quarta-feira, 15 de julho de 2020

Merval Pereira - Mudo, mas agindo

- O Globo

Bolsonaro continua a pôr o pensamento conservador mais retrógrado como essencial para escolher ministros

A mudez de Bolsonaro está inquietando a ala mais radical de seu governo, que se ressente dos embates diários patrocinados pelo presidente. Já há críticas ao que seria seu novo perfil, e o que se depreende disso é que esse grupo, majoritário nas redes sociais, contenta-se com barulho e confusão e nem nota que Bolsonaro continua a colocar sua ideologia e o pensamento conservador mais retrógrado como elementos essenciais para escolher ministros em várias áreas que considera urgente serem desparelhadas da esquerda.

Por isso o critério usado para a escolha está completamente em desacordo com o que o país precisa. A secretaria de Cultura, por exemplo, faz parte do ministério do Turismo, uma maneira de despreza-la. Tem um secretário – o quarto - escolhido apenas porque é bolsonarista de carteirinha, sem nenhuma relevância e experiência em gestão.

Na verdade, querem aparelhar a cultura e a educação com uma posição reacionária radical. Bolsonaro calado não chega a ser um poeta, mas não significa, porém, que seja outra pessoa, nem que tenha mudado de posição. Talvez tenha aprendido que criar tumulto só dificultava suas ações e expunha o governo a críticas permanentes.

O novo ministro da Educação, um pastor evangélico, pode ser considerado a Damares do setor. Já apagou vídeos onde defende que a mulher tem que obedecer ao marido, e que criança precisa sofrer para ser educada. É o tipo de pensamento retrógrado que vai se refletir nos programas educacionais do país.

O governo Bolsonaro não é uma solução contra o PT e a esquerda, é mais um problema, com sinal trocado. Seu recato deve-se à situação periclitante em que se encontra com seus filhos, todos cercados por inquéritos e processos que têm como desaguadouro final o Supremo Tribunal Federal (STF).

Bernardo Mello Franco -Desmanche em verde-oliva

- O Globo

O Ministério da Saúde completa dois meses sob ocupação militar. A expressão é do ex-ministro Mandetta. “Desmanchar o SUS no meio de uma pandemia foi uma péssima ideia”, afirma

O Ministério da Saúde completa hoje dois meses sob ocupação militar. A expressão é do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, demitido no início da pandemia. Chutado por Jair Bolsonaro quando o país registrava menos de duas mil mortes pelo coronavírus, ele critica o loteamento da pasta entre oficiais do Exército. “É uma coisa absurda. Acabaram com a credibilidade do ministério”, afirma.

Na visão de Mandetta, o general Eduardo Pazuello não sabe o que fazer no cargo de ministro interino. “Ele não tem nenhuma formação na área. Zero. E quem pode acreditar num cara que estava querendo maquiar os números de mortos na pandemia?”, questiona.

A tentativa de manipular dados não foi o único erro do general, diz o ex-ministro. “O que mais assusta é a quantidade de militares que botaram lá. Foram retirando técnicos de carreira para nomear coronel, capitão e sargento. Tudo com a desculpa de que o ministério tinha muito comunista, muito disco voador”, ironiza.

Luiz Carlos Azedo - Ora, o impeachment…

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“O desgaste de Bolsonaro é mitigado pela estratégia de pôr os militares à frente da Saúde, e responsabilizar o Supremo, os governadores e os prefeitos pelo fracasso na pandemia”

Um expressivo grupo de artistas e intelectuais subscreve o pedido de impeachment do presidente Jair Bolsonaro encaminhado, ontem, ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), entre os quais o cantor e compositor Chico Buarque, o escritor Fernando Morais, as atrizes Lucélia Santos e Dira Paes, o ator Gregório Duvivier, o ex-ministro Luiz Carlos Bresser-Pereira e os comentaristas esportivos Juca Kfouri e Walter Casagrande, todos personalidades relevantes da esquerda brasileira. Com 133 páginas, os autores citam ataques contra a imprensa, direcionamento ideológico de recursos no audiovisual, más condutas na área ambiental e atuação falha do governo durante a epidemia da covid-19 como motivos suficientes para caracterizar crime de responsabilidade.

