domingo, 19 de janeiro de 2020

Opinião do dia – Luiz Werneck Vianna*

IHU On-Line – Qual é a expectativa em relação ao governo neste ano?

Luiz Werneck Vianna – Pelo que entendemos da prática do governo até aqui, ele não vai mudar. Ele vai continuar neste caminho, insistindo na abertura de novas possibilidades para uma sociedade diferente da nossa: ele quer destruir a antiga para construir a nova, para edificar um projeto neoliberal e sujeitar a sociedade a um movimento livre do capitalismo selvagem. Essa é a pretensão do governo: um economicismo primário do ministro Guedes, que entende que a economia é capaz de, sozinha, mudar o mundo. Não é; nunca foi. Ela precisa da política, precisa da sociedade, e só o movimento do mercado não é capaz de trazer a novidade para nós. Mas essa é a marca do governo e ele não vai abandoná-la, porque faz parte do seu DNA.

Estamos, aos poucos, encontrando formas de resistir, e a resistência hoje é diversa daquela que ocorreu nos anos 1960: até agora não se falou – e espera-se que não se fale – em resistência armada. A sociedade teve um aprendizado com isso. A senha para o avanço da direita, para uma sociedade totalitária, estaria numa esquerda que perdesse o rumo, perdesse o tino, mas como isso não ocorreu, não ocorre e provavelmente não ocorrerá, o governo se debate com ele mesmo diante de uma sociedade cada vez mais complexa e diferenciada. Em qualquer circunstância, este é um país difícil de governar.

O Brasil, como disse o nosso grande poeta, não é para principiantes. Esta gente que está aí é principiante. O Guedes não entende nada da sociedade brasileira, se é que ele entende alguma coisa de economia. Ele não sabe qual foi a história do capitalismo brasileiro, a formação da burguesia brasileira, e se recusa a entender o papel que o Estado teve, que a política social teve na imposição do capitalismo entre nós, especialmente no mundo sindical. Através da fórmula corporativa, o sindicalismo foi atraído pela ordem burguesa na era Vargas, de forma harmoniosa; tutelada, mas harmoniosa. Agora, sem o mundo do trabalho, como a economia vai se montar, se edificar? Sem a inovação tecnológica da robótica, da inteligência artificial, como isso vai ficar? Com universidades sem recursos, com uma formação universitária capenga, com um sistema educacional desses? Não vai, não tem como.

Você esboçou que eu estaria otimista. Não é verdade, mas fico olhando e consultando as possibilidades que estão aí e as possibilidades de se constituírem forças alternativas ao que está aí. Isso está acontecendo. É lento? É muito lento. Precisa de calma? Precisa. Paciência, perseverança dia a dia; é uma luta do cotidiano.

*Luiz Werneck Vianna, sociólogo, PUC-Rio, Em entrevista 13/1/2020

Luiz Sérgio Henriques* - Guerras falsas, guerreiros de fancaria

- O Estado de S.Paulo

A atual generalizada redução das classes a massas não prenuncia nada favorável

Guerras culturais têm uma aparência kitsch e costumam girar em torno de monstros fabulosos, a tal ponto que nunca se sabe muito bem se os contendores argumentam de boa-fé ou estão mesmo perdidos entre sofismas que inventaram com intenções pouco claras. Quando ouve falar da ameaça rediviva do bolchevismo mundial ou de inimigos imaginários apontados à execração pública - inimigos que, a depender da latitude, podem ser um milionário judeu, como George Soros, um pedagogo brasileiro, como Paulo Freire, ou ainda o demoníaco Antonio Gramsci de mil faces -, qualquer pessoa formada segundo padrões racionais e contemporâneos haverá de torcer o nariz com certo enfado. “Paranoia ou mistificação?”, poderá perguntar a si mesma, ecoando talvez Monteiro Lobato, grande intelectual moderno paradoxalmente reativo à modernidade artística que abria caminho há cem anos.

Esse nosso personagem de formação razoável sabe, entretanto, que com ideias não se brinca. Elas podem ser abstrusas e até divertidas, se consideradas com distanciamento, mas num tempo ideologicamente confuso e agitado, que a tantos chega a lembrar a crise dos anos 1930 e as soluções totalitárias então engendradas, têm o poder de formar convicções e sentimentos de grandes massas, tornando-se por isso mesmo uma força material tão densa e concreta quanto qualquer fato bruto da economia ou mesmo da realidade natural. Ideias podem matar ou, no mínimo, propiciar catástrofes históricas. Podem configurar aquele “assalto à razão” que um grande filósofo marxista do século passado denunciou com vigor na cultura alemã e que seria a antessala do nazismo - o mesmo filósofo que, no entanto, não viu acontecer o assalto semelhante que iria corroer por dentro a experiência do socialismo inaugurada em 1917.

