sábado, 9 de abril de 2022

Dora Kramer: Horizonte perdido

Revista Veja

A ‘terceira’ não soube pavimentar sua via e hoje respira por aparelhos ligados à esperança

A possibilidade de vingar uma candidatura alternativa ao embate entre Jair Bolsonaro e Luiz Inácio da Silva hoje respira por aparelhos. Todos eles ligados à expectativa do chamado centro democrático de que as manhas do imprevisível possam produzir uma boa surpresa. A esperança, sabemos, é a última a aderir a cerimônias de adeus.

Por isso o pessoal empenhado na construção de uma outra via não desiste, se movimenta e tenta de tudo para ver se há um caminho que evite a entrega da toalha de véspera. É provável? Difícil. É possível? Tudo na vida é, ainda mais na política brasileira, cujo histórico apresenta um robusto tributo ao inesperado, sempre à espera na esquina.

Se deslanchar, esse projeto terá desmentido as análises de cenário em vigor no mundo político. Já aconteceu algumas vezes. O exemplo mais recente ocorreu em 2018. No início daquele ano ninguém de bom senso apostava em Bolsonaro presidente.

Ainda assim, sejamos realistas. No mundo político, a avaliação corrente dá conta de um jogo sem volta. Tais análises não dão a Lula vitória certa. Já houve essa convicção. Na atual conjuntura, contudo, é tida como hipótese forte, mas incerta.

Murillo de Aragão: Um roteiro em busca de um ator

Revista Veja

A terceira via tem eleitor e tem candidatos, mas nada acontece

Hoje, ao contrário de 2018, há uma narrativa antipolarização que está se esvaindo por falta de voz. Ou seja, existe agora um eleitorado que, mesmo fragmentado e sem um nome que o represente, acredita haver uma opção além do presidente Jair Bolsonaro (PL) e do ex-presidente Lula (PT), pré-candidatos que lideram a polarização. Ao mesmo tempo, porém, a terceira via ainda não conseguiu se materializar em um candidato ou em uma agenda propositiva. Um aspecto que atrapalha essa construção é a ausência de um entendimento interno entre os partidos que se propõem a construir essa via alternativa.

Como consequência, o candidato da terceira via, que poderia surgir da aliança entre PSDB, MDB e União Brasil, entre outros, precisará gerenciar várias divisões internas. O PSDB, independentemente de quem vença a batalha no ninho tucano — João Doria ou Eduardo Leite —, sairá dividido do processo. O MDB, por ser historicamente uma legenda mais regional do que nacional, já estará naturalmente fragmentado, enquanto o União Brasil terá dificuldades para conciliar os interesses das alas do ex-PSL e do ex-DEM.

Oscar Vilhena Vieira*: À margem da lei

Folha de S. Paulo

A qualidade do Estado de Direito no Brasil vem caindo nos últimos três anos

O Brasil vive às turras com a lei desde sua origem. A ideia de que pessoas e instituições devam se conduzir em conformidade com regras gerais —aplicadas sem qualquer distinção— e de que todos são sujeitos de iguais direitos, jamais conseguiu superar os enormes obstáculos levantados por uma sociedade estruturada em torno da desigualdade, da discriminação, dos privilégios e das exclusões. Daí a incompletude de nosso governo das leis.

A consequência mais imediata da fragilidade da lei no Brasil é a submissão de enormes contingentes da população à violência e ao arbítrio, que brutaliza a vida cotidiana dos mais pobres, mas também cria mal-estar os mais afluentes. A consequência mais difusa dessa incompletude é que o país não consegue consolidar uma trajetória de desenvolvimento. Onde não há lei prevalece o oportunismo e a rapinagem, em detrimento da cooperação, do planejamento, do investimento de longo prazo, da boa governança democrática.

A qualidade do Estado de Direito no Brasil vem caindo nos últimos três anos. O Brasil se encontra no bloco dos países que mais declinaram na América Latina, conforme aponta o último "Rule of Law Index". Essa deterioração não chega a surpreender, em face da hostilidade do presente governo —e das múltiplas forças autoritárias, milicianas e liberticidas que o apoiam— ao governo das leis.

Vinicius Torres Freire: Maior inflação em 20 anos deve continuar forte até a eleição

Folha de S. Paulo

Alta é disseminada entre produtos e deve elevar juros além do previsto pelo BC

inflação é a maior em quase 20 anos —19 anos e três meses, para ser preciso. Bateu em 11,3% ao ano em março. É a segunda maior desde 1999, desde o início do sistema de metas para a inflação, e é o segundo surto de preços mais duradouro desde então.

