domingo, 4 de outubro de 2020

Fernando Henrique Cardoso* - Dias sombrios

- O Estado de S. Paulo / O Globo

 É melhor que chova logo, antes que as trovoadas se tornem tempestades

Governar é escolher, mas o presidente não quer arcar com esse custo. Não basta pensar que se é “mito”.

Os dias andam sombrios. A pandemia tolda o horizonte e os corações. Cansa ficar em casa, isso para quem tem casa e pode trabalhar nela. Imagine-se para os mais desafortunados: é fácil dizer “fiquem em casa”, impossível é ficar nela quando não se a tem ou quando as pessoas vivem amontoadas, crianças, velhos e adultos, todos juntos. Pior, muitos de nós nos desacostumamos de “ver” as diferenças e as tomamos como naturais. Não são.

Eu moro num bairro de classe média alta, Higienópolis. Não preciso andar muito para ver quem não tem casa: numa escadaria que liga minha rua a outra, há uma pessoa que a habita. Sei até como se chama. Sei não porque eu tenha ido falar com ela, mas porque minha mulher se comove e de vez em quando leva algo para que coma. Assim, ilusoriamente, tenho a impressão de “solidariedade cumprida”, não por mim, mas por ela, que atua...

Mesmo quando vou trabalhar, na Rua Formosa esquina com o Vale do Anhangabaú, é fácil ver quanta gente “perambula” e à noite dorme na rua. Agora, com as obras de renovação, fazem-se chafarizes, que serão coloridos. Pergunto: será que os moradores de rua vão se banhar nas águas azuladas das fontes luminosas?

Não há que desesperar, contudo. Conheci Nova York e mesmo São Francisco em épocas passadas, quando as ruas também eram habitadas por pessoas “sem teto”. Elas não aparecem mais onde antes estavam e eram vistas. Terão melhorado de vida ou foram “enxotadas” para mais longe? Também em Paris havia os clochards. Que destino tiveram: o crescimento da economia absorveu-os ou simplesmente foram “deslocados”, pelo menos da vista dos mais bem situados? Crueldade, mas corriqueira.

É certo que o vírus da covid parece começar a ser vencido no Brasil, como os jornais disseram ainda na semana passada. Mas continuamos numa zona de risco. A incerteza perdura. Comportamentos responsáveis salvam vidas. Os países europeus que tinham controlado uma primeira onde se veem às voltas com novo surto de contaminações e hospitais no ponto de saturação. Qual de nós não perdeu uma pessoa querida? Essa dor não se esquece nem se apaga.

Merval Pereira - Meio-Ambiente verde (oliva?)

- O Globo

A militarização da Amazônia parece ser a saída que o governo de Bolsonaro projeta para garantir nossa soberania na região, como se ela estivesse realmente ameaçada. Desde que o candidato à presidência dos democratas nos Estados Unidos, ex-vice-presidente Joe Biden, disse no debate com Trump, referindo-se às queimadas no Brasil, que vai procurar outros países para criar um fundo de preservação da Amazônia de U$ 20 bilhões, e que, se o desmatamento continuar, haverá "consequências econômicas significativas", o presidente Bolsonaro vem acirrando os ânimos nacionalistas dos militares.  

Responde que “não estamos à venda” em sua live do Facebook, e considera a fala de Biden uma demonstração de que há interesses espúrios de outros países na Amazônia. Bolsonaro joga toda sua política externa na reeleição de Trump, vê nossa relação diplomática com os Estados Unidos como “plena”, e lamenta que Biden, que pode vir a ser eleito presidente dos Estados Unidos, “parece estar querendo romper o relacionamento com o Brasil por causa da Amazônia”.  

Consequentemente, diz que o Brasil precisa de Forças Armadas "preparadas" para proteger a Amazônia caso algum país resolva fazer "uma besteira" contra o Brasil. “E nós temos que fazer o que? Dissuadi-los disso. E como você faz a dissuasão disso? Ter Forças Armadas preparadas. Mas nossas Forças Armadas foram sucateadas ao longo dos últimos 20 anos”, lamentou.  