Este não será um tempo de partidos - oficialmente em crise, eles que foram moldados segundo os requisitos da sociedade industrial, hoje em trânsito acelerado para a digitalização -, mas continua a ser de homens partidos e de má política. Expliquemo-nos sobre esta última expressão: a política é má quando, por deficiência subjetiva dos atores ou pela natureza inédita das transformações que varrem o mundo, não dá conta dos fenômenos, vê-se atropelada por eles, sem conseguir identificar as boas possibilidades existentes mesmo durante os processos mais tumultuosos. E não se trata, obviamente, de uma condição fatal: ela, a política, é má quando ainda não compreende tais processos e deixa homens e mulheres comuns sem a capacidade, tanto intelectual quanto emocional, de tomar conta das forças que dirigem sua vida. Como se costuma dizer, em tais momentos os fatos, e não os sujeitos, parecem estar no comando. E os resultados em casos assim são, no mínimo, sofríveis, se não desastrosos.

Luiz Carlos Azedo - A banalidade do ódio

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“Ricardo Alvim procurou implantar uma política cultural reacionária, de inspiração — agora está comprovado — nazista”

Hannah Arendt (1906-1975), a filósofa judia de origem alemã que cunhou o conceito de “banalidade do mal” no livro Eichmann em Jerusalém, criou grande polêmica ao afirmar que a massificação da sociedade gerou uma multidão incapaz de fazer julgamentos, aceitando e cumprindo ordens sem questionar. Por essa razão, Adolf Eichmmann, raptado pelos serviços secretos israelitas na Argentina em 1960, e julgado em Jerusalém (caso que a filósofa acompanhou de corpo presente no tribunal, numa reportagem para a revista The New Yorker), não é tratado como um monstro. Ela o considerou apenas um funcionário zeloso que foi incapaz de resistir às ordens que recebeu, embora fosse um dos responsáveis pela execução da chamada “solução final”, o Holocausto.

Arendt escandalizou a comunidade judaica ao citar exemplos de judeus e instituições judaicas que se submeteram aos nazistas ou cumpriram as suas diretivas sem questionar. A autora de As origens do totalitarismo; A condição humana; Sobre a violência; e Homens em tempos sombrios merece ser revisitada nesses momentos nebulosos que a sociedade brasileira atravessa, a propósito da citação de trechos do ideólogo nazista Joseph Goebbels pelo dramaturgo Roberto Alvim, recém-exonerado do cargo de secretário de Cultura do governo Bolsonaro por esse motivo.

Discípulo de Olavo de Carvalho, gozava de grande prestígio junto ao chefe do governo, a ponto de o presidente Jair Bolsona, numa live, na quinta-feira passada, ter afirmado: “Ao meu lado, aqui, o Roberto Alvim, o nosso secretário de Cultura. Agora temos, sim, um secretário de Cultura de verdade. Que atende o interesse da maioria da população brasileira, população conservadora e cristã”.

O vídeo de inspiração nazista de Alvim foi o auge de uma série de fatos nos quais o ex-secretário procurou implantar uma política cultural reacionária, de inspiração — agora está comprovado — nazista. Num vídeo institucional, o dramaturgo interpretou o papel do ministro da propaganda nazista, tendo a Cruz de Lorena como insígnia no cenário; como trilha sonora, a ópera Lohengrin, de Richard Wagner, compositor favorito de Adolf Hitler. O mais grave foi ter utilizado o conceito de cultura de Goebbels, num trecho de sua fala, na qual imitava o ar sisudo do político nazista: “A arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional, será dotada de grande capacidade de envolvimento emocional, e será igualmente imperativa, posto que é profundamente vinculada às aspirações urgentes do nosso povo — ou então não será nada”.

