jovens pobres de dar dó rende as melhores páginas de “Por Que Falhamos - O Brasil de 1992 a 2018” (Tema Editorial, 89 págs.), o novo livro de Cristovam Buarque.

Elas servem para lembrar o objetivo clássico da política: harmonizar a vida em sociedade. E, a partir da Revolução Francesa: agir para que os cidadãos sejam livres, iguais e fraternos.

Música | Maria Creuza, Vinicius & Toquinho - Irene

Poesia | João Cabral de Melo Neto - Questão de Pontuação

Todo mundo aceita que ao homem
cabe pontuar a própria vida:
que viva em ponto de exclamação
(dizem: tem alma dionisíaca);

viva em ponto de interrogação
(foi filosofia, ora é poesia);
viva equilibrando-se entre vírgulas
e sem pontuação (na política):

o homem só não aceita do homem
que use a só pontuação fatal:
que use, na frase que ele vive
o inevitável ponto final.