Não é o primeiro nem será o último pedido de impeachment, porque não há a menor possibilidade de Maia acolher a proposta e abrir o processo agora. Houve até um momento em que um amplo conjunto de forças cogitou afastar Bolsonaro da Presidência, diante da agressividade com que atacava os demais poderes e mobilizava seus partidários contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). Mas não o suficiente para transformar essa ideia num fato político concreto, não havia nenhuma garantia de que a iniciativa seria uma solução para a crise institucional iminente; pelo contrário, a possibilidade maior era que legitimasse a retórica autoritária e golpista de Bolsonaro e seus partidários.

Ricardo Noblat - O dilema de Pazuello e dos militares da ativa que servem ao governo

- Blog do Noblat | Veja

Ou voltam aos quartéis ou passam para a reserva

Hoje faz dois meses que o país está sem ministro da Saúde. Escolhido para ministro interino depois da queda de dois médicos que o antecederam no cargo, o general de brigada Eduardo Pazuello, especialista em logística, enfrenta dificuldades até mesmo para distribuir 46 milhões de testes do Covid-19.

Mais de 20 militares, todos da ativa, ocupam funções chaves no ministério. Mas nem eles, nem o general produziram até agora algo capaz de fazer diferença, a não ser para pior. Por ordem superior, tentaram esconder os números reais da pandemia que matou até ontem mais de 74 mil pessoas e infectou 1,9 milhão.

À falta de meios para enviar aos Estados remédios a tempo e a hora, o secretário-geral do ministério, um coronel, orientou governadores e secretários de Saúde a comprar o que lhes falta mesmo a preços superfaturados. Para não se encrencarem com a Justiça, aconselhou-os a denunciar os que lucraram com isso.

Genocídio parece uma palavra forte usada pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, para denunciar um governo relapso que assiste, inerte, o que se dá quando um vírus tem passe livre para matar parte da população. Mas quando a inércia é deliberada, é de genocídio ou morticínio que se trata.

O presidente Jair Bolsonaro não expediu ordem alguma por escrito para que deixassem o vírus agir em paz. Mas Hitler também não expediu ordem alguma por escrito para que dessem início à chamada “Solução Final” – o extermínio em massa de judeus, ciganos, homossexuais e outras minorias na Alemanha nazista.

O que pretendeu Bolsonaro ao vetar trechos do projeto de lei aprovado pelo Congresso que garantia aos índios e quilombolas água potável, material de higiene, leitos hospitalares e de terapia intensiva, ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea, além de alimentação e auxílio emergencial durante a pandemia?

Rosângela Bittar - Vingança contra a vida

- O Estado de S.Paulo

Não há notícia de correção de rumo do governo Bolsonaro no combate à letal pandemia

Para que não restem dúvidas: já se passaram 48 horas que soou o alarme sobre a calamidade da gestão do governo de Jair Bolsonaro no combate à letal pandemia e não há notícia sobre correção de rumo. Ao contrário, a reação de ontem, atribuída ao vice-presidente, ateve-se à questão militar, presa ao significado literal do termo que sintetizou as consequências do mal, não ao seu contexto.

O agente ativo do sumiço de chão, céu e mar que instabiliza os 200 milhões de brasileiros é Jair Bolsonaro. Ele renega dois aspectos fundamentais deste caso, a palavra da Ciência e a função de liderança que lhe cabe como presidente da República. Dispensa o uso da cabeça e da caneta. Na sua torre de comando o imenso vazio dá espaço para pendurar uma rede.

A dimensão da insegurança generalizada, em que os brasileiros acordam pensando se finalmente o número de mortes baixou e vão dormir sem vislumbrar o fim da agonia, o jurista Gilmar Mendes (STF) e o general Eduardo Pazuello (Saúde) são também vítimas. Só que um deles gritou primeiro e pelo lado correto: Bolsonaro é a caricatura, não tem mais jeito. Já o Exército, não.