Merval Pereira - Asneiras

- O Globo

Bolsonaro diz que proibiu seu partido de usar o fundo eleitoral. Ele terá até 2022 para se desdizer, como faz com frequência

O presidente Jair Bolsonaro sancionou o fundo eleitoral de R$ 2 bilhões, mas continua fingindo para seus eleitores que era obrigado a sancionar, não poderia veta-lo, pois corria o risco de ser impedido por crime de responsabilidade. Não é verdade, mas ele quer sempre passar a ideia de que é um político “fora da caixa”.

Já proibiu que seu partido use essa verba. Como o partido provavelmente não estará pronto para concorrer às eleições municipais, ele pode prometer qualquer coisa, pois terá até 2022 para se desdizer, como faz com frequência.

Sabendo da impopularidade do Congresso, (na primeira pesquisa do ano pela XP Investimentos, a Câmara tem 83% de desaprovação e o Senado 79%) - Bolsonaro procura tirar proveito da fama de ser um político diferente dos demais, mesmo depois de ter passado mais de 30 anos nos subterrâneos do Congresso, membro desimportante do chamado “baixo clero”.

Mas Bolsonaro fala tanto que acaba dando bom dia a cavalo, como diz o ditado popular. Ontem, em evento do Aliança pelo Brasil, seu partido, voltou a fazer uma comparação que o agrada: para ele, a presidência da República é um casamento. Mas desta vez fez dois adendos, contrários entre si, mas reveladores de seu estado de espírito.

“Um casamento de quatro ou oito anos, quem sabe por mais tempo lá na frente. Tenho um compromisso com vocês. Jamais pensei que uma pessoa do nosso perfil chegaria à Presidência”. Muita gente nunca pensou também que uma pessoa com o perfil de Bolsonaro chegasse onde chegou, e a cada dia esse espanto só faz aumentar.

Bernardo Mello Franco - Tempos anormais

- O Globo

Num governo normal, em tempos normais, um imitador de nazistas jamais alcançaria o topo do poder. Alvim chegou lá porque estamos no Brasil de Bolsonaro

“Antes de mais nada, é preciso lembrar o que o governo Bolsonaro não é: um governo normal em tempos normais”. Assim começa o artigo “O método do governo Bolsonaro”, do cientista político Christian Lynch. O texto teve repercussão modesta quando foi publicado, em agosto passado. Cinco meses depois, transformou o autor em alvo da caça às bruxas federal.

Na quarta-feira, Lynch foi anunciado para um cargo técnico no centro de pesquisas da Casa de Rui Barbosa. Horas depois, teve a indicação vetada pelo secretário de Cultura do governo. Roberto Alvim acusou o pesquisador de pregar “ideias execráveis” sobre o presidente. A nomeação subiu no telhado antes de sair no “Diário Oficial”.

No dia seguinte ao expurgo, Alvim foi elogiado publicamente pelo chefe. “Depois de décadas, agora temos um secretário de Cultura de verdade”, celebrou o capitão. O dramaturgo cairia horas depois, após copiar um discurso de Joseph Goebbels. A indignação de meia República não bastou para derrubá-lo. Bolsonaro só entregou sua cabeça após uma ligação do embaixador de Israel.

Dorrit Harazim -Tremendo erro

- O Globo

Citar e ressuscitar Goebbels (ainda) não passa despercebido. Tampouco (ainda) foi tratado como bússola aceitável

Em final de novembro passado, poucas horas antes de subir ao palco para um recital em Halle, Alemanha, o pianista Igor Levit foi dar uma última checada em seu e-mail. “Seu porco judeu”, anunciava uma das mensagens. Caso ele não desistisse de se apresentar, seria morto ali mesmo, no palco da sala de concerto lotada. Levit, de 32 anos, nunca havia recebido ameaça de morte tão precisa, apenas ataques em mídias sociais por ser um cidadão ativo e crítico.

Sentiu raiva ao sentar ao piano. Mas tocou, protegido por complexo esquema de segurança armado às pressas. Conta que sentiu medo só depois — e não por ele, mas pelo seu país de adoção, a Alemanha, que o acolhera ainda criança dentro de um programa para famílias judias egressas da antiga União Soviética. “Apesar de tantos avisos, o Estado continua a fechar os olhos para o racismo, o antissemitismo, o extremismo de direita, o terror”, escreveu em contundente artigo publicado no diário berlinense “Der Tagesspiel”. Ele alerta que já passa da hora de só falar em democracia. “Nós — tanto os cidadãos como o Estado democrático — precisamos agir”. No dia seguinte à ameaça recebida, a “Appassionata” de Beethoven e as “Variações Goldberg” de Bach lhe soaram diferentes. A música e o músico fazem parte da mesma vida.