Ainda vai durar mais: deve ficar acima de 10% até pelo menos agosto. Assim, a taxa básica de juros deve ir além dos 12,75% projetados pelo Banco Central. É possível que o IPCA de 2022 fique entre 7,5% e 8%.

Para falar francamente, o futuro da inflação até 2023 depende de quase sorte: do preço do dólar. Isto é, da sorte e de não se aprontar mais desastre até lá, como uma campanha eleitoral louca na economia e na política.

O arrocho monetário vai tornar ainda mais difícil a vida do próximo governo. O povo já sabe que a vida está ainda mais difícil do que de costume. O surto de inflação da comida é também o maior desde 2003. A inflação dos "alimentos no domicílio" voltou a acelerar, em termos anuais, indo a 13,7%. Já foi a 21,1% em novembro de 2020. Mas o preço da comida sobe a partir de um degrau já muito alto.

A inflação geral, o IPCA, acumulada em 12 meses até março deste ano perde apenas para a carestia dos meses entre de fins de 2002 e meados de 2003, provocada por uma grande desvalorização do real, por sua vez causada pelo pânico da eleição de Lula 1.

Demétrio Magnoli: Escalas da covardia

Folha de S. Paulo

Eduardo Bolsonaro orgulha-se dos atos de máxima covardia alheia celebrando a tortura

"Ainda com pena da cobra" – o tuíte sarcástico de Eduardo Bolsonaro, referência à tortura da jornalista Míriam Leitão, deixada nua num porão escuro com uma jiboia, não deve ser condenado apenas, nem principalmente, na esfera ideológica. Trata-se, como muitos destacaram, de uma questão de caráter. É um jato de luz sobre as escalas da covardia.

A jornalista tinha 21 anos e estava grávida quando, em 1972, experimentou o inferno num quartel de Vila Velha (ES). Muitas décadas depois, aos 66, viu-se alvo, também por motivos políticos, de um exercício distinto de covardia.

Foi em junho de 2017, ano seguinte ao impeachment de Dilma Rousseff, outra vítima de torturas da ditadura militar, no voo 6237 da Avianca, em que viajava uma chusma de delegados do Congresso Nacional do PT.

Durante duas horas, os soldados do "controle social da mídia" hostilizaram-na sem cessar, gritando ofensas, entoando palavras de ordem, esbarrando em sua poltrona. Os covardes aproveitavam-se da dupla circunstância de que a vítima não podia sair da aeronave e, sozinha, teria seus argumentos abafados pelos berros da matilha.

À primeira vista, os militantes adultos, muitos já grisalhos, imitavam arruaças de adolescentes. De fato, inspiravam-se no modelo do "ato de repúdio" utilizado incontáveis vezes por regimes comunistas e fascistas.

Cristina Serra: Marielle, o miliciano e o presidente

Folha de S. Paulo

Adriano da Nóbrega era peça chave para esclarecer crimes próximos ao clã Bolsonaro

Como uma assombração renitente, o miliciano Adriano da Nóbrega, assassinado em fevereiro de 2020, na Bahia, com todas as características de queima de arquivo, reaparece agora na voz de uma de suas irmãs.

Reportagem de Italo Nogueira, nesta Folha, revela grampos telefônicos feitos pela polícia do Rio em que Daniela da Nóbrega afirma que o irmão, chefe do Escritório do Crime, se considerava um "arquivo morto". E, completa ela, "já tinham dado cargos comissionados no Planalto pela vida dele" e "fizeram uma reunião com o nome do Adriano no Planalto".

Na distopia tropical em que assassinatos, corrupção, poder e política se misturam com espantosa naturalidade, Fabrício Queiroz, operador da rachadinha, tentou desmentir a irmã de Adriano, dizendo que ela quis se referir ao Palácio Guanabara, sede do governo do Rio de Janeiro, não ao Planalto.

Alvaro Costa e Silva: Cueca samba-canção é pinto

Folha de S. Paulo

Primeiro deputado a perder mandato por falta de decoro era pinto comparado aos Bolsonaros

Um dos fundadores do PTB, Barreto Pinto foi o primeiro deputado federal cassado no Brasil por falta de decoro parlamentar, em 1949. Baixinho, careca, com o tique nervoso de franzir os lábios ao falar, como se estivesse segurando a dentadura, Pinto era autor de espetáculos de teatro de revista e dono de cartório no Rio de Janeiro. Gostava de aparecer, e isso foi sua desgraça.