Aliás, o general Luiz Eduardo Ramos representava ainda o Exército quando foi para a praça dar apoio tácito a extremistas que exigiam o fechamento do Supremo. Estão quites.

Em lugar de abespinhar-se com a crítica à conivência com o extermínio que a covid-19 vem operando, as autoridades militares, se não têm poder para convencer o presidente a fazer o certo, deveriam podar sua ligação com o errado. Reagindo como reagiram, passaram o recibo da conta que Bolsonaro lhes quis aplicar. Inclusive escudando-se no princípio de que interino no comando de uma escrivaninha de gabinete não pode ser acusado de nada. Todo o governo é sócio da chacota que atinge o Brasil em escala mundial. Os militares mais ainda porque aparelharam o ministério da vida.

Míriam Leitão - O impagável custo do ‘não’

- O Globo

Na análise das contas públicas, o que se olha sempre é quanto custa fazer. Quanto dos recursos dos contribuintes será destinado a um programa específico ou foi desperdiçado em alguma obra inacabada. O estudo apresentado ontem sobre educação faz uma inversão completa do olhar e mostra um ângulo novo: qual é o preço de não educar os jovens, de permitir que eles desistam da escola antes de completar o ensino básico? O Brasil perde por ano R$ 214 bilhões. É muito mais caro não educar do que educar.

Os caminhos para encontrar os números foram trilhados por ninguém menos que Ricardo Paes de Barros, mestre da precisão técnica exatamente na área das políticas sociais. Ele e a economista Laura Machado, ambos do Insper, colocaram sobre a mesa uma sequência impressionante de informações. O Brasil tinha, em 2018, 3,3 milhões de jovens de 16 anos. Hoje, um em cada quatro jovens não conclui o ensino básico, mas esse número tem caído. Por isso, a conta é feita projetando-se que, desses jovens do ano estudado, 17,5% não devem concluir o ensino básico. Isso representa uma multidão. Ao todo, 575 mil vão sair da escola antes de completar os 11 anos da educação básica.

Ligia Bahia - Falsos otimistas

- O Globo

Governantes omitem a parte principal da história: quando doentes, correm para hospitais privados de excelência

Quatro meses e mais de 74 mil mortes por Covid-19 separaram audazes e intrépidos médicos, empresários e políticos cloroquinistas dos céticos e prudentes pesquisadores, adeptos da preservação das estratégias de isolamento social. Ao longo do tempo, as ideias circulantes se coagularam em torno da oposição entre a prática, observações pessoais e as evidências científicas. Uma falsa dicotomia. Como se a adesão a comprimidos conferisse audácia e euforia; e a insistência nas medidas preventivas, covardia e pessimismo.

Na vida real, os impulsos se misturaram com experiências concretas e conferiram concretude a pelo menos três condutas assistenciais. Políticos, propagandistas de medicamentos, recebem pílula, dois eletrocardiogramas diários e acompanhamento médico. Pacientes acessam serviços de saúde públicos ou privados do circuito medicina-pesquisa e obtêm explicações sobre proteção e adoecimento. Parcela da população é beneficiária de pacotes com comprimidos, supostamente eficazes, entregues em casa, espaços públicos improvisados e algumas empresas de planos de saúde.

Presidente da República e prefeitos que recomendam remédio antimalárico e distribuem vermífugos omitem a parte principal da história: quando ficam doentes, correm para hospitais privados de excelência, prestigiados inclusive porque pararam de incluir essas drogas em seus protocolos. Valentes libertários, defensores da liberdade inclusive para se tornar doente e infectar os demais, não usam apenas comprimido e copo com água, contam com uma potente retaguarda. O ímpeto de estar no front de peito aberto é aparente, tanto quanto ilusório o enunciado de vivência pessoal favorável ao medicamento.