Míriam Leitão - Os riscos fatais do planeta Terra

- O Globo

A economia mundial foi atravessada pela emergência climática e não há escolha que possa ser feita sem considerar esse risco

Quando será tarde demais? A pergunta que precisa ser feita diante do aumento do perigo, qualquer perigo, tem que estar conosco como uma inseparável companheira na era da emergência climática. Quando será tarde demais? Fiz essa pergunta a cientistas ingleses quando visitei o Met Office, o Inpe inglês, em 2009. Eles me mostraram as projeções, os cenários, os riscos, os tipping points. Um dos deflagradores desse ponto, a partir do qual nada mais é possível fazer, disseram eles, é a perda da floresta amazônica. O Inpe contou de novo que o desmatamento continua a crescer. Subiu 85,3% de janeiro a dezembro de 2019, comparado com 2018.

Foi exatamente o Deter, sistema de detecção de desmatamento em tempo real, que foi atacado pelo governo, a ponto de o presidente da República demitir o diretor do instituto. E o que o instituto alertou aconteceu. O Prodes já havia mostrado quase 30% de aumento. Esse sistema tem dados mais consolidados sobre 12 meses que terminam em julho de cada ano. O Deter é sistema de alerta, vai na frente, vai avisando. Na semana passada, ele divulgou os números do ano inteiro, de janeiro a dezembro, o primeiro desse governo que deliberada e abertamente estimula o desmatamento.

Elio Gaspari - Bolsonaro precisa levantar o tapete

- Folha de S. Paulo / O Globo

Comissão de Ética deveria dar alegrias, mas tem sido fonte de tristezas

No próximo dia 28 a Comissão de Ética da Presidência da República tratará do caso do secretário especial de Comunicação do Planalto, Fabio Wajngarten. Como se sabe, até ser nomeado para o cargo ele dirigia uma empresa que tinha contratos com emissoras de TV e agências de publicidade que vendem serviços à Secom. Depois que se desligou funcionalmente, foi substituído por pessoa de sua confiança que vem a ser irmão do seu braço direito na Secom. Ele continua dono de 95% das cotas da empresa.

A Comissão de Ética da Presidência tem um passado de tumultos e frangos. Dois de seus presidentes já se demitiram (Marcílio Marques Moreira, em 2002, e Sepúlveda Pertence, em 2012). Passou por baixo das pernas dos seus doutores a evolução patrimonial do comissário Antonio Palocci, e ela conviveu com a escalafobética prática dos ministros que tinham empresas de consultoria. Em 2011, eram cinco.

Instituição que deveria dar alegria aos contribuintes, a comissão foi fonte de tristezas. Em 2012, a presidente Dilma Rousseff dispensou legalmente 5 do seus 7 integrantes, e essas cadeiras ficaram vazias por cinco meses. No ano seguinte, a comissão deixou de publicar suas atas. Deu no que deu.

Janio de Freitas – Perguntas e respostas

- Folha de S. Paulo

Presidente não dá explicação satisfatória às relações comerciais do seu secretário de Comunicação

"Cala a boca!". "Você tá falando da tua mãe?" Ainda não foi dessa vez. A repórter e o colega ficaram impassíveis, tal como outros jornalistas profissionais têm suportado as reações de Jair Bolsonaro a perguntas que não pode responder, apesar de legítimas e necessárias. Mas não está eliminada a possibilidade, um dia qualquer, de que um repórter não aceite ver sua mãe em frase de moleques, e reaja à altura. Pode ser outra a frase insultuosa, e sempre será uma situação sem precedente, porém não exótica.

Nada mais é exótico sob o regime bolsoneiro. Nem por isso é menor a curiosidade sobre o que sucederá. Certo é que haverá efeitos importantes. Nenhum deles capaz, por exemplo, de dar explicação satisfatória às relações comerciais que têm, em uma ponta e na outra, o secretário de Comunicação da Presidência —Fabio Wajngarten, empresário chamado a controlar os altos gastos de todo o governo em propaganda.

