• O doleiro Alberto Youssef disse à Justiça que Lula e Dilma sabiam do esquema de corrupção na Petrobras. Agora, e-mails encontrados pela Polícia Federal em computadores do Planalto mostram que eles poderiam ter interrompido o propinoduto, mas, por ação ou omissão, impediram a investigação sobre os desvios
Robson Bonin e Hugo Marques – Veja
Antes de se revelar o pivô do petrolão, o maior escândalo de corrupção da história contemporânea brasileira, o engenheiro Paulo Roberto Costa era conhecido por uma característica marcante. Ele era controlador e centralizador compulsivo. À frente da diretoria de Abastecimento e Refino da Petrobras, nenhum negócio prosperava sem seu aval e supervisão direta. Como diz o ditado popular, ele parecia ser o dono dos bois, tamanha a dedicação. De certa forma, era o dono — ou, mais exatamente, um dos donos —, pois já se comprometeu a devolver aos cofres públicos 23 milhões de dólares dos não se sabe quantos milhões que enfiou no próprio bolso como o operador da rede de crimes que está sendo desvendada pela Operação Lava-Jato.
Foi com a atenção aguçada de quem cuida dos próprios interesses e dos seus sócios que, em 29 de setembro de 2009, Paulo Roberto Costa decidiu agir para impedir que secassem as principais fontes de dinheiro do esquema que ele comandava na Petrobras. Costa sentou-se diante de seu computador no 19º andar da sede da Petrobras. no Rio de Janeiro, abriu o programa de e-mail e pôs-se a compor uma mensagem que começava assim:
"Senhora ministra Dilma Vana Rousseff...".
O que se segue não teria nenhum significado mais profundo caso fosse rotina um diretor da Petrobras se reportar à ministra-chefe da Casa Civil sobre assuntos da empresa. Não é rotina. Foi uma atitude inusitada. Uma ousadia.
Paulo Roberto Costa tomou a liberdade de passar por cima de toda a hierarquia da Petrobras para advertir o Palácio do Planalto que. por ter encontrado irregularidades pelo terceiro ano consecutivo, o Tribunal de Contas da União (TCU) havia recomendado ao Congresso a imediata paralisação de três grandes obras da estatal — a construção e a modernização das refinarias Abreu e Lima, em Pernambuco, e Getúlio Vargas, no Paraná, e do terminal do Porto de Barra do Riacho, no Espírito Santo. Assim, como quem não quer nada. mas querendo. Paulo Roberto Costa, na mensagem à senhora ministra Dilma Vana Rousseff. lembra que no ano de 2007 houve solução política para contornar as decisões do TCU e da Comissão Mista de Orçamento do Congresso Nacional.
Também não haveria por que levantar suspeitas se o ousado diretor da Petrobras que mandou mensagem para a então ministra Dilma Rousseff fosse um daqueles barnabés convictos, um "caxias"". como se dizia antes nas escolas e no Exército de alguém disposto a arriscar a própria pele em benefício da pátria. Em absoluto, não foi o caso. Paulo Roberto Costa, conforme ele mesmo confessou à Justiça, foi colocado na Petrobras em 2004. portanto cinco anos antes de mandar a mensagem para Dilma. com o objetivo de montar um esquema de desvio de dinheiro para políticos dos partidos de sustentação do governo do PT. Ele estava ansioso e preocupado com a possibilidade de o dinheiro sujo parar de jorrar. É crivei imaginar que em 29 de setembro de 2009 Paulo Roberto Costa, em uma transformação kaíkiana às avessas, acordou um servidor impecável disposto a impedir a paralisação de obras cruciais para o progresso da nação brasileira? É verdade que às vezes a vida imita a arte, mas também não estamos diante de um caso de conversão de um corrupto em um homem honesto da noite para o dia.