Monica De Bolle* - Imunidade de rebanho

- O Estado de S.Paulo

O uso indevido de cálculos para a imunidade de rebanho tem consequências econômicas diversas

A revista Science publicou um artigo recente no qual a imunidade de rebanho é modelada como parte de uma série de modelos epidemiológicos que tentam, à luz dos dados e de diversas informações sobre a população de diferentes localidades, dar diretrizes gerais sobre o curso da epidemia. Trata-se, portanto, de um conjunto de artigos, e, em todos eles, pesquisadores têm sublinhado que seus modelos não devem ser tomados ao pé da letra para a formulação de políticas de saúde pública. 

Como todos os modelos, eles servem tão somente para entender algumas partes de um problema intrincado, não-linear, dinâmico e que comporta uma miríade de dúvidas, questões não respondidas e, possivelmente, outras ainda não formuladas. Contudo, há quem os esteja interpretando de forma indevida para argumentar a favor da reabertura econômica independentemente da evolução da epidemia e para afirmar, equivocadamente, que alguns lugares já podem estar próximos dessa espécie de Santo Graal da nossa era.

Esses artigos usam de recursos técnico-científicos semelhantes aos empregados por economistas em suas construções retóricas no que deveria ser um esforço por elucidar questões. Vou ilustrar o que quero dizer. Em economia, é comum valer-se de modelos em que há um agente representativo, isto é, um indivíduo cujo comportamento pode ser extrapolado para todos os demais, pois é característico de todos. Modelos com esse tipo de premissa permitem simplificações que em muito auxiliam a avaliação analítica: por exemplo, se todos os consumidores tiverem um comportamento semelhante e redutível ao de um agente representativo, o problema da agregação, típico na macroeconomia, é facilmente eliminado. Para analisar o consumo agregado, basta reduzi-lo às decisões de um único indivíduo, uma vez que todos os demais a ele se assemelharão. É claro que, na prática, não funciona dessa forma, como sabemos por intuição e como revelam os estudos de economia comportamental. Ainda assim, trata-se de um artifício útil.

Yascha Mounk* - Patrulhas culturais

- Folha de S. Paulo

Objetivo é cancelar tanto quem é culpado de pensar a coisa errada quanto aqueles que os defendem

Entre os vários ensaios de George Orwell dos quais gosto muito, um que me é especialmente caro pode à primeira vista parecer uma escolha surpreendente: é uma defesa de P. G. Wodehouse, escrita nos últimos dias da Segunda Guerra Mundial, contra a acusação de ser simpatizante fascista.

Wodehouse era odiado por muitos na época, e com razão. Depois de passar o primeiro ano da guerra em prisão domiciliar na França ocupada, ele concordara em ir a Berlim para fazer transmissões na rádio nazista. Foi, como Orwell reconhece, uma das maiores proezas de propaganda política que Joseph Goebbels conseguiu realizar durante a guerra.

Orwell, é claro, era opositor ferrenho e constante do fascismo. Um dos primeiros a criticar Benito Mussolini e Adolf Hitler, ele via a causa antifascista como tão importante que se voluntariou para combater as tropas de Franco na Guerra Civil Espanhola, e tinha os ferimentos que o comprovavam. Então por que Orwell decidiu redigir um ensaio meticuloso em defesa de um escritor que traíra seu país e cuja mensagem política ele repudiava?

A resposta é simples: porque Orwell achou que o teor dos ataques era equivocado. “Poucas coisas nesta guerra”, ele insistiu, “têm sido mais moralmente repugnantes que a caça atual a traidores e colaboradores. Trata-se, na melhor das hipóteses, do castigo imposto a culpados por culpados.”

Por mais que Wodehouse pudesse ter sido ingênuo, egoísta ou até covarde, Orwell não o enxergava como colaborador ou como fascista em segredo. E, mesmo em uma sociedade em guerra contra um inimigo mortal, Orwell considerava tão importante o princípio de que não devemos participar de caças às bruxas ou condenar pessoas por crimes que elas não cometeram que se sentiu compelido a corrigir o que estava sendo divulgado, em defesa de um homem de quem tinha tão poucas razões para gostar.

Tenho pensado muito sobre esse texto nas últimas semanas porque a América está passando por uma série de caças muito mais tolas e menos bem fundamentadas a traidores e criminosos do pensamento.

