sábado, 3 de abril de 2021

Ascânio Seleme - Discurso camuflado

- O Globo

De onde o general Braga Netto tirou que as Forças Armadas devem proteger a democracia e a liberdade do povo? Foi o que ele disse no discurso de posse dos novos comandantes das Forças Armadas. “Marinha, Exército e Aeronáutica se mantêm fiéis às suas missões constitucionais de defender a pátria, os poderes constitucionais e as liberdades democráticas”, acrescentando em seguida: “Neste dia histórico, reforço que o maior patrimônio de uma Nação é a garantia da democracia e da liberdade de seu povo”.

Pode-se até aceitar como razoável que Exército, Marinha e Aeronáutica trabalhem pela manutenção da democracia, mas não é este o seu papel constitucional. O artigo 142 da Constituição estabelece que as Forças Armadas destinam-se à defesa da pátria, dos poderes constitucionais, da lei e da ordem. Não faz, em tempo ou canto algum, referência a garantias da liberdade do povo brasileiro. Nem menção à democracia. Quem cuida do povo e do regime de governo são os poderes constituídos, não as Forças Armadas.

Parecia pegadinha, ou talvez fosse apenas mais um carinho no chefe. Sabe-se muito bem do apreço exagerado do general pelo capitão. O fato é que Braga Netto usou democracia e liberdade do povo com a mesma lógica que a sua colega Damares Alves tratou dos direitos humanos na terça-feira passada. Damares foi explícita. Enviou ofício ao procurador Augusto Aras pedindo “providências” contra supostos abusos na decretação de restrições de estados e municípios para conter a pandemia de coronavírus.

Não ria, a ministra acha que é crime contra os direitos humanos impedir as pessoas de irem a restaurante, praia ou clube. Braga ficou na retórica, mas seu discurso pode ser entendido da mesma maneira. Como se dissesse estar pronto para empregar as Forças Armadas se a liberdade do povo de ir a restaurante, praia ou clube for ameaçada.

Pablo Ortellado - O problema agora são as PMs

- O Globo

A demissão do ministro Fernando Azevedo e dos três comandantes militares mostrou que a ascendência do presidente sobre as Forças Armadas é menor do que Bolsonaro fazia crer.

O número de militares ocupando cargos no governo sugeria um grande engajamento no projeto bolsonarista. Um terço dos ministros de Estado é militar e, além deles, há pelo menos 6 mil militares com cargos civis no governo, metade deles na ativa. Sessenta e um por cento das estatais direta ou indiretamente ligadas à União são controladas por militares.

Apesar disso, as demissões sinalizaram um inequívoco distanciamento de Bolsonaro, senão do meio militar como um todo, pelo menos do alto escalão.

Permanece indefinida, porém, a extensão da influência de Bolsonaro sobre as polícias, sobretudo sobre as polícias militares.

Desde que entrou na política, Bolsonaro tem dispensado especial atenção às demandas corporativas das polícias militares e, uma vez no governo, tem oferecido tratamento diferenciado ao setor, como se viu na reforma da Previdência e nas mudanças na PEC Emergencial. Bolsonaro tem também prestigiado formaturas e cerimônias das PMs, o que é visto como grande deferência.

Ricardo Noblat - Outubro de 2022 é logo ali, mas parece ainda tão distante

- Blog do Noblat / Veja

Silêncio como resposta

Fora países de regime totalitário como China, Rússia, Coreia do Norte e Cuba, por exemplo, onde mais seria possível ao presidente da República ou ao chefe de Estado demitir o ministro da Defesa e substituir os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica sem dar nenhuma satisfação aos seus governados?

Foi o que aconteceu por aqui esta semana. Cobra-se desde então que o presidente Jair Bolsonaro explique por que assim de repente, sem prévio aviso, despachou o general Fernando Azevedo e Silva, da Defesa, durante uma conversa de cinco minutos, e forçou em seguida a saída dos comandantes das Forças Armadas.

A resposta tem sido o silêncio. Na melhor tradição das ditaduras, aconteceu uma troca de peças servida como reforma ministerial  e Bolsonaro se recusa a dizer por quê. O ex-presidente Lula afirmou que não vê nada demais nisso. Mas sua opinião não deve ser lida ao pé da letra. Lula quer que Bolsonaro se estrepe.