O estranho é que no Fórum Econômico Mundial, ao encontrar-se com o ex-vice-presidente dos EUA Al Gore, Bolsonaro disse que gostaria de “explorar a Amazônia com os Estados Unidos”. Mesmo que seja apenas uma bravata, essa convocação à defesa da Amazônia entusiasma os militares, e boa parte dos seguidores bolsonaristas mais radicais.  

Vera Magalhães – Quando a Ciência grita

- O Estado de S. Paulo

O que o recuo na propaganda do kit covid e contágio de Trump têm em comum?

A semana que passou teve dois duros golpes para aqueles que, no Brasil, usaram a pandemia de covid-19 para virarem mercadores de ideologia barata e sabotarem a resposta adequada nas áreas sanitária, médica, social e econômica. Não, ainda não se trata de responsabilização judicial, mas acredito que chegaremos lá.

As duas notícias não têm uma ligação direta, mas partem da mesma premissa: quando a Ciência grita, o negacionismo perde. A primeira é local. O Ministério da Saúde, embalado na confiança vinda da efetivação do diligente (para Bolsonaro, não para a Saúde) general Eduardo Pazuello no posto e da alta popularidade do presidente, preparou mais um desserviço à saúde pública, que deveria ter acontecido neste sábado.

Era um tal Dia D de defesa dos cuidados precoces com a covid-19, que nada mais seria que uma propaganda, pelos canais oficiais, do tal kit covid, composto por medicamentos sem eficácia comprovada, com efeitos adversos, que o restante do mundo já baniu e que aqui, sem ação nenhuma da Justiça diante de centenas de ações por crime de responsabilidade das autoridades federais, seguem sendo administrados a partir de um protocolo oficial.

A comunidade científica saiu do terreno das notas de repúdio e se organizou. Graças ao trabalho rápido do Instituto Questão de Ciência, comandado pela microbiologista Natália Pasternak, saiu do papel o Dia C de Ciência, reunindo cientistas e jornalistas na divulgação de dados e evidências sobre a covid-19, da prevenção ao tratamento, passando por vacina.

Eliane Cantanhêde - Teto? Que teto?

- O Estado de S. Paulo

Sem Guedes, tem de compensar a fuga ‘de cima’ comprando a turma ‘de baixo’. E o teto?

O que está em jogo no isolamento do ministro da Economia não é apenas a queda ou não de Paulo Guedes, um nome a mais ou a menos. A questão central, que preocupa e assusta, é a sobrevivência do último pilar da campanha do presidente Jair Bolsonaro: liberalismo e pragmatismo na economia. Ou seja: o que balança não é Guedes, é a política econômica.

Do Bolsonaro de 2018, pouco sobra. A promessa de combate à corrupção amarelou com a investida nos órgãos de investigação e apagou com a queda de Sérgio Moro. O embate contra a “velha política” foi-se com o abandono do PSL e das novas bancadas do Congresso, trocados na cara dura pelo Centrão e seus ícones.

O que sobra? Sobra o compromisso com liberalismo, reformas, privatizações e desburocratização, que vai perdendo credibilidade com um Paulo Guedes claudicante, sem resultados e com os nervos à flor da pele. A sensação em Brasília e no mundo dos negócios é que, apesar do blábláblá, estourar o teto de gastos é questão de tempo.

Bolívar Lamounier* - Dois Bolsonaros

- O Estado de S. Paulo

Um já conhecemos bem e o outro é o que me parece necessário, mas não sei se é possível

Espero que meus caros leitores e leitoras não estranhem o título deste artigo. De fato, hoje meu objetivo é contrastar dois presidentes Bolsonaro, um que já conhecemos bem e outro que me parece necessário, mas não sei se é possível.

É inegável que o presidente real, esse que conhecemos bem, teve um lance de inteligência, ou, melhor dizendo, de esperteza, no transcurso de sua já extensa carreira. Percebeu que sua figura, seu modo de ser e falar, se encaixava bem no papel que os eleitores estavam procurando: encarnar o antipetismo (vale dizer, o desastre legado por Lula e Dilma Rousseff), ante o desnorteio, a divisão, a inapetência ou que nome devam ter os chamados “partidos de centro”, que se apresentaram na eleição presidencial de 2018 como que incapacitados por um instinto suicida.