Esse agressivo mentor de ataques de Bolsonaro à imprensa diz que a Folha mente, ao noticiar o conflito de interesses, porque ele deixou o comando da empresa em questão. Mas não deixará de lado, quando partilhados os lucros, os 95% que tem da composição societária. Nem o dinheiro público que possa haver, também, no caldeirão dos ganhos empresariais. Essa é a origem de uma das respostas que Bolsonaro, não podendo dar aos repórteres, substituiu por insulto de moleques.

Vinicius Torres Freire - Nazista sai do armário, crise na gaveta

- Folha de S. Paulo

Denúncia contra o filho 01, disputa palaciana e arrochão são os problemas reais

A crise do nazista que saiu do armário na Cultura deve se desfazer como espuma. O lodo torvo de onde emanam essas borbulhas permanecerá, sim, mas as próximas conturbações do governo não devem vir daí.

No Planalto, na Educação e no Itamaraty, principalmente, o expurgo da “esquerdalha”, de “globalistas” cosmopolitas e de “pessoas anormais” em geral, além da recuperação da arte e da cultura “degeneradas”, são um programa de governo, embora confuso e subletrado.

Esse plano não ousa dizer seu nome nem é articulado como Roberto Alvim, que explicitava sua política Goebbels desde que assumira a secretaria. Mas, embora seja parte do bolsonarismo e de sua paranoia essencial, não deve preocupar o público em geral, a elite política operante e menos ainda os donos do dinheiro.

Esse ruído de fundo fascista não causava sensação até esse surto de exibicionismo do secretário da Cultura, aliás não muito diferente dos shows de narcisismo juvenil perturbado do ministro da Educação.

Até que o governo tenha força para dobrar instituições de modo que quebrem (dobrando já está), o trabalho de demolição deve ser gradual. Dificilmente vai afetar interesses maiores do bloco no poder do país (não apenas no governo); o assunto não é de interesse maior do povo comum.

Por isso, a crise do “gauleiter” da Cultura parece espuma.

Bruno Boghossian - Lula e o complô da América

- Folha de S. Paulo

Ex-presidente atribui aos americanos Lava Jato, quebra de empreiteiras e junho de 2013

Em 2008, ladrões abriram um contêiner da Petrobras e furtaram quatro notebooks e dois HDs com dados sigilosos sobre a exploração da bacia de Santos. A Polícia Federal tratou o caso como espionagem industrial. O ex-presidente Lula acredita que aquele foi o episódio inicial de um conluio estrangeiro para prejudicar o Brasil e o PT.

A teoria de um complô patrocinado pelo governo dos EUA contra a esquerda não é novidade entre os integrantes da legenda. O próprio líder petista, no entanto, passou a desenhar uma teia conspiratória cada vez mais larga para mascarar alguns dos grandes dissabores do partido.

Lula atribui aos americanos influência nos protestos de junho de 2013, na Lava Jato, na derrocada da Petrobras e na quebra de empreiteiras brasileiras envolvidas em corrupção. Mistura fatos com boatos das redes e junta casos isolados, ainda que não haja ligação comprovada entre eles. Tudo para perturbar a discussão política sobre esses episódios.

Vera Magalhães - Mudança x concessão

- O Estado de S. Paulo

Demissão de Alvim não sinaliza que Bolsonaro vá mudar, mas que foi obrigado a recuar

Como tudo no Brasil de hoje, o filme Dois Papas foi tragado pela polarização rasa e redutora que engolfa da política às artes, passando pelo esporte e pelas relações familiares. Direita e esquerda “adotaram" cada uma um Papa, alheias à complexidade de uma Igreja de milhares de anos e aos aspectos sutis da obra.

Numa das cenas mais marcantes do filme, os dois monstros Anthony Hopkins (Bento 16) e Jonathan Pryce (ainda Bergoglio) discutem a diferença entre mudança e concessão. “Eu mudei”, diz o argentino ao Papa, diante de cobranças sobre a revisão que ele fez de dogmas e ritos da Igreja. “Não, você fez concessões”, replica Bento. “Não, eu mudei. É algo diferente.” De fato.

Em mais um episódio de espantosa gravidade, o País foi dormir na quinta-feira e acordou na sexta assombrado por um pesadelo: num vídeo de composição macabra, o então secretário nacional de Cultura, Roberto Alvim, recitava com excitação indisfarçada e olhos vidrados um texto com trechos copiados de Joseph Goebbels, o mais fanático dos ideólogos do nazismo, que foi com Hitler até o final e morreu e matou a mulher e os seis filhos para não fazer nenhuma concessão e não abdicar da ideologia mortífera que ajudou a implementar.