O que se tem até aqui, então, pelo encadeamento lógico dos fatos e pelo que já foi revelado pela Operação Lava-Jato. pode ser resumido em quatro pontos principais, sem ser preciso recorrer a nenhuma ilação:
1. Um corrupto foi colocado na Petrobras para montar um esquema de desvio de dinheiro para partidos aliados do governo Lula.
2. O corrupto se mostra muito empenhado em seu ofício, que lhe permite conseguir propinas para os políticos e, ao mesmo tempo, enriquecer.
3. O corrupto se preocupa com a decisão do TCU e do Congresso de mandar cortar os repasses de recursos para as obras das quais ele, o corrupto, tirava o dinheiro para manter de pé o esquema.
4. O corrupto acha melhor alertar as altas autoridades do Palácio do Planalto sobre a iminência da interrupção do dinheiro público que alimentava o propinoduto sob sua responsabilidade direta na Petrobras.
Como se viu. não é disparatado o ditado popular que diz: "Para viver fora da lei, é preciso ser honesto". Portanto, enquanto diretor comprometido com um esquema de propinas, Paulo Roberto Costa foi honesto em dar o alerta geral de que ia faltar dinheiro público na engrenagem da corrupção.
VEJA relatou esses fatos e a interpretação que faz deles a assessores de Dilma no Palácio do Planalto e pediu uma resposta. Ela veio por e-mail: "Em 2009, a Casa Civil era responsável pela coordenação do PAC. Assim, os relatórios e acórdãos do TCU relativos às obras deste programa eram sistematicamente enviados pelo próprio tribunal para conhecimento da Casa Civil. Após receber do Congresso Nacional (em agosto de 2009), do TCU (em 29 de setembro de 2009) e da Petrobras (em 29 de setembro de 2009) as informações sobre eventuais problemas nas obras da Refinaria Abreu e Lima, a Casa Civil tomou as seguintes medidas: encaminhamento da matéria à CGU, em setembro de 2009, para as providências cabíveis; determinacão para que o grupo de acompanhamento do PAC procedesse ao exame do relatório, em conjunto com o Ministério de Minas e Energia e a Petrobras: e a participação em reunião de trabalho entre representantes do TCU, da Comissão Mista de Orçamento, da Petrobras e do MME. após a inclusão da determinação de suspensão das obras da Refinaria Abreu e Lima no Orçamento de 2010. aprovado pelo Congresso. Houve consenso sobre a viabilidade da regularização das pendências identificadas pelo TCU nas obras da Refinaria Abreu e Lima".
Dilma ignorou as perguntas de VEJA sobre o tema principal: a mensagem de Paulo Roberto Costa para ela. Não deu nenhuma explicação. Apreendida pela Polícia Federal nos computadores do Palácio do Planalto em uma operação de corrupção, a mensagem não pode ser varrida para debaixo do tapete. Paulo Roberto se dirige a Dilma Rousseff. na ocasião também presidente do conselho de administração da Petrobras. Ele, o corrupto atualmente preso e depondo em regime de delação premiada, relata problemas e propõe solução política. E qual é a solução política? Qualquer uma que fizesse o dinheiro público continuar jorrando para as obras e, consequentemente, para o esquema de corrupção sem que a Petrobras tivesse de explicar ao TCU e ao Congresso a origem das irregularidades. Ou seja, qualquer uma capaz de impedir a abertura da caixa-preta dos negócios que Paulo Roberto Costa tocava.