Tudo o que se sabe a respeito até agora deriva de informações vazadas a conta-gotas por gente próxima a Bolsonaro, e de deduções feitas por quem se dedica a analisar a trajetória do governo. Desconsidera-se a força do acaso na História. O ser humano depende de narrativas para entender o mundo.

João Gabriel de Lima - A direita sem partido

- O Estado de S. Paulo

A maior parte dos países tem um ‘partidão’ à esquerda e um à direita. Brasil é caso peculiar

Partidos políticos não surgem do nada. Na Europa, as principais siglas se formaram a partir de núcleos já estabelecidos na sociedade civil. Os grandes partidos de centro-esquerda – como o trabalhista inglês, o social-democrata alemão e o socialista francês – vieram de sindicatos. Os da centro-direita nasceram de associações religiosas ou assistenciais. Alguns deles compartilham o nome “democrata cristão”. 

Conservadores e liberais de um lado, social-democratas e socialistas do outro. Os quatro campos defendem valores legítimos, criando o debate que alimenta as democracias. A maior parte dos países tem um “partidão” à esquerda e outro à direita. Tais siglas majoritárias protegem contra os extremistas – os quais, nos tempos da Guerra Fria, costumavam vir das esquerdas, e hoje se concentram à direita. 

O Brasil é um caso peculiar, retratado no excelente livro Partisans, anti-partisans and non-partisans, dos cientistas políticos Cesar Zucco e David Samuels. O trabalho, um dos mais citados em conferências e artigos sobre o Brasil, mostra que nossa democracia não desenvolveu uma identidade partidária forte à direita. Os autores demonstram que a disputa no Brasil é entre petismo e antipetismo. Cada uma dessas forças mobiliza entre 20% e 30% do eleitorado. Segundo Cesar Zucco, personagem do minipodcast da semana, a direita brasileira não se define por uma adesão, mas por uma rejeição. É uma direita sem partido. 

Miguel Reale Júnior* - Aprendiz de feiticeiro

- O Estado de S. Paulo

Mais poder para quê? Para confrontos e mobilização com ‘seu’ exército? Não haverá!

Entre os motivos por que alertava para não se votar em Bolsonaro, eu ressaltava, nesta página de outubro de 2018, ser o candidato pessoa que não tivera ao longo da vida relações sociais ou políticas, sendo um outsider, sem densidade e compreensão da pluralidade própria do nosso mundo e para quem o Brasil, na sua complexidade, era visto como um quartel.

No quartel não há dissidentes ou debate livre entre membros de escalões diferentes, pois, como ensina o Manual de Campanha – Ordem Unida do Exército, 4.ª edição, 2019, as principais características de uma instituição militar são a disciplina e a coesão, entendida a disciplina como o predomínio da ordem e da obediência, sendo esta pronta, espontânea e entusiástica.

Bolsonaro, formatado na ordem unida, transformou o Ministério da Saúde num quartel, com ministro general e secretário executivo coronel, imperando o que haviam aprendido na caserna: disciplina, ou seja, um manda e o outro obedece às ordens superiores, com submissão cega às determinações do presidente Bolsonaro. Conclusão: nem no prédio do ministério se usavam máscaras.

Hélio Schwartsman - Receita de instabilidade

- Folha de S. Paulo

Como em Israel, fragmentação de partidos no Brasil gera coalizões instáveis

Há uma semelhança importante entre Brasil e Israel. Gostaria que fosse o ritmo de vacinação contra a Covid-19 ou a capacidade de produzir tecnologias inovadoras do país médio-oriental, mas não. O que nos une é o sistema eleitoral —ambos adotamos o voto proporcional puro em âmbito estadual (Brasil) ou nacional (Israel)—, cuja consequência mais notável é a fragmentação partidária.

No Brasil, há 28 partidos políticos com representação no Congresso, sendo que o maior deles, o PT, tem pouco mais de 10% do total de cadeiras na Câmara. Em Israel, são 13, apesar de uma cláusula de barreira que exige ao menos 3,25% dos votos para ter assento no Knesset, o parlamento local. O mais votado deles, o Likud, do premiê Binyamin Netanyahu, conseguiu 36 vagas, bem menos que as 61 necessárias para assegurar a formação de um governo.