Eliane Cantanhêde - Goebbels na era digital

- O Estado de S. Paulo

Alvim sai, mas Bolsonaro fica e Goebbels, Bannon e Olavo continuam pairando no ar

Poderia ter sido apenas uma papagaiada chocante, mas o que o secretário nacional de Cultura Roberto Alvim fez foi muito pior: uma performance bem construída e ensaiada. Ator e diretor de teatro, ele encarnou o gênio do mal Joseph Goebbels, plagiando seus textos e usando o mesmo cabelo, o mesmo olhar, o tom solene e, como fundo musical, a ópera preferida de Hitler.

Poderia também ter sido um surto individual, um fato isolado, um ponto fora da curva, mas o arroubo nazista foi num habitat onde, vire e mexe, um protagonista acena com a volta do tenebroso AI-5 e o presidente Jair Bolsonaro se delicia fazendo loas aos ditadores sanguinários Pinochet e Stroessner.

A própria trajetória de Roberto Alvim no governo já diz tudo. Ele foi premiado com o principal cargo da Cultura nacional por ter atacado Fernanda Montenegro como “sórdida” e “mesquinha”, convocado artistas para uma “máquina de guerra cultural” e planejado ceder espaços culturais para teatros evangélicos. Nomeado com carta branca numa secretaria de cultura jogada como estorvo no Ministério do Turismo, ele teve passagem tão rápida quanto devastadora. Na Fundação Palmares, um negro racista. Na Funarte, um terraplanista que identifica rock com drogas e satanismo. Na Casa de Rui Barbosa, alguém muito distante de ser personalidade e alheio aos meios acadêmicos. Na Biblioteca Nacional, um monarquista. Verdadeiro strike.

Pelos elogios feitos ao secretário, o presidente da República parecia bem satisfeito com esse desmonte macabro da Cultura, que é a alma de uma nação e um dos mais calorosos orgulhos brasileiros, mas acaba de atrair o Brasil para mais uma onda de manchetes vexaminosas pelo mundo afora.

Roberto Romano* - O brutalitarismo santo

- O Estado de S.Paulo

O costume de realizar cultos em edifícios públicos é ilegal, intolerante, usurpador

O Estado moderno exige três monopólios para evitar o morticínio generalizado: o uso exclusivo da força física contra a virulência dos indivíduos e grupos (assassinatos, roubos, sequestros) e defesa coletiva na guerra ou tensão internacional. Só o Estado pode prender corpos e treinar soldados para batalhas. A segunda exclusividade a temos nas formas jurídicas. Só o Estado pode editar leis. O terceiro monopólio reside nos impostos. Apenas o mando estatal tem o direito de os exigir. Nenhum particular tem legitimidade para prender, obrigar a obediência à lei, recolher contributos. Tais monopólios não podem ser aplicados de modo imprudente.

Os limites do poder surgiram nas primeiras cidades. O controle social perde força se ocorre abuso. A natureza humana exige respeito e liberdade. Recordemos que o poder absoluto corrompe absolutamente e, assim, mina a própria base da obediência.

Spinoza, grande autor ético, longe de ser otimista ingênuo afirma que nenhuma sociedade subsiste “sem governo (imperio) e força, sem leis que moderem e controlem o apetite do prazer e das paixões”. Mas a ordem pública erra ao exagerar no uso da força. “A natureza humana não suporta ser constrangida de maneira absoluta. Como diz Sêneca, o Trágico, ‘governos ferozes não persistem muito tempo, o poder moderado permanece, violenta imperia nemo continuit diu; moderata durant’” (Tratado Teológico-Político, capítulo 5). A advertência volta no capítulo 16: “Ninguém conserva um poder violento, (...) pois é quase impossível que a maioria dos indivíduos concorde com um absurdo” desses. O governo deve possuir força para comandar. Logo, é preciso que a sociedade lhe transfira a potência para que ele exerça a soberania à qual todos devem obedecer, livremente ou por medo. Lemos na mesma página: “Democracia é a união dos homens em um todo que possui direito soberano coletivo sobre tudo o que está sob seu poder”.