A luz de tudo o que se sabe hoje sobre a corrupção na Petrobras no governo Lula, os fatos narrados até aqui pintam um quadro de extrema gravidade. Do ponto de vista da lógica mais básica, a única saída para Lula e Dilma é a mais clássica de todas as desculpas: o desconhecimento total do esquema de Paulo Roberto Costa na Petrobras. onde ele atuou honestamente fora da lei por oito anos — com Lula ou Dilma na Presidência da República. Essa saída tem problemas. Primeiro, o doleiro Alberto Youssef, o caixa do petrolão, disse à Justiça que Lula e Dilma sabiam de tudo. O depoimento do doleiro foi dado no regime de delação premiada, o que coloca sobre os ombros dele o ônus da prova. Se mentir, ele se complica e não terá acesso aos benefícios previstos em lei para os acusados que colaboram com a Justiça. No caso de Youssef, a delação premiada, se homologada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), é essencial. Sem ela. só pelos crimes já capitulados, ele pode ser condenado a 300 anos de prisão. Youssef pode ter mentido mesmo assim? Pode. mas é altamente improvável que ele se tenha colocado voluntariamente em situação de tão alto risco. Segundo. Lula e Dilma teriam de ser os mais mal informados personagens da República para não saberem das atividades paralelas de Paulo Roberto Costa.
Lula o chamava carinhosamente de "Paulinho". No dia em que Paulinho mandou a mensagem para a ministra Dilma, Lula estava embarcando para Copenhague, na Dinamarca, para acompanhar a escolha do Rio de Janeiro como sede olímpica de 2016. Quando voltou, o presidente encontrou ainda sem "solução política" o caso da interrupção das obras da Petrobras. Deu-se então o desfecho que. como toda essa história. é suspeito à luz do que se sabe hoje. mas inócuo antes de estourar o esquema do petrolão. Lula se encheu de coragem e. pela primeira vez em uma questão orçamentária, usou seu poder de veto para passar por cima do TCU e do Congresso Nacional, reabrindo os cofres para as obras. Paulinho, claro, deve ter ficado felicíssimo com a solução dada pelo presidente. A Petrobras deu uma banana para os órgãos que pretendiam fiscalizá-la mais a fundo ou, pelo menos, receber uma mísera explicação sobre as irregularidades encontradas e como a empresa pretendia corrigi-las e impedir que viessem a ocorrer novamente no futuro.
O veto presidencial pôs uma pedra sobre o problema e ainda deu ensejo a uma mudança na lei restringindo os poderes da Comissão de Orçamento do Congresso, que só pode agora paralisar obras suspeitas caso isso não provoque "impactos sociais, econômicos e ambientais". Os corruptos do petrolão agradeceram a iniciativa, pois, e isso é incrível, a mudança na lei feita por Lula os favoreceu diretamente. Pode ser apenas mais um caso da implacável sina dos efeitos indesejáveis e imprevistos. É ótimo que obras públicas bilionárias não mais sejam paralisadas por pequenas irregularidades flagradas pelo TCU — mas, obviamente, é totalmente inaceitável que a nova lei não embuta salvaguardas para evitar o favorecimento de corruptos. Castigo mesmo para os desonestos seria obrigá-los a fazer as obras, sem prejuízo das punições a que se sujeitem por desvio de dinheiro e outros crimes.
Durante oito meses, a equipe do ministro Aroldo Cedraz, que assume a presidência da corte em dezembro, se debruçou sobre os custos de Abreu e Lima. A construção da refinaria estava ainda na fase de terraplenagem, mas os indícios de superfaturamento já chegavam aos 100 milhões de reais. A Petrobras, porém, se recusava a esclarecer as dúvidas. O ministro chegou a convocar o então presidente da companhia, Sergio Gabrielli, para explicar o motivo do boicote. Depois de lembrado que poderia sofrer sanções se continuasse a se recusar a prestar esclarecimentos, Gabrielli entregou 10 000 folhas de planilhas ao tribunal. Para a surpresa dos técnicos, as informações não passavam de dados sem nenhuma relevância.