Alvaro Costa e Silva - Um exército pra chamar de meu

- Folha de S. Paulo

Na milícia de Bolsonaro, só há lugar para um único general: ele

Dilma era mais simples em suas idiossincrasias: queria ser chamada de presidenta. Bolsonaro vai exigir dos novos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica —depois que os anteriores bateram em retirada— que seja tratado como comandante-em-chefe das Forças Armadas. É mais um passo no projeto "Um exército pra chamar de meu", que já conta com adesão de parte das Polícias Militares.

Delírio arrogante, mas ainda modesto, de quem pisa devagar para reconhecer o terreno minado. Quem sabe no futuro ele não obrigue a população a tratá-lo por Generalíssimo, como Francisco Franco na Espanha. Capitaníssimo é opção de espírito mui pobre, além de lembrar um passado a ser esquecido, envolvendo atos de indisciplina e deslealdade com superiores hierárquicos e prisão durante 15 dias.

Cristina Serra - Militares e o crime de lesa-pátria

- Folha de S. Paulo

História nos cobrará uma Comissão Nacional da Verdade para este genocídio

A semana começou com tensão de fim do mundo e terminou mais calma em Brasília, depois da troca do ministro da Defesa e dos comandantes das Forças Armadas. Será preciso, contudo, monitorar os sismógrafos para aferir se o terreno está, de fato, acomodado e qual a extensão das fissuras resultantes do abalo sísmico no planalto.

As versões que vazaram dão conta de que o ex-ministro Fernando Azevedo e o ex-comandante Pujol teriam resistido a arroubos extremistas do genocida, seriam avessos ao uso político das Forças Armadas e, por isso, teriam perdido seus postos. Ora, mas o que fazem os militares senão política desde pelo menos 2015, com Villas Bôas no comando do Exército? O que foi o tuíte ao STF (aprovado pelo Alto Comando) na véspera da votação do habeas corpus de Lula?

Demétrio Magnoli – A disciplina da desobediência

- Folha de S. Paulo

Comandantes deram um ‘não’ a Bolsonaro, batendo continência à Constituição

A história pode ser contada a partir de uma quinta 12, em novembro do ano passado, quando o comandante do Exército, general Edson Pujol, disse em palestra que os militares da ativa devem ficar fora da política. Na sequência, o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, divulgou nota coassinada pelos três comandantes militares reafirmando as palavras de Pujol, mas ressalvando que elas não destoavam “do entendimento do presidente da República”. A demissão coletiva dos comandantes, dias atrás, impugna o intento de uma conciliação impossível.

Os eventos do final de 2020 são marcos secundários numa história mais antiga que deve ser narrada a partir de agosto de 2015, quando uma chusma de apoiadores do então deputado Jair Bolsonaro montou acampamento diante do Comando Militar do Sudeste, em São Paulo, para pedir “intervenção militar constitucional”. Na época, o general Villas Bôas, então comandante do Exército, que trafegava diante das barracas do autointitulado Posto Revolucionário 1 no trajeto para sua residência, ironizou a demanda: “Quero entender como se faz”. Nos anos seguintes, a ironia secou, dando lugar à aventura da adesão de um grupo de generais à candidatura de Bolsonaro.

Carlos Alberto Sardenberg - A social-democracia nos EUA

- O Globo

Winston Churchill dizia que a democracia é a pior forma de governo, exceto todas as outras.

O presidente da China, Xi Jinping, acredita que o “modelo chinês” atual é a prova de que há algo superior à democracia ocidental. Promove crescimento acelerado e todo ano tira milhões de pessoas da pobreza.

Já o presidente Joe Biden está lançando um enorme programa social-democrata — investimentos públicos financiados com aumento de impostos — para provar que é possível combinar crescimento e justiça social em ambiente democrático.

O leitor terá notado que há aqui alguma confusão entre política e economia. É que, na época de Churchill, se entendia que democracia só combinava com capitalismo, com sua liberdade de empreender.