Tirante o referido lance de esperteza – e aqui me esforçarei para ser objetivo, com todo o respeito a Sua Excelência –, realmente não há muito a ressaltar na trajetória de Jair Bolsonaro. Da carreira militar foi levado a se afastar no posto de capitão. Na Câmara dos Deputados, durante 28 anos, foi uma corporificação perfeita do parlamentar do “baixo clero”, não aparecendo como autor de nenhum projeto marcante ou por algum momento de real protagonismo.

Na Presidência da República, tem-se mantido na contramão dos agentes de saúde que diariamente põem sua vida em risco, na linha de frente do combate à covid-19. Recusa-se até mesmo a observar os protocolos, fomentando aglomerações, recusando-se a usar máscaras e receitando o remédio em que acredita, peremptoriamente contestado pelos mais destacados cientistas e institutos de epidemiologia do mundo. Sou forçado a repetir esses lugares-comuns pelo que eles têm de pitoresco, pois a verdade é que a própria forma de transmissão da doença ainda não está satisfatoriamente esclarecida.

Luiz Carlos Azedo - Quem é o líder da economia?

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

Guedes perde a liderança da economia para os políticos do Nordeste, que prometem votos em troca de R$ 300, porque não oferece empregos nem segurança aos investidores

O presidente Jair Bolsonaro provavelmente não leu Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre; talvez tenha lido Os Sertões, de Euclides da Cunha, nos tempos de academia militar, por causa da campanha de Canudos, o maior vexame do Exército brasileiro. Mas isso em nada o impede de ter capturado boa parcela do eleitorado do Nordeste, onde obtém crescente apoio popular. Esse parece ser o terreno eleitoral no qual sua reeleição pode ser decidida. Com competência, Bolsonaro está abduzindo o eleitorado nordestino do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Casa Grande & Senzala foi publicado no Rio de Janeiro, em 1933. História, sociologia, antropologia cultural, gastronomia, direito, sociolinguística, curiosidades, medicina e uma boa dose de intimidades da vida privada colonial, inclusive sexual, fazem da obra um clássico da chamada literatura brasiliana. Freyre, um aristocrata pernambucano, ainda provoca muitas polêmicas. A principal é o tratamento dado ao português colonizador e à escravidão. Para uns, mascarou o racismo; para outros, resgatou a autoestima do brasileiro.

Freyre compreendeu a miscigenação como um dos elementos de construção da identidade nacional. É muito criticado por isso. Sérgio Buarque de Holanda (o homem cordial), Raymundo Faoro (patrimonialismo) e Roberto DaMatta (o jeitinho brasileiro) também são acusados de generalizações exageradas e da absolutização de seus conceitos. Todos construíram um “tipo ideal”, uma abordagem de viés weberiano que os autores marxistas geralmente condenam. Entretanto, seria impossível compreender o Brasil contemporâneo sem a ajuda desses autores, até porque a crítica a eles veio muito depois, com a maioridade acadêmica das universidades brasileiras.

Freyre fala dos índios, dos portugueses e dos escravos africanos, com considerações que alguns consideram até pornográficas. Ao descrever hábitos sexuais, faz comentários machistas e até homofóbicos. Ao analisar a formação do patriarcado brasileiro, no período colonial, opõe católicos e hereges, jesuítas e fazendeiros, bandeirantes e senhores de engenho, paulistas e emboabas, pernambucanos e mascates, bacharéis e analfabetos, senhores e escravos. Mostra que a escravidão e o latifúndio fortaleceram a sociedade patriarcal onde o homem branco – o dono da Casa-Grande – era o proprietário de terras, escravos, até mesmo de seus parentes, no sentido que ele governava gado e gente.  Desta maneira, criou-se uma sociedade sempre dependente de um senhor poderoso e incapaz de governar a si mesma.