Posou para a revista Diretrizes no chuveiro, para garantir que era getulista até debaixo d’água. Depois se deixou fotografar para O Cruzeiro como se fosse uma vedete: de calção na beira da praia com boia no pescoço, imerso na banheira falando ao telefone, deitado na cama encoberto por edredons de seda. Em página dupla surgiu bebendo champanhe vestido de casaca, mas sem calça. Usava cueca samba-canção. A exposição de suas canelas finas foi demais e ele perdeu o mandato.

Fareed Zakaria*: Populistas de direita estão prosperando

O Estado de S. Paulo.

Ao contrário do que especialistas previram, radicais como Orbán ganharam apoio

Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, inúmeros comentaristas acreditaram que ao menos uma coisa boa decorreria dessa nuvem de catástrofe. O ataque de Vladimir Putin contra a ordem liberal, esperavam eles, exporia e deslegitimaria forças iliberais populistas que têm surgido há anos.

Um deles especulou que a guerra na Ucrânia poria fim à era do populismo. Outro, o acadêmico Francis Fukuyama, considerou o episódio uma oportunidade para as pessoas finalmente rejeitarem o nacionalismo de direita. Contudo, passadas seis semanas do início deste conflito, tais noções parecem ilusões otimistas.

ELEIÇÕES. Na Europa, duas eleições cruciais – na Hungria e na França – revelam a verdade. Até poucos dias atrás, era possível sugerir, como o fez um artigo da Atlantic, que a guerra na Ucrânia estava “agitando a política europeia” ao expor registros iliberais e próPutin da líder francesa de extrema direita Marine Le Pen e do primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán.

Esses especialistas foram citados afirmando que Orbán “estava tentando desesperadamente reformular os acontecimentos da guerra” e prevendo que os franceses veriam o presidente, Emmanuel Macron, neste momento, “provavelmente como a única pessoa capaz de liderá-los através desta crise”.

Na realidade, Orbán acaba de ser reeleito – e para o quarto mandato consecutivo – por uma margem conveniente, com sua coalizão obtendo cerca de 53% dos votos e os opositores, aproximadamente 34%. No mesmo dia, eleitores da Sérvia reelegeram um presidente populista, convictamente próPutin, que venceu de lavada.

Adriana Fernandes: Máquina eleitoral

O Estado de S. Paulo.

De olho na eleição, Bolsonaro avalia novas ‘bondades’, como a correção da tabela do IR

A redução da distância nas pesquisas eleitorais entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente Jair Bolsonaro deu fôlego para ativar novas “bondades” eleitorais, que devem sair da gaveta nas próximas semanas.

A correção da tabela do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF), promessa de campanha de Bolsonaro e Fernando Haddad em 2018, é uma delas.

O governo ainda pode isentar do pagamento de IPI os mototaxistas, público que apoia o presidente.

A redução do Imposto de Renda das empresas também entrou no radar, como antecipou o próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, que já faz planos para 2023 e falou abertamente, em evento promovido pelo Bradesco, numa plataforma de política econômica para um eventual segundo mandato do presidente Bolsonaro, como reforma tributária, atração de investimentos europeus para o setor de energia limpa, principalmente eólica, e o mercado de carbono.

João Gabriel de Lima: O iceberg e os timoneiros do futuro

O Estado de S. Paulo

Abraham Weintraub e Milton Ribeiro embicaram nosso futuro na rota do iceberg

Em um trabalho primoroso de investigação jornalística, Julia Affonso, André Shalders e Breno Pires, do Estadão, revelaram na semana passada mais um escândalo no Ministério da Educação. Desta vez a falcatrua envolvia ônibus escolares superfaturados. O mesmo trio de repórteres já havia denunciado, dias atrás, o tráfico de influência de pastores ligados à família Bolsonaro. A rede de propinas levou à queda do ministro da Educação, Milton Ribeiro, e a licitação dos ônibus foi cancelada. É o jornalismo cumprindo sua missão de fiscalizar o poder público.

Dá muita tristeza, para não dizer revolta, que as principais notícias sobre o Ministério da Educação tenham a ver com corrupção. O Brasil tem várias experiências bem-sucedidas na área do ensino em Estados como Ceará, Pernambuco e São Paulo. “Algumas delas começam a ser reproduzidas nacionalmente”, diz Naércio Menezes, professor do Insper e entrevistado do minipodcast da semana. Tais experiências deveriam estar no centro do debate eleitoral, mas acabam obscurecidas pelos malfeitos no ministério.