E, claro, socialismo só podia combinar com ditadura.

Tem outra frase de Churchill sobre isso: “O vício inerente ao capitalismo é a distribuição desigual de benesses; o do socialismo é a distribuição por igual das misérias”.

Acontece que a China está ficando rica, sendo uma ditadura política, com uma economia meio estatal (socialista), meio privada. Na verdade, hoje, a maior parte do PIB chinês é produzida pelo setor privado.

Claudio Ferraz - O desmantelamento da capacidade estatal

- O Globo

Uma das principais características do processo de desenvolvimento econômico é a complementaridade entre a evolução da economia de mercado e da capacidade estatal. O trabalho original de Charles Tilly, publicado em 1975, narra a evolução de regiões europeias fragmentadas e suas transformações de pequenos feudos a regimes complexos centralizados capazes do prover o monopólio de forças coercitivas.

A principal explicação para essa evolução, de acordo com Tilly, foi a necessidade que os países tinham em financiar suas guerras. Isso gerou investimentos na capacidade de coletar impostos e a formação de burocracias centralizadas.

Mas capacidade estatal não se refere somente à coleta de impostos. O surgimento e a evolução de Estados complexos, com capacidade de garantir direitos de propriedade e prover bens públicos através de burocracia moderna e autônoma, são foco de estudos em ciência política, história, sociologia e economia.

Sergio Amaral* - Mercosul – o começo do fim?

- O Estado de S. Paulo

Seu enfraquecimento põe o Brasil na contramão das tendências do mundo pós-pandemia

A reunião de cúpula do Mercosul realizada recentemente em Assunção era para ser uma confraternização entre amigos e a celebração das conquistas do Tratado de Assunção. Mas não foi. Ao contrário, cedeu lugar à explicitação das divergências entre os sócios sobre a flexibilização do acordo. Uruguai e Brasil a favor, Argentina e Paraguai contra.

Não obstante, haveria muito a comemorar. O Mercosul transformou a fronteira entre Brasil e Argentina de fonte de desconfianças e ameaças recíprocas em espaço de paz e de cooperação. Se olharmos para os conflitos e guerras entre países vizinhos no resto do mundo, esse não será um feito menor.

Ao contrário do senso comum, o comércio e os investimentos aumentaram. Em termos relativos, no entanto, os porcentuais podem ter regredido em decorrência do efeito China, que impactou o intercâmbio com os demais parceiros do Brasil. A taxa de crescimento do comércio Mercosul-China já foi de 18% ao ano, enquanto a do intercâmbio intrabloco não passava de 11%. Na verdade, estávamo-nos integrando com a China, e não entre os países do subcontinente.

Adriana Fernandes - Calamidade a caminho

- O Estado de S. Paulo

Aprovação do Orçamento pode ser a gota d'água para a decretação da medida

 “Decretar a calamidade tira a pressão sobre ele, não acha?”, disparou um executivo do mercado financeiro à coluna ao comentar o fogo amigo extra que Paulo Guedes tem recebido, nos últimos dias, depois que a equipe econômica gritou que o Orçamento aprovado pelo Congresso não fica em pé e que o ministro da Economia foi até o presidente Bolsonaro dizer que a lei é inexequível, com risco de impeachment.

Se a decretação do estado de calamidade já era dada praticamente como certa antes da aprovação do Orçamento, pela gravidade da pandemia, com a lei aprovada com R$ 31 bilhões de emendas parlamentares adicionais sustentadas à base de projeções subestimadas ficou inevitável. Questão de um pouco mais de tempo para o enredo que se desenvolve a trancos e barrancos desde a eleição dos presidentes da Câmara e do Senado.

Marcus Pestana - Orçamento, numa hora dessas?

Vocês poderiam perguntar: o país acuado pelo vírus, pelo desemprego e pela fome e a miséria agravadas, e você vem falar de orçamento?  E se não bastassem os dramas de nossos dias, abre-se a maior crise militar desde 1977.

Mas, por incrível que pareça, a discussão orçamentária tem tudo a ver: investimentos em saúde, financiamento das Forças Armadas, retomada econômica.