Elio Gaspari - Puseram Michelle numa fria

- Folha de S. Paulo / O Globo

Usando-se a marca da mulher do presidente atraem-se áulicos e espertalhões

A repórter Constança Rezende mostrou que o vírus dos áulicos capturou R$ 7,5 milhões que o frigorífico Marfrig doou ao governo em março para a compra de 100 mil testes rápidos para detectar o coronavírus. Testaram zero e a história dessa maluquice é uma viagem ao mundo da burocracia, da bajulação e das espertezas.

Aos fatos:

No dia 23 de março a Marfrig ofereceu o dinheiro à Casa Civil da Presidência da República.

A primeira encrenca. Dias depois o Itaú-Unibanco fez o certo. Anunciou a doação de R$ 1 bilhão para o combate à pandemia sem colocar um só tostão na máquina do governo. Bolsonaro dizia que “brevemente o povo saberá que foi enganado por esses governadores e por grande parte da mídia nessa questão do coronavírus”.

No dia 20 de maio a Casa Civil informou que o dinheiro seria usado “com fim específico de aquisição e aplicação de testes de Covid-19”. Levaram dois meses para processar a informação. Já haviam morrido 18.959 pessoas. O ministro Paulo Guedes dizia que tinha um amigo inglês capaz de fornecer 40 milhões de testes por mês ao Brasil.

Passaram maio e junho. A 1º de julho a Casa Civil mudou de ideia e perguntou à Marfig se o dinheiro dos testes podia ser usado no projeto Arrecadação Solidária, vinculado ao programa Pátria Voluntária, de Michelle Bolsonaro, mulher do presidente. Diante de tantos nomes bonitos, quem seria capaz de dizer não? A essa altura já tinham morrido 60.194 pessoas.

Juntaram-se dois erros. Num, o dinheiro iria sabe-se lá para onde. No segundo, caiu na velha cumbuca das obras assistenciais da mulher do presidente. Salvo no Comunidade Solidária de Ruth Cardoso, elas quase sempre foram uma fábrica de encrencas. Geridas por áulicos, apurrinharam as vidas de Maria Thereza Goulart e de Rosane Collor de Mello.

Janio de Freitas – Terrivelmente motivados

- Folha de S. Paulo

Indicado ao STF, Kassio Nunes Marques é portador de um silêncio valioso

O melhor a dizer sobre a indicação de novo integrante do Supremo é se tratar de dupla incógnita. O desempenho no tribunal depende da combinação de fatores como saber jurídico e orientação doutrinária, experiência de vida, concepção de ordem social, e outros, todos permeados pela qualidade do caráter. E nada disso se fez conhecido, de fato, na personalidade de Kassio Nunes, o que ficou demonstrado na vaguidão dos metros de noticiário sobre o personagem inesperado.

No caso, a incógnita é menos ruim do que era conhecido e previsto. A especulação que ruiu, ao fim de meses, dividia a preferência de Bolsonaro entre André Mendonça e Jorge Oliveira. O primeiro atenderia à escolha de alguém “terrivelmente evangélico”, qualificação que sintetiza todo um conjunto de ideias planas e pedregosas anti-ideias. Ministro da Justiça, apressou-se em reavivar a ditatorial Lei de Segurança contra o articulista Hélio Schwartsman e o cartunista Aroeira. Seria, pois, um magistrado terrivelmente previsível —embora não o único.

Discreto secretário-geral da Presidência, Jorge Oliveira chegaria ao tribunal com a cicatriz indelével de membro do grupo palaciano. De um daqueles que endossam, com seu passado e seu futuro, os desmandos de Bolsonaro e suas consequências funestas. Não é incomum que ministros do Supremo aparentem despir-se de sua origem política, e alguns o façam mesmo. Metamorfose, convenhamos, que não é para qualquer um. E não era pressentida em Jorge Oliveira, ao menos de modo absoluto.

Bruno Boghossian – O atalho conservador

- Folha de S. Paulo

Parte da retórica do presidente na pauta de costumes tem adesão acima da média na região

No palanque montado em São José do Egito, no sertão pernambucano, Jair Bolsonaro mencionou Deus dez vezes em pouco mais de cinco minutos. Quase no fim do discurso, o presidente pediu que a plateia votasse em “gente que tenha Deus no coração” nas eleições municipais e acrescentou o lema do integralismo: “Deus, Pátria e Família”.