Antonio Risério* - O País da ficção

- O Estado de S. Paulo / Aliás

A história humana é feita de apropriações e mesclas; o turbante, que muitos julgam africano, foi levado à África Negra pelos invasores árabes, que conquistaram muitos de seus reinos

É preciso continuar chamando a atenção para o significado perverso do avanço do fascismo de esquerda no Brasil. Hoje, a cada passo que damos, topamos com dois conceitos excludentes vociferados de forma agressiva, violenta mesmo, pelas milícias (vulgo “coletivos”) do multiculturalismo identitário: o chamado “lugar de fala” (circunscrevendo legitimidades discursivas só para “oprimidos”) e a chamada “apropriação cultural”, pretendendo isolar e compartimentar “culturas”.

De fato, o multiculturalismo encontrou sua expressão política mais aguda e belicosa no fascismo da esquerda identitária. E o que é mesmo o multiculturalismo? Sejamos claros: é um “apartheid” de esquerda. A ideologia multiculturalista se opõe às interpenetrações culturais, defendendo o desenvolvimento apartado de cada “comunidade étnica”, de modo que ela possa permanecer sempre idêntica a si mesma, numa espécie qualquer de autismo antropológico. E o Brasil nunca foi e não é um espaço multicultural. Ao contrário, somos um país sincrético.

Como escrevi outro dia artigo sobre o “lugar de fala”, vou me deter hoje, mesmo brevemente, em torno da “apropriação cultural”, que é um retrato acabado da atual ignorância a respeito da história cultural da humanidade, toda ela feita de imposições, apropriações, empréstimos, trocas e mesclas. A coisa ficou conhecida no Brasil graças ao “caso do turbante”, que uma mulata escura tomou como signo cultural especificamente negroafricano. O turbante foi levado à África Negra pelos árabes, que invadiram e dominaram muitos de seus reinos (é provável, inclusive, que a palavra “mulato” venha do árabe, designando originalmente filhos de árabes e pretos). É conhecida a história da revolta do Gobir, reino hauçá, contra a dominação muçulmana. Proibiu-se ali, naquela conjuntura, que negros usassem símbolos da opressão islâmica – entre eles, o turbante. A mulata brasileira que tomou o turbante como signo negro nada conhecia de história africana.

Mas podemos chegar também a outra perspectiva sobre “apropriação cultural”, no caminho do musicólogo Flávio Silva, em seu importantíssimo Musicalidades Negras no Brasil. Flávio fala aí da afirmação do sistema tonal entre nós, marcando de uma ponta a outra nossa criação musical. Lembra que a tonalização do ouvido brasileiro, no sentido do pré-classicismo europeu, foi difundida aqui “por compositores e instrumentistas mulatos e negros instruídos por mestres lusos durante o período colonial”.

O que a mídia pensa – Editoriais

A autocrítica que o PT se recusa a fazer – Editorial | O Globo

Ex-governador, ex-ministro e ex-senador, Cristovam Buarque aponta erros da esquerda

Há um lado B na trajetória do PT, partido de importância histórica, que se inicia nas primeiras prefeituras conquistadas no entorno da cidade de São Paulo, no fim dos anos 1980, e chega ao petrolão, desmantelado pela Operação Lava-Jato, lançada em 2014. É uma longa história de casos de corrupção, em que não se consegue delimitar bem o que foi arrecadado para financiar a causa, o projeto de poder da legenda, ou para melhorar o padrão de vida e garantir o futuro de companheiros. Em paralelo, há outra história, de indiscutíveis vitórias e da construção de Lula como o maior líder popular surgido no país desde Getúlio Vargas.

Os altos e baixos justificariam autocríticas, principalmente em um partido de esquerda. Em especial num momento de agudo descenso, uma queda pontilhada de processos e prisões de dirigentes por corrupção. Inclusive o ex-presidente Lula, preso durante um ano e sete meses em Curitiba, condenado no processo em que é acusado de receber um tríplex na praia do Guarujá da empreiteira OAS, em troca de favorecimentos à empresa em contratos na Petrobras. Condenado na segunda instância, Lula está livre, mas é inelegível.

Música | Maria Bethânia- Histórias Pra Ninar Gente Grande

Poesia | Fernando Pessoa - Aqui, neste misérrimo desterro

Aqui, neste misérrimo desterro
Onde nem desterrado estou, habito,
Fiel, sem que queira, àquele antigo erro
Pelo qual sou proscrito.
O erro de querer ser igual a alguém
Feliz em suma - quanto a sorte deu
A cada coração o único bem
De ele poder ser seu.