Outras vezes, já disse aqui, que a Constituição e o orçamento carregam a alma da democracia. Uma estabelece os limites e a divisão dos poderes do Estado, deveres e direitos dos cidadãos, as regras de convivência na sociedade. O outro, explicita como o dinheiro dos impostos pagos pela população vai ser aplicado. Estabelece a régua e o compasso para a execução das políticas públicas.

Monica de Bolle* - Política econômica para uma Era Pandêmica

- Revista Época

Há um ano havia pouco mais de 132 mil casos confirmados de Covid-19 no mundo e cerca de 5 mil mortes em todo o planeta. Hoje são 125 milhões de casos e as mortes se aproximam de 3 milhões no mundo todo. A economia global perdeu cerca de 8% da renda conjunta de todos os países, sendo que a distribuição de perdas foi determinada, em grande medida, pelo controle da epidemia: países com epidemias descontroladas sofreram mais do que aqueles que souberam agir rápido para conter o desastre humanitário. A inação do G20, grupo que reúne países avançados e emergentes, contribuiu para o quadro desigual, mas os países têm diferentes graus de responsabilidade pelo estrago que os acometeu.

Uma ação global coordenada dos Estados poderia ter contribuído para salvar vidas caso tivesse sido adotada desde o início da crise, reconhecendo que um vírus que cruza fronteiras com tanta facilidade jamais seria contido por meio de ações individuais. No lugar de agir de forma coordenada, os Estados Unidos, em 2020, sob o comando de Donald Trump, decidiram sair da Organização Mundial da Saúde (OMS), enquanto praticamente todos os países membros do G20 impunham medidas de restrição às exportações de equipamentos médicos. Tais restrições desarticularam as cadeias de produção global, afetando a capacidade de resposta à pandemia no mundo todo. A fracassada cooperação nas áreas de saúde pública, comércio e ajuda financeira emergencial ceifou vidas e PIBs. A persistência desse fracasso na cooperação para a distribuição de vacinas continuará a ter um custo elevado.

Entrevista | Rubens Ricupero: ‘Bolsonaro é uma aberração na história’

- Rubens Ricupero, ex-ministro e diplomata

Taisa Szabatura / IstoÉ

Como diplomata e ex-ministro da Fazenda, Rubens Ricupero, 84 anos, testemunhou sete décadas de história do Brasil de uma posição privilegiada. Após terminar a faculdade de Direito, entrou para o Instituto Rio Branco, que forma os funcionários que trabalharão para a política externa do País, e começou a sua carreira no Itamaraty em 1960. Hoje é considerado por seus pares uma enciclopédia, por saber dados e números nacionais de vários períodos de cabeça. Passa a pandemia dando aulas virtuais e trabalha em seu próximo livro sobre a realidade brasileira, ainda sem título definido. Imunizado com a primeira dose da AstraZeneca, observa com espanto os disparates do governo Bolsonaro. Em entrevista à ISTOÉ festejou a queda do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, considerado por ele como “condutor desastroso” da diplomacia desde o início do governo, e criticou a inoperância do ministro da Economia, Paulo Guedes, afirmando que nada realizou. “A política atual peca porque a visão de mundo que eles têm é irracional. São seguidores de uma seita”, disse. “Os atuais governantes são lunáticos e insanos, pessoas que não têm contato com a realidade.”

Quais forças que levaram à queda de Ernesto Araújo?
Ele caiu pelo conjunto da obra, graças à diplomacia desastrosa que conduziu desde o início do governo. Os erros cometidos em matéria de vacina ou a hostilidade à China não só em relação ao 5G, mas de modo geral, formam parte desse conjunto. Em termos imediatos, foi o Congresso, em especial o Senado, que impulsionou a ofensiva final contra ele. É preciso lembrar, porém, que há muito tempo ele era unanimidade: todos eram contra ele, a começar pela imprensa, os meios acadêmicos, os setores políticos junto aos quais sempre despontava como o pior ministro do governo.

Quais os erros dele à frente do ministério o senhor destacaria?