Bolívar Lamounier*: 2022 a 1648 – o começo e o fim do Estado nacional

O Estado de S. Paulo

O mundo hoje apresenta desafios que certos obtusos não decifram de imediato, mas, com algum afinco, acabam compreendendo.

Penso que nem mesmo o Dr. Pangloss, personagem de Voltaire, seria capaz de manter seu proverbial otimismo se lhe fosse dado deitar uma vista d’olhos sobre o mundo atual.

Numa fração de segundo, Pangloss certamente imergiria num sono profundo, durante o qual se lembraria da Paz de Westfalia (tratados celebrados em 1648, pondo fim à Guerra dos Trinta Anos) e da esperança dos reis lá reunidos de estarem lançando as bases de uma paz perpétua. Um mundo de Estados, quero dizer, de carapaças protetoras, que deixariam para trás os antigos castelos medievais. Estes eram bonitos, sem dúvida, mas haviam se tornado incapazes de garantir proteção a seus habitantes a partir do instante em que os exércitos se adestraram para o uso militar da pólvora.

Nesse aspecto, a grande inovação foi o reconhecimento da soberania territorial de cada Estado. Um país, mesmo se fosse dezenas de vezes mais poderoso que outro, só poderia penetrar o território deste violando sua soberania, ou seja, recorrendo à força militar e violando suas fronteiras, e ficaria sujeito à retaliação do país atacado, que certamente daria um jeito de arranjar aliados. Constituía-se, dessa forma, um sistema no qual todas as unidades políticas seriam Estados, uma vez que uma fronteira distante de seu “centro” funcionaria como uma carapaça protetora. Nascia, assim, o sistema europeu de Estados.

Dois segundos mais e Pangloss, despertando de seu sinistro sonho, teria à sua frente os escombros da Ucrânia, milhares e milhares de mortos, escolas e hospitais destroçados, falta de água potável em algumas regiões e o refulgente dourado dos trigais obliterado pelo incessante despejo de bombas. Assestando para mais longe seu binóculo, veria na janela do Kremlin a glacial figura do tirano russo.

Ascânio Seleme: O salto alto de Lula

O Globo

Em menos de dez dias, Jair Bolsonaro ameaçou duas vezes golpear a democracia brasileira… e o mundo veio abaixo porque Lula falou de aborto. Na terça-feira passada, o golpista deu sinal inequívoco do que pretende ao afirmar que as Forças Armadas podem ajudar o país “a rumar para a normalidade”. Na quarta-feira da semana anterior, disse que o povo armado não será escravizado e atacou ministros do STF. Já escrevi aqui que o presidente vai tentar dar um golpe. Uma prévia foi experimentada no dia 7 de setembro do ano passado, quando por muito pouco um grupo ensandecido não invadiu o Supremo Tribunal Federal. Mas, hoje, só se fala nas gafes do Lula.

Está certo, foram muitas gafes, podem atrapalhar a sua campanha e por isso merecem ser analisadas. Nota de Mônica Bergamo na “Folha” de quinta-feira talvez dê uma pista do que passa na cabeça do Lula nestes dias. A jornalista escreveu que empresários fazem fila para conversar com o petista em razão de sua liderança nas pesquisas eleitorais. E que Lula tem recusado reuniões mais amplas, fazendo exceção apenas aos mais chegados. Isso tem nome. Trata-se de soberba, mas pode ser chamado também pelo seu apelido popular: salto alto. Logo ele, que já reclamou publicamente do salto alto dos companheiros mais empolgados.

Foram alguns episódios. O primeiro, e talvez o mais importante, foi o do aborto. Lula tem razão, trata-se mesmo de uma grave questão de saúde pública, e ele apenas repetiu, com mais ilustração, o que sempre defendeu. Pregou tratamento igual para mulheres ricas e pobres que não querem seguir com uma gravidez indesejada, o que só ocorre se o aborto for legalizado. Poderia ter evitado o assunto, já não caberá a ele qualquer medida nesse sentido. Quem legaliza qualquer coisa no Brasil não é o presidente, mas o Congresso Nacional.

Carlos Alberto Sardenberg: Negação da realidade

O Globo

Vamos falar francamente: não há democracia quando há corrupção. Já tivemos por aqui o conhecido “rouba, mas faz” — que resultou em muito roubo e pouca estrada. Agora, parece estar surgindo o “rouba, mas é democrata”. Não faz sentido.