Além de multiplicar sua presença em inaugurações e surfar no auxílio emergencial do coronavírus, Bolsonaro também aposta na retórica conservadora para cristalizar sua popularidade no Nordeste. A pauta de valores pode servir de atalho para o eleitorado da região num momento de incertezas na economia.

Embora tenham produzido efeito limitado na campanha de 2018 por ali, onde Bolsonaro teve votação modesta, alguns itens de sua agenda de costumes têm adesão acima da média na população nordestina.

Uma pesquisa do Datafolha mostrou, no fim daquele ano, que 54% dos entrevistados da região eram contra o aborto em caso de estupro. No Sudeste, o percentual era de 39%.

Luiz Carlos Bresser-Pereira* - A decepção de dois mestres

- Folha de S. Paulo

Mergulhamos na ortodoxia liberal e no populismo

Em sua coluna na Folha, em 18 de setembro último, Silvio Almeida falou de Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982), o notável sociólogo negro que foi um dos meus mestres nos anos 1950, quando eu tinha 20 anos. Em conjunto com Ignácio Rangel, Hélio Jaguaribe, Roland Corbisier e Álvaro Vieira Pinto, Guerreiro foi um dos grandes intelectuais nacionalistas e desenvolvimentistas que se reuniram no Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) e repensaram o Brasil.

Eles o fizeram a partir das ideias de revolução nacional e industrial, as quais, para se concretizar, implicavam a crítica sistemática à dependência ou ao entreguismo das elites liberais locais e ao imperialismo das grandes potências. Conforme diz Silvio Almeida, Guerreiro Ramos é “a síntese de tudo aquilo que o atual governo brasileiro vem se empenhando em combater: uma pessoa negra, um intelectual, um defensor da soberania nacional e um servidor público preocupado com o Brasil”.

Naquela época, o Brasil tinha um projeto nacional de desenvolvimento baseado na ideia de industrialização e um líder político comprometido com esse modelo, Getúlio Vargas, o estadista que o Brasil teve no século 20.

Guerreiro e seus colegas apostaram na associação da burguesia industrial com os trabalhadores, a burocracia pública e os intelectuais desenvolvimentistas em torno desse projeto porque essa coalizão era uma realidade naquela época, não obstante suas ambiguidades e contradições. Estava acontecendo e estava dando certo. Entre 1930 e 1980, o Brasil experimentou um desenvolvimento econômico acelerado que deu origem a uma grande classe operária e a uma grande classe média de natureza tanto gerencial e profissional quanto empresarial.

Vinicius Torres Freire – Política econômica pelo método confuso

- Folha de S. Paulo

Bolsonaro não entende medidas, Guedes tem ideias fixas e indecisão é sistemática

No furdunço da pedalada desta semana, Jair Bolsonaro ouviu também conselhos de Roberto Campos, presidente do Banco Central, e gostou. Disse a um assessor do Planalto que Campos não entra em “brigalhada”, não faz barulho, é calmo e “joga para o time, sem vaidade”.

O assessor conta que perguntou se Bolsonaro estava então convencido de que seria preciso evitar manobras “fura-teto” para fazer o Renda Cidadã. O presidente respondeu algo como “é, isso a gente vai ver depois”. Importante mesmo era todo mundo do governo fechar a boca e deixar de “brigalhada”.

O presidente teria dito algo assim: “O Paulo Guedes precisa falar menos, precisa ficar uns dois meses quieto. O Braga Netto não fala nada. O Heleno parou de falar”.

Esse assessor pede para ressaltar que não há perspectiva de Guedes sair do governo e que os rumores velhos de que Campos ocuparia o lugar do ministro teriam sido plantados por inimigos pessoais.

Pelos relatos de quem anda perto de Bolsonaro, o presidente parece acreditar na última conversa que ouve a respeito de algum plano econômico, desde que o projeto não mexa com militares, policiais, aposentados e servidores. Fica feliz quando um grupo de políticos ou assessores apresenta o que parece ser uma solução definitiva e rápida, de modo efusivo e efervescente; “vai na onda”. Se o plano dá errado ou é mal recebido, tem dificuldade de entender os motivos e procura um culpado ou conspirador.

