- Financial Times / Folha de S. Paulo
A atual pandemia da Covid-19 abre a possibilidade de um choque transformador para as sociedades ocidentais
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“Está claro, então, que a melhor parceria em um Estado é aquela que opera através da classe média, e esses Estados em que a classe média é maior e mais forte, se possível, que as outras duas classes somadas, ou pelo menos, em que ela é mais forte que qualquer das outras duas isoladamente, terão todas as chances de ter uma Constituição bem gerida.”
“Política”, de Aristóteles.
A Covid-19 está sendo um choque global. Mas será um choque transformador? A resposta é que ela pode ser um evento transformador para várias sociedades ocidentais, especialmente os Estados Unidos e o Reino Unido.
Para as democracias liberais ocidentais, a era do pós-Segunda Guerra Mundial pode ser dividida em dois sub-períodos. O primeiro, mais ou menos entre 1945 e 1970, foi a era de um consenso “social democrata”, ou, como os americanos talvez dissessem, um consenso “New Deal”. A segunda, que começou por volta de 1980, foi a do “mercado livre global”, ou “o consenso Thatcher-Reagan”.
Entre esses dois períodos houve um interregno –a década de 1970, marcada pela inflação alta. Parece que agora estamos vivendo outro interregno, que começou com a crise financeira global.
Essa crise prejudicou a ideologia do livre mercado. Mas esforços valorosos foram feitos em todo o mundo ocidental para restaurar o “ancien régime”, com o resgate do sistema financeiro, a adoção de regulamentação financeira mais rigorosa e a austeridade fiscal.
O coronavírus expôs fragilidades de nosso modelo econômico e social.
Na verdade, a ascensão do nacionalismo populista veio depois desta tentativa de restauração. Com seu protecionismo e bilateralismo, sua promessa de preservar a previdência social e a sua ênfase inicial (desde então esquecida) sobre a reconstrução da infraestrutura, Donald Trump tornou-se líder de seu partido justamente por não ser um republicano tradicional, defensor do livre mercado.
Com sua promessa de ajudar as regiões mais pobres e suas referências favoráveis ao "New Deal" de Franklin Delano Roosevelt, também Boris Johnson vem indicando um novo rumo a seguir. Esses líderes enterraram Ronald Reagan e Margaret Thatcher.
O coronavírus, agora, causou um retorno ainda mais dramático ao papel central do governo do que o que se viu com a crise financeira. Isso pode assinalar o fim do segundo período de transição do pós-guerra.
Em torno de qual ideia a política, a sociedade e a economia podem girar agora? A resposta deveria ser a cidadania, um conceito que remete às cidades-Estado dos gregos e de Roma. Isso é mais do que uma mera ideia política.
Como Aristóteles também disse, “o homem é um animal político”. Para ele, só somos plenamente humanos quando somos participantes ativos em uma comunidade política.
Em uma democracia, as pessoas não são apenas consumidores, trabalhadores, empresários, poupadores ou investidores. Somos cidadãos. Esse é o elo que vincula as pessoas em uma empreitada comum.