Vinicius Torres Freire – Cartas já não adiantam mais

- Folha de S. Paulo

Cartas, manifestos e movimentos de internet querem um Bolsonaro

A parte mais civilizada do establishment parece acreditar em um Jair Bolsonaro sem bolsonarismo ou resignada com o fato de que ora nada pode fazer a não ser evitar o pior (golpe e golpeamentos). A evidência mais recente desse movimento são as cartas ambientais, embora a tentativa de contenção de danos venha de março de 2019.

Empresários e banqueiros escreveram ao vice-presidente Hamilton Mourão um pedido de proteção da Amazônia e planos de reconstrução da economia orientados por princípios ambientais. Nesta terça-feira (14), ministros da Fazenda e presidentes de Banco Central dos governos da Nova República lançaram por meio de carta à sociedade um programa econômico-ambiental mais amplo, missiva que tem como destinatário oculto o governo da destruição.

Como talvez ainda se recorde, maio foi o mês de manifestos e frentes suprapartidárias, movimentos virtuais contra Bolsonaro, que animava comícios golpistas. Houve o “Estamos Juntos” (de “personalidades” socio-político-culturais etc.), o “Basta!” (gente do direito), o “Somos70%” (propaganda virtual), o “Somos Democracia” (torcidas de futebol nas ruas). Houve ainda manifestos suprapartidários de ex-ministros da Educação e das Relações Exteriores.

Junho viu definhar a flébil e invertebrada frente ampla de partidos, que murchou também devido à oposição de Lula da Silva, que não queria se juntar a arrependidos de Bolsonaro, lava-jatistas, gente que depôs Dilma Rousseff e defensores do programa de Paulo Guedes.

A prisão de Fabrício Queiroz (em 18 de junho) e a ameaça de cadeia para filhos, empresários e milicianos digitais de Bolsonaro contribuíram para dopar o golpismo e, por tabela, as frentes. Os generais assim passaram a ter mais argumentos a fim de conter o autoritarismo mais contraproducente de seu capitão.

Bruno Boghossian – A volta dos que não foram

- Folha de S. Paulo

Olavistas usam embate com Gilmar para convencer Bolsonaro a retomar guerra institucional

Antes de provocar alvoroço na caserna, Gilmar Mendes já havia usado o termo "genocídio" três vezes para se referir ao desempenho do governo na crise do coronavírus. Em junho, depois que Jair Bolsonaro ordenou uma maquiagem nas estatísticas, o ministro disse que a manobra não eliminaria a responsabilidade do presidente pelo morticínio.

Naqueles episódios, não se ouviu ranger de dentes ou toque de corneta nos quartéis. Os militares só reagiram agora, quando Gilmar disse que o Exército estava associado ao desastre na saúde. A ideia era proteger as Forças Armadas das críticas, mas os comandantes acabaram passando um recibo definitivo sobre seus vínculos com o presidente.

Hélio Schwartsman - Um coração de mãe

- Folha de S. Paulo

O mesmo tribunal mandar prender o acusado de roubar xampus e soltar o amigo do presidente destrói a credibilidade da Justiça

Analisada abstratamente, não é absurda a decisão de João Otávio de Noronha, presidente do STJ, que transformou a prisão preventiva de Fabrício Queiroz em domiciliar.

Prisões preventivas, pela legislação brasileira, deveriam ser excepcionais, só cabendo quando não houver outro modo de dar seguimento às investigações ou quando se provar que a liberdade do suspeito traz riscos como fuga, pressão sobre testemunhas ou perigo para a ordem pública. Especialmente durante a pandemia de Covid-19 e quando o investigado pertence ao grupo de risco, a substituição da preventiva pela domiciliar faz sentido.

Fernando Exman - Defesa armada, mas falta plano de ataque

- Valor Econômico

Relação com o Centrão deve ter momentos de crise

Foi bem-sucedida a operação do governo Jair Bolsonaro de construir um cordão sanitário na Câmara dos Deputados. A defesa política foi estruturada, mas ainda falta a amarração, entre o Executivo e o Legislativo, de um plano concreto que concilie a aprovação de medidas para atacar os problemas do país no pós-pandemia a garantias de sustentabilidade fiscal de longo prazo.