O principal foi aceitar a pregação de Olavo de Carvalho, através de quem fez sua carreira e chegou à posição de ministro. Foi por meio desse guru que ele se aproximou de Eduardo Bolsonaro e tantos outros. É um grupo sectário, que tem uma visão de mundo conspiratória e acredita que há uma destruição da herança política judaico-cristã, chamada globalismo. Organizações como a ONU, que procuram promover valores e novas regras, que violariam a tradição bíblica, seriam algo a ser combatido. A tolerância com as minorias sexuais e a promoção da igualdade de gênero, por exemplo, são vistas como uma ameaça. É em função disso que eles idealizam a política externa. Eles partem de uma visão distorcida da realidade mundial e, quando você tem um diagnóstico errado, qualquer terapêutica também será um equívoco.

Viramos realmente um pária perante o mundo?
Já somos um pária, não há dúvidas. São muitas as questões que nos envergonham, como direitos humanos, a questão dos povos indígenas, meio ambiente, destruição da Amazônia, a pandemia, os direitos da mulher e das minorias. É uma lista extensa de temas em que o Brasil está completamente na contramão do que se poderia chamar de estado atual da consciência moral da humanidade. Araújo e o próprio Bolsonaro, são pontos absolutamente fora da curva da nossa história. Acho que ambos, que são no fundo a mesma coisa, representam uma anomalia, uma aberração na história do Brasil e tenho confiança que essa aberração não vai durar além da eleição do ano que vem. Alguns erros já cometidos são, contudo, irreparáveis.

Luiz Carlos Azedo - O fracasso de Bolsonaro

- Correio Braziliense

Todas as tentativas feitas para coordenar as ações dos estados e municípios no combate à pandemia, inclusive pelo Ministério da Saúde, foram sabotadas

Não foi por falta de aviso, a pandemia da covid-19 no Brasil virou um problema do mundo. Todos os países importantes do globo, seja pelo seu poder econômico, seja pelo militar e/ou pelas dimensões demográficas, estão domando a pandemia com cuidados pessoais, medidas de isolamento social, testes em massa, cuidados médicos e, finalmente, vacinas. Menos o Brasil, que registra quase quatro mil mortos por dia e, no embalo que vai, pode ultrapassar em muito os 400 mil mortos nos próximos três meses. Os problemas da economia — recessão, crise fiscal, desemprego etc. — são consequência. E podem se agravar ainda mais com as medidas que estão sendo tomadas por outros países para confinar o Brasil, em razão das novas variantes do coronavírus que estão surgindo por aqui.

O presidente Jair Bolsonaro fez todas as apostas erradas. Apostou que a covid-19 era só uma gripezinha; que a segunda onda não existia. Imaginou que defendendo a manutenção da atividade econômica teria uma luz no fim do túnel da recessão, não levando em conta que os problemas estruturais da nossa economia antecedem a pandemia. Acreditou que o Brasil poderia fazer um leilão para comprar as vacinas mais baratas, quando elas ficassem prontas, em vez de investir em uma delas quando ainda estavam em fase de testes, para ter a opção de compra quando fossem liberadas para aplicação em massa. Perdeu todas.

Entrevista | Raul Jungmann* - Militares disseram não a Bolsonaro e sim à democracia

Ex-ministro descarta atos autoritários dos novos comandantes, vê baixa governabilidade e Congresso omisso sobre defesa

Igor Gielow / Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - Os militares brasileiros disseram não a Jair Bolsonaro e sim à democracia durante a crise que se desenrolou nesta semana, a maior desde a demissão do ministro do Exército que queria impedir a abertura da ditadura, em 1977.

A avaliação é de Raul Jungmann, 68, que foi ministro da Defesa (2016-18) e da Segurança Pública (2018) do governo Michel Temer (MDB).

Político com grande trânsito entre os setores militares, Jungmann diz que Bolsonaro fracassou em sua tentativa de alinhar as Forças Armadas a seu projeto de poder. "Foi o dia do fico, no caso, ficar com a Constituição, com a democracia", afirmou.

Ele se refere à posição do general Fernando Azevedo, demitido do cargo de ministro da Defesa na segunda (29) por discordar da exigência de Bolsonaro de maior apoio político das Forças Armadas a seu governo e ao combate às medidas de restrição do contágio da Covid-19.