A corrupção está longe de ser um problema moral. Se fosse “apenas” uma questão ética, já estaria errado. Teríamos corrompido os costumes sociais e políticos. Na verdade, temos muito disso por aqui.

No caso do social, muita gente acha que não tem nada demais dar uma caixinha para o policial do trânsito ou para o burocrata que emperra uma demanda qualquer, como o registro de uma pequena empresa. Resultado: mais burocracia, menos eficiência e impessoalidade do serviço público.

Nos costumes políticos, são abundantes os exemplos de tráfico de influência — caso dos pastores que iam rezar nas reuniões do MEC com prefeitos e aproveitavam para negociar verbas e “contrapartidas”. Eleito com a bandeira da moralidade, o presidente Bolsonaro, aliado ao Centrão fisiológico, não apenas enfraqueceu as instituições de combate à corrupção, como abriu as diversas instâncias de seu governo a balcões de negócios.

Se bem que, no caso de Bolsonaro, esse é o menor desvio antidemocrático. Ele vai direto ao ponto, tentando solapar as instituições políticas e o sistema eleitoral, além de pregar abertamente a volta da ditadura militar.

Sim, é preciso montar um polo democrático para barrar a reeleição do aspirante a ditador.

Mas quem pode entrar nesse polo?

Eduardo Affonso: Brasil precisa se curar de si

O Globo

Foi no lançamento do disco da Áurea Martins, “Senhora das folhas”, em que essa menina de 81 anos reverencia as cantadeiras, rezadeiras e benzedeiras do Brasil. Teatro lotado, gente feliz se abraçando na plateia como há muito tempo não se usava mais.

Áurea reluz no palco, cercada dos melhores músicos, de convidados especiais. Entre uma incelença, uma prece, um ponto, ela começa a entoar os versos da pernambucana Flaira Ferro:

— Se eu não tiver coragem/De enfrentar os meus defeitos/De que forma, de que jeito/Eu vou me curar de mim?

Quem cantava com a voz da Áurea, naquele momento, era o Brasil. O Brasil que adoeceu do “nós contra eles” inoculado por Lula, inflamado por Dilma, supurado sob Bolsonaro. E que precisa de um banho de manjericão, Pra pedir pro santo/Pra rezar quebranto/Curar mau-olhado. Mas, antes, tem de se curar de si.

Carlos Góes: Petrobras: passado, presente e futuro

O Globo

A estatal deve ser uma gigante do petróleo ou uma empresa de energia verde reinventada? Só a sociedade brasileira poderá dizer

A Petrobras está, de novo, no meio de um turbilhão. O governo federal, controlador da empresa, teve muita dificuldade para indicar seu terceiro presidente desde o começo do mandato do presidente Bolsonaro. Dado o contexto problemático, este é um momento apropriado para repensar o passado, o presente e o futuro da estatal.

Os problemas recentes da empresa começaram a ficar evidentes em 2010. Foi a partir de então que o valor de mercado da Petrobras se descolou do valor das outras empresas de petróleo. Nos cinco anos seguintes, o preço das ações das outras petrolíferas se manteria estável na Bolsa de Nova York, enquanto o preço das ações da Petrobras derreteria 87,5%.

Naquela época, o debate político era sobre uma suposta autossuficiência brasileira em petróleo, que na verdade nunca foi atingida. Por trás da publicidade, já existiam fraturas que podiam ser observadas nos relatórios financeiros da empresa.

Pablo Ortellado: Sabotagem na mobilização de entregadores

O Globo

Reportagem publicada nesta semana pela Agência Pública mostra como a rede iFood sabotou a campanha dos seus entregadores que pediam mais remuneração e melhores condições de trabalho. O jogo sujo incluiu a criação de contas falsas nas mídias sociais e a contratação de um falso manifestante para mudar a pauta de reivindicação nos protestos. A denúncia vem logo depois de uma avaliação da rede FairWork, que mediu a decência do trabalho, coordenada pela Universidade de Oxford, dar nota 2 à empresa numa escala até 10.

A iFood é líder no serviço de entrega de refeições. Estima-se que detenha mais de 80% do mercado brasileiro. Em julho de 2020, seus entregadores se organizaram nacionalmente para uma paralisação em 13 estados, exigindo pagamentos maiores, condições de trabalho melhores e medidas de proteção contra a Covid-19.