É com essa preocupação que hoje trabalham a equipe econômica e os articuladores políticos do Palácio do Planalto, quando tratam da pauta legislativa com representantes da nova base governista. As reuniões têm sido frequentes. No governo, espera-se que a desconfiança, uma sensação de que a parceria com o Centrão não será perene e pode acabar a qualquer momento, vá se dissipando com a aprovação de projetos considerados estratégicos.

Essa aproximação recolocou o Centrão no lugar que ele sempre ocupou no Congresso, o posto de fiador da governabilidade. Desde que decidiu abrir de vez o processo seletivo para indicações políticas, o governo conseguiu arregimentar mais de 200 votos entre os 513 deputados federais. Um excelente ponto de partida para quem andava acompanhado de pouquíssimos parlamentares.

Por outro lado, a base não garante a aprovação de propostas de emendas constitucionais. Tampouco dá a segurança desejada por todo governante de que projetos de alto impacto fiscal não prosperarão com facilidade no Congresso. O histórico do Centrão permite que as autoridades do Executivo se perguntem até quando irá durar o discurso de compromisso com a responsabilidade no manejo do Orçamento apresentado por lideranças do grupo.

Zuenir Ventura - Mais uma crise?

- O Globo

O que dizer de governo que troca Mandetta e Teich pelo general?

O que mais tenho ouvido de colegas de geração é “nunca pensei”. “Nunca pensei que fosse viver tantas crises ao mesmo tempo”, “que fosse enfrentar uma pandemia como esta”, “que fosse sentir tanta insegurança” e assim por diante. A mais recente da série é: “nunca pensei que fosse ficar quatro meses trancado em casa”.

Quanto a isso, não tenho do que me queixar. Como nunca fomos de bater pernas na rua, Mary e eu suportamos bem o confinamento, com exceção da saudade dos abraços. O pior vem de fora em forma de notícias sobre a Covid-19: a inconsciência dos que acham que “máscara é coisa de viado”; a prática irresponsável dos que continuam se aglomerando, enfim, a irresponsabilidade dos “responsáveis” pelo país, que teimam em desobedecer às recomendações de ciência e do bom senso.

No domingo à noite, assisti pela GloboNews ao debate entre especialistas sobre a pandemia. Participaram a pneumologista Margareth Dalcolmo, a infectologista Maria Amélia Veras, o biólogo Atila Iamarino e os ex-ministros da Saúde Luiz Henrique Mandetta e seu breve sucessor Nelson Teich.

- Elio Gaspari - A fala de Gilmar acordou um vírus

- O Globo / Folha de S. Paulo

Crises fazem parte da vida, golpes precisam de golpistas

Em abril do ano passado, quando era ostensiva a participação de militares na administração civil de Jair Bolsonaro, o vice-presidente Hamilton Mourão disse o seguinte:

“Se nosso governo falhar, errar demais, não entregar o que está prometendo, essa conta irá para as Forças Armadas, daí a nossa extrema preocupação.”

Entregar o que prometia, o capitão sabe que não entregará. A pandemia e suas superstições confirmaram sua previsão de março: “Se acabar a economia, acaba qualquer governo. Acaba o meu governo.”

Mourão acredita que o ministro Gilmar Mendes “forçou a barra” quando disse que, com a conduta do governo diante da pandemia, “o Exército está se associando a esse genocídio”. Gilmar tem uma queda pelo exagero. Se tivesse dito que o Exército está sendo associado a uma ruína, o vice-presidente não poderia se queixar, pois estaria seguindo o raciocínio que ele enunciou há um ano.

O Ministério da Saúde não tem titular. O general Eduardo Pazuello é um interino e na sua equipe há 24 militares. Com suas certezas epidemiológicas, Bolsonaro jogou-os na fogueira. Nelson Teich, paisano, foi-se embora.