No dia seguinte, Edson Pujol (Exército), Ilques Barbosa (Marinha) e Antonio Carlos Bermudez (Aeronáutica) entregaram os comandos ao novo ministro, general Walter Braga Netto. O movimento irritou Bolsonaro, que mandou demiti-los.

Após um dia de tensão, acabaram escolhidos para as Forças nomes acertados com os Altos-Comandos. "As escolhas são a fotografia do fracasso de tentativa de politização. Os comandantes não se disporão a qualquer ideia autoritária", disse.

Em conversa por telefone, ele avalia que o presidente está perdendo a capacidade de governar, como a crise acerca do Orçamento inexequível em curso mostra.

Alerta para o risco de instabilidade social devido à gravidade da pandemia e teme pelo avanço armamentista no momento em que a bancada da bala foi instalada no Ministério da Justiça.

E diz que a união entre presidenciáveis, que lançaram um manifesto conjunto na quarta (31), é uma imposição ante a realidade de ter de escolher entre Bolsonaro e o PT em 2022.

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Como o sr. avalia a crise militar desta semana?

Ela decorreu da situação do presidente. De um lado, ele vem enfrentando uma queda progressiva de popularidade. Do outro, ele tem uma relação conflituosa com o Judiciário.

A vitória política que ele teve na eleição das Mesas do Congresso é relativa. O Congresso, o centrão, tem um projeto autônomo que só às vezes coincide com o do Planalto. Isso ficou claro na fala do [presidente da Câmara] Arthur Lira sobre os “remédios fatais” contra o Executivo. O presidente dá sinais de perda de capacidade de exercer suas competências.

Nessa confusão do Orçamento, por exemplo? 

Para mim, é o exemplo acabado. Sempre há negociações. O Orçamento enviado não é administrável. Isso aponta para a precariedade da articulação política, a pouca governabilidade. Por fim, tem a pandemia, fora de controle.

Pelo que foi informado, ele então resolve subir o sarrafo da lealdade e do endosso das Forças Armadas. Nesta hora, vem o não, e ele reage com uma intervenção.

Alguém pode me dizer um motivo pelo qual ministro e comandantes tenham sido afastados? Não estavam cumprindo a Constituição, seus afazeres? Único motivo é político.

Música | Mônica Salmaso - Partido alto (Chico Buarque)

 

Poesia | Joaquim Cardozo - Canto do homem marcado

Sou um homem marcado ...

Em país ocupado

Pelo estrangeiro.

Sou marinheiro

Desembarcado;

Marcho na bruma das madrugadas;

                                                    Mas-

Trago das águas

A substância

Da claridade.

DA CLARIDADE!

Sou o indefinido,

O inesperado

Viajante da tarde nua,

Que uma dor augusta comoveu ...

 

Tudo a renuncia,

                        Tudo

O que eu conservo

De altivo e puro,

Sob o meu manto adormeceu.

 

Em outros tempos e antigos

Plantei alfaces, vendi craveiros,

Fui hortelão, fui jardineiro;

E a escura terra ...

                            Terra

Dos meus canteiros,

Sempre arqueava o dorso

Ao gesto amigo

De minha mão.

 

Hoje provo, na boca, um desgosto,

Hoje tenho, no sangue, um sinal

Que não foi e não é das algemas

Da prisão da Vida,

Nem do jugo da Terra,

Nem do pecado original.

Muito bem sei, senhores,

Que sou um sonho cravado na morte,

Que sou um homem ferido no olhar ...

E que trago, bem viva, entre as nódoas do mundo,

A mancha do meu país natal.

 

Sou um homem manchado de sombra

No sonho, no sangue, no olhar,

Sou um homem marcado ...

Em país ocupado

Pelo estrangeiro.

 

Mas esta marca temerária

Entre a cinza das estrelas

Há de um dia se apagar!

Por isso é que me amparo às mãos dispersas da noite ...

E pelos pés difusos do vento é que marcho

Na bruma das madrugadas ...

Trazendo das águas a substância

Da claridade

E um cheiro manso

De manhã fria ...

 

Oh! Soledade!

Oh! Harmonia!