Míriam Leitão - Caos e confusão como método

- O Globo

Por Alvaro Gribel (interino)

Depois de mais uma semana de brigas e perda de tempo, fica a pergunta sobre o que pretende o ministro Paulo Guedes no governo Jair Bolsonaro. Nas redes sociais, houve quem lembrasse uma frase do economista Roberto Campos, de que chegou ao Congresso querendo fazer o bem, mas depois viu que poderia apenas evitar o mal. No caso de Guedes, há dúvidas, porque parte dos problemas tem origem no seu temperamento. Se a conversa de Rogério Marinho com investidores foi tida como desleal, também não se pode dizer que tudo que ele falou não faz sentido.

Paulo Guedes chegou a Brasília carregando a fama de que não tinha experiência como gestor de equipes e de ser uma pessoa de difícil convívio. Por isso, sempre se saiu melhor como investidor, consultor e palestrante, onde conseguia encantar plateias, especialmente formada por seus pares. No governo, tem demonstrado falta de foco na formulação e apresentação de projetos — como disse Marinho — e repete sempre frases feitas, qualquer que seja o seu interlocutor. Na relação com a imprensa, não entendeu o básico sobre comunicação institucional.

Apesar da formação de economista, Guedes não parece muito afeito aos números. É comum o ministro arredondar dados para cima e fazer contas de 10 anos para, em qualquer contexto, chegar à casa do trilhão. Na semana passada, usou o artifício para dizer que o país já tem garantido R$ 1,2 tri de investimentos nesta década pelos marcos legais em andamento, da cabotagem, setor elétrico, saneamento e privatizações. Antes da pandemia, enquanto as projeções do mercado para o PIB caíam, ele dizia que o país ia “crescer o dobro” e citava dados da arrecadação, como faz até hoje. Quem acompanha as coletivas da Receita sabe que esse não é o melhor indicador antecedente de atividade. A entrada de recursos no caixa do Tesouro pode variar com pagamentos extraordinários e de acordo com o calendário. É uma estatística poluída.

Bernardo Mello Franco - A segunda morte de Chico Mendes

- O Globo

Na semana em que removeu a proteção a manguezais e restingas, o ministro Ricardo Salles avançou mais uma casa no desmonte dos órgãos ambientais. Na sexta-feira, ele criou um grupo de trabalho para estudar a fusão do Ibama com o Instituto Chico Mendes. O objetivo é extinguir o último, conhecido pela sigla ICMBio.

A comissão terá sete integrantes. Cinco deles são PMs nomeados no lugar de técnicos. Em portaria publicada no “Diário Oficial”, Salles disse que a mudança poderá trazer “potenciais sinergias e ganhos de eficiência administrativa”. Quem atua nos dois órgãos enxergou outra coisa. “É para não haver a aplicação da legislação ambiental”, resumiu a Ascema, associação nacional dos servidores do meio ambiente.

O ICMBio cuida de 334 unidades protegidas. Elas ocupam quase 10% do território nacional, da Amazônia ao Pampa. A criação do órgão liberou o Ibama para se concentrar nas tarefas de fiscalização e licenciamento.

Dorrit Harazim - Tudo suspenso no ar

- O Globo

Com 74 anos e sobrepeso, Trump foi traído pelo vírus que há sete meses teima em negar

Deve ter sido difícil para a Casa Branca, à 1h11 da madrugada da sexta, 2 de outubro, divulgar o que sobrava da agenda de Donald Trump para o resto do dia. Reformatada às pressas pela notícia-bomba de que o presidente testara positivo para o coronavírus, a única atividade mantida foi o seu telefonema de apoio a idosos vulneráveis ao coronavírus. Ironia crudelíssima. Trump poderia ter dado o telefonema a si mesmo.