Pinçado, o trecho da fala de Gilmar foi repelido pelo ministro da Defesa e pelos comandantes da Marinha, do Exército e da Força Aérea: “Trata-se de uma acusação grave, além de infundada, irresponsável e sobretudo leviana.”

Se o caso ficasse nisso, seriam salvas trocadas, mas o Ministério da Defesa informa que representará contra Gilmar Mendes junto à Procuradoria-Geral da República.

Foi assim que nasceu o Ato Institucional nº 5. Uma conspiração palaciana manipulou um discurso (irrelevante) do deputado Marcio Moreira Alves para que o governo pedisse licença à Câmara para processá-lo. No dia 12 de dezembro o plenário negou o pedido e no dia seguinte o marechal Costa e Silva baixou o Ato. Foram dez anos de ditadura escancarada, torturas e extermínio. No Ministério da Justiça estava um tatarana. A cabeça militar dessa urdidura foi a de um general miúdo, conspirador incorrigível. Jayme Portella de Mello foi para escanteio anos depois, sem ter conseguido a quarta estrela.

Gilmar reforça críticas e avalia ‘militarização’ da Saúde

Ministro do Supremo volta a afirmar que o Exército pode estar se associando a um “genocídio” devido a ação do governo para combater o novo coronavírus

Por Isadora Peron | Valor Econômico

BRASÍLIA - Após um dia em silêncio, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), reiterou ontem as críticas à permanência de militares da ativa no comando do Ministério da Saúde. Desde maio, a pasta é comandada interinamente pelo general Eduardo Pazuello. Segundo o ministro do STF, a sua posição é em defesa da “institucionalidade das Forças Armadas”.

Mesmo diante da reação do governo e da tentativa do presidente do Supremo, Dias Toffoli, de colocar panos quentes na situação, Gilmar voltou a afirmar que o Exército pode estar se associando a um “genocídio” devido ao avanço do novo coronavírus.

Ontem, durante uma nova live, o ministro do STF comentou a fala de sábado, que causou a forte reação da cúpula militar. O Ministério da Defesa chegou a apresentar uma representação contra Gilmar na Procuradoria-Geral da República (PGR).

Segundo Gilmar, as falas que irritaram a cúpula das Forças Armadas aconteceram em “um contexto puramente acadêmico, em que se discutia a questão da saúde”, com nomes como o médico Drauzio Varella e o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta.

“Todos eles apontaram problemas na gestão administrativa da saúde. Mandetta inclusive usou uma expressão dizendo que, se o general que lá está e que é especializado em logística, talvez fosse mais especializado em balística, tendo em vista número de mortes que ele conseguiu”, disse durante live promovida pelo site “Jota” e o Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

Gilmar também avaliou a recente militarização do Ministério da Saúde como uma tentativa de “neutralizar” o presidente Jair Bolsonaro e transferir a culpa pelo alto número de mortes pela covid-19 para o Supremo e os governadores, depois de a Corte decidir que Estados e municípios também poderiam adotar medidas para enfrentar a pandemia.

“O STF não disse que os Estados são responsáveis pela saúde, disse apenas que é uma competência compartilhada, como está no texto constitucional. Mas o presidente esquece essa parte”, afirmou.
Para o ministro, se essa for a intenção do presidente, “isso é um problema e acaba sendo um ônus para as Forças Armadas, para o Exército, porque eles estão lá inclusive na condução de oficiais da ativa”.

Gilmar também usou novamente a expressão “genocídio” e disse que este tema está sendo levantado internacionalmente, diante da preocupação com o avanço da doença entre as comunidades indígenas. “Como vocês sabem, estou na Europa. Participamos recentemente de um webinar com [o fotógrafo] Sebastião Salgado e a temática foi toda de ameaça aos povos indígenas. Salgado liderou um grupo apontando que o Brasil pode estar cometendo genocídio. Então é esse debate. A responsabilidade que possa ocorrer”, afirmou.

Segundo o ministro, a sua posição é em defesa das Forças Armadas. “Na verdade, o meu discurso é de defesa da institucionalidade das Forças Armadas, do