Foi para desbaratar essa mobilização nacional que a iFood contratou a agência Benjamin Comunicação, que depois subcontratou a agência SQi. A Benjamin é administrada pelo publicitário Lula Guimarães, que fez as campanhas de Marina Silva à Presidência em 2014 e de Geraldo Alckmin em 2018. A SQi é uma agência especializada em campanhas políticas e na gestão de crises. Foi contratada por João Doria para fazer o acompanhamento de mídias sociais.

Marcus Pestana*: O centro do problema é o sistema político

Na última quarta-feira, a Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária promoveu, em Brasília, a sua JORNADA CNA 2022, com o objetivo de discutir uma agenda para o Brasil. Participei ao lado do ex-ministro e ex-deputado Roberto Brant e da ex-senadora Ana Amélia do debate sobre a reforma política.

De início, registrei que o bordão retórico repetido a esmo de que é “a mãe de todas as reformas” carregava uma certa razão, já que a disfuncionalidade de nosso sistema político afetava o processo de decisões.

Provoquei que gostaria de tentar provar que temos um dos piores sistemas políticos entre as democracias avançadas e abordaria o tema em três camadas: o sistema de governo, o sistema eleitoral e o sistema partidário.

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Inflação impõe desafio a BCs do mundo todo

O Globo

Além da comoção provocada pelas mortes e explosões, os brasileiros estão sofrendo no bolso a guerra na Ucrânia. A inflação subiu 1,62% em março, maior variação mensal do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Final (IPCA) desde janeiro de 2003 e maior alta em março desde 1994, antes do Plano Real. O maior responsável é o setor de transportes, que sofre com a alta dos combustíveis e do gás. O barril de petróleo já vinha subindo com a retomada da economia mundial depois do arrefecimento da pandemia e foi para as alturas com o conflito. No acumulado dos últimos 12 meses, o IPCA está em 11,30%, com três meses consecutivos de alta depois da leve queda em dezembro.

Uma taxa dessas costuma despertar o debate previsível sobre os juros e nossa incúria fiscal crônica, agravada pelo ímpeto gastador do governo Bolsonaro no ano eleitoral. É fato que a política de juros adotada pelo Banco Central (BC) tem sido insuficiente para deter a escalada dos preços. Mas a realidade é que bancos centrais no mundo todo estão sendo desafiados pela resiliência dos índices inflacionários.

Ficou maior o desafio de tentar prever o que é transitório e o que pode ser tendência duradoura. A economia global passa por uma fase crítica de ajuste depois do final da pandemia, combinando pressão inflacionária e um risco crescente de recessão. A retomada de lockdowns na China, a crise de energia na Europa e a disparada no preço do petróleo contribuem para uma sensação de paralisia mundial. Economistas temem a repetição do cenário nefasto de estagflação dos anos 1970.

Poesia | Joaquim Cardozo: Espumas do Mar

Cavalos ligeiros
De eriçadas crinas
Por que sobre as ondas
Passais sem parar?
Vencendo procelas,
Ressacas em flor,
Num fulgor de estrelas
A poeira das águas
Fazeis levantar.

Espumas do mar.

Nas serenas curvas
Da carne marinha
Há sopros, há fugas
De véus a ondular;
Vestidos de rendas...
Vestidos, mortalhas
De noivas morenas
Que em noites de lua
Virão se afogar.

Virão se afogar.

Se há fomes noturnas
Mordendo e chorando,
Lívidas, remotas
Fúrias soltas no ar,
Que os lábios do vento
Se abrindo devorem
A flor de farinha
Que as vagas maiores
Irão derramar.

Espumas do mar.

Nesse fogo verde
De cinza tão branca
Que se apure um mel

De brilho sem par;
Turbinas, moendas
No giro girando
E o açúcar nascendo
Na folha das ondas
Constante a rolar.

Constante a rolar.

Sobre os seios mansos
Das baías claras
Em puro abandono
Não hei de ficar;
Saudades das ilhas,
Amor dos navios,
Segredo das águas
Nas barras dos rios
Irei desvendar.

Espumas do mar.

Em mares incertos
Irei navegar;
E direi louvores
Às velas latinas
Por bem velejar;
Louvores direi
Aos lírios de sal
E às vozes dos búzios
Que sabem cantar.

Que sabem cantar.

Teu rosto esqueci,
Teus olhos? Não sei...
Da face marcada
O espelho quebrei
De muito sonhar;
Nos laços retidos
Das águas profundas
Tesouros perdidos
Quem há de encontrar?
Espumas do mar.