Com 74 anos de idade e sobrepeso (110 kg), colesterol alto, adepto da hidroxicloroquina, uma internação hospitalar de 2019 jamais explicada e ostentação de relatórios médicos que sempre davam a impressão de ter sido escritos pelo próprio paciente, Trump acabou traído pelo vírus que há sete meses teima em negar. Fosse ele apenas uma fraude de bilionário-ostentação, o problema seria pessoal. Dado o cargo que ocupa, o real estado de saúde do 45º presidente americano é de interesse nacional máximo e consequência global instantânea. Sobretudo quando são dois os vírus em colisão na Casa Branca: o corona e a desinformação sistemática usada pelo governante. Ambos podem se revelar mortais — o primeiro, para a vida humana; o segundo, para a vida democrática.

O resultado positivo do teste de Trump demonstra de forma inequívoca sua incapacidade de proteger a nação que o elegeu — a curva de 208 mil mortos e 7,2 milhões de infectados continua subindo — e de proteger-se de si mesmo.

Nos míseros 30 dias que faltam até a eleição de 3 de novembro — ominoso teste para o atual curso democrático dos EUA —, incertezas, medo e déficit de confiança deverão chegar a extremos. Como fica o funcionamento do país com as lideranças dos três poderes e do mais alto escalão do governo tendo tido contato de primeiro grau (sem máscara nem distanciamento) com Trump ou alguém próximo a ele? Diante do que se sabe sobre a chance de falsos negativos em testes sorológicos, todos deveriam permanecer quarentenados por 14 dias. Dificilmente conseguirão.

O que a mídia pensa – Opiniões / Editoriais

Movimento de Bolsonaro distorce lógica da política – Opinião | O Globo

A base parlamentar existe para pôr um projeto em ação, não para o Executivo se curvar a conveniências

O presidente Jair Bolsonaro foi eleito defendendo um programa econômico liberal, personificado no ministro Paulo Guedes. No papel, a promessa era fazer deslanchar reformas há muito necessárias, que historicamente têm feito a economia brasileira andar em marcha lenta. O plano era acabar com as distorções que tornam nosso Estado caro e ineficiente, desarmar a bomba-relógio da Previdência, trazer um mínimo de racionalidade à gestão pública, rever privilégios do funcionalismo, reformar a estrutura caótica de impostos, acabar com a burocracia e com tudo o que emperra o empreendedorismo, inibe o investimento, gera desemprego, pobreza e desigualdade.

Essa era a promessa. A realidade, como era previsível, impôs limites ao plano. Depois de assumir, Bolsonaro passou a sofrer as consequências de duas dificuldades — ambas resultantes de escolhas do próprio governo. A primeira foi a lentidão da equipe econômica em transformar os desejos em propostas, as ideias em projetos. A segunda foi a crença em que, fortalecido pelas eleições, Bolsonaro poderia governar sem base parlamentar, à margem e à revelia do Congresso Nacional.

Ambas as dificuldades já eram perceptíveis na primeira reforma, a da Previdência, única que o governo aprovou até agora. O assunto era debatido desde o governo Michel Temer, mesmo assim levou semanas até o Legislativo receber a proposta do Executivo. Uma vez no Congresso — onde Bolsonaro se orgulhava de não ter base de apoio e de não se submeter às vicissitudes da “articulação política” —, foi submetida à barganha inerente ao jogo parlamentar.

A proposta inicial foi sendo esvaziada, desidratada, diluída até ficar aquém do mítico trilhão em economias exigido por Guedes. Mesmo assim, foi uma vitória. O governo Bolsonaro estava no início, tinha um voto de confiança do mercado financeiro e do setor produtivo. E contava, para a tramitação no Parlamento, com o apoio valioso do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, figura essencial na hora de suprir a indigência política de Bolsonaro e Guedes.

Nas duas propostas seguintes de reforma, tributária e administrativa, as dificuldades se fizeram sentir de modo mais evidente. No caso da primeira, novamente, em vez de aproveitar as discussões já em andamento no Congresso (havia dois projetos sensatos para transformar os impostos), o governo preferiu começar do zero. Apresentou uma reforma tímida e gradual, cujas ideias que vieram à tona até agora ou bem foram rechaçadas por um coro sonoro de economistas — caso da recriação da CPMF — ou então não convenceram ninguém.

Música | Moacyr Luz e Samba do Trabalhador com João Bosco

 

Poesia | Fernando Pessoa - Poema em linha reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida…
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.