Em uma derradeira tentativa, os técnicos do tribunal realizaram uma diligência na Petrobras. Descobriram algo ainda mais inacreditável sobre os parâmetros praticados para calcular o preço das obras: na maior estatal brasileira, não havia parâmetro algum. Os valores dos serviços eram fixados aleatoriamente por um grupo restrito de pessoas que se reunia numa sala secreta, no 19e andar do edifício-sede da empresa, no Rio de Janeiro. O procedimento normal seria a Petrobras realizar um levantamento prévio no mercado para ter um referencial de custos. Mas nem os servidores da área de licitação tinham acesso ao que era decidido pela diretoria. Diante desse enigma, os técnicos anotaram no relatório: "Nenhum dirigente da Petrobras ou qualquer outra pessoa que não trabalhe naquele andar tem informações sobre a estimativa secreta (...) É uma completa despreocupação com custos". Não restava ao TCU outra alternativa senão recomendar à Comissão Mista de Orçamento do Congresso a paralisação imediata das obras. Quem despachava na sala secreta do 199 andar era o diretor Paulo Roberto Costa. Foi de um dos computadores daquele andar que partiu a mensagem de alerta para a ministra Dilma. A conclusão a que esses fatos conduzem é de assustadora simplicidade. Por razões que precisam ser diligentemente apuradas, Lula e Dilma usaram seu poder — ou deixaram de usá-lo — de uma maneira que, ao fim e ao cabo, favoreceu o grupo que extraía propinas de obras da Petrobras. É grave se o fizeram por desinformação sobre o que se passava nas entranhas da Petrobras. É indesculpável se delegaram a outros a apuração das denúncias — e nunca cobraram os resultados. Qualquer outra hipótese pode levar a consequências impensáveis.
Os comprometidos e os inconfiáveis
O advogado Claudismar Zupiroli era encarregado da defesa dos gestores da Petrobras quando o Tribunal de Contas da União começou a detectar as primeiras irregularidades na obra da Refinaria Abreu e Lima. Na mensagem apreendida nos computadores do Planalto, ele apresenta a Gilberto Carvalho, então chefe de gabinete do presidente Lula. uma extraordinária solução para os problemas do governo: indicar para o TCU pessoas "comprometidas" ideologicamente com o governo - e recomenda Erenice Guerra, então braço-direito de Dilma Rousseff na Casa Civil. Erenice Guerra seria hoje ministra de Contas se não fosse a descoberta de que ela usava o cargo no Palácio do Planalto para facilitar negócios que beneficiavam sua família. Os ministros Augusto Nardes, Aroldo Cedraz. Raimundo Carreiro e José Jorge, segundo ele, não se identificavam com as "práticas ousadas de aplicação de recursos que marcam este governo"". Nomear aliados poderia evitar uma futura "inelegibilidade de companheiros(as) em face da rejeição de contas"
A corrupção institucionalizada
O crime
Em acordo de delação com a Justiça, Paulo Roberto Costa confessa seu envolvimento e revela que assumiu cargo na Petrobras, em 2004, já com o objetivo de operar o esquema de corrupção envolvendo políticos aliados ao governo Lula.
O alerta
Em setembro de 2009, o Tribunal de Contas da União detectou irregularidades na Refinaria Abreu e Lima, alertou sobre indícios de superfaturamento e manipulação de preços e pediu a paralisação da obra.
A omissão
No mesmo dia, Paulo Roberto Costa envia uma mensagem a Dilma Rousseff, no Planalto, preocupado com a decisão do Tribunal de Contas. Recomenda, incluindo parecer jurídico, uma solução política para o problema. A única ação concreta da ministra foi pedir à CGU que investigasse as denúncias
A ação
0 presidente Lula vetou a decisão do Congresso de paralisar as obras com suspeita de irregularidades e, assim, permitiu que o esquema continuasse operando e desviando dinheiro aos partidos do governo
A "investigação"
Em 2012, três anos depois, a CGU anuncia o resultado da investigação iniciada em 2009 a pedido de Dilma: não investigou nada devido às divergências de procedimento do TCU
A revelação
Em acordo de delação, o doleiro Alberto Youssef confessa seus crimes e diz à Polícia Federal e ao Ministério Público que Lula e Dilma sabiam de tudo