O Estado de S. Paulo
É necessária uma aguda reflexão sobre a
‘questão democrática’ e o centro político
Num momento em que nosso passado de golpes
e atropelos parece obstinar-se em não querer passar, oprimindo como um
pesadelo, segundo a frase famosa, o cérebro dos vivos, podemos também,
paradoxalmente, nele buscar sinais que nos orientem ou permitam discernir rotas
menos tortuosas. É que tivemos tempo suficiente de aprendizado na luta contra o
autoritarismo e nos educamos coletivamente por meio de experiências que não se
deixam apagar e, seja como for, estão disponíveis para quem veio depois e não
as viveu em primeira pessoa.
Exercícios contrafactuais são sempre
arbitrários, mas não de todo inúteis. Não era inevitável, por exemplo, que a
modernização brasileira se revestisse do caráter autocrático assumido a partir
de 1964. Tal caráter não estava escrito nas estrelas ou latente na “natureza do
processo”, mas decorreu também de más escolhas políticas. No seu conjunto, os
atores do campo “progressista” tinham da democracia uma concepção limitada,
como se ela fosse uma variável subordinada às “reformas de base”. Defender a
Constituição de 1946 e apostar nas eleições de 1965 teria sido um caminho menos
aventuroso, cuja viabilidade dependia da existência mais vigorosa de uma
“esquerda positiva”, à moda de San Tiago Dantas, que desgraçadamente não
tínhamos.
A seguir, a luta contra o regime autoritário conheceria uma esquerda dividida e muitas vezes impotente, a travar o seu “combate nas trevas”. Parte dela negava as transformações em curso e se apegava aos fortes mitos revolucionários da época, como o da China ou o de Cuba. Outra parte, no entanto, que por sinal abrigava a maioria dos egressos do putsch de 1935, seguia rumo diametralmente oposto ao do passado, avalizando – mesmo na clandestinidade – o partido dito de “oposição consentida”, o MDB de Ulysses e Tancredo. Sem dúvida, um sinal de esquerda positiva, preocupada com os humores e as posições do centro político, sem o qual não seria possível derrotar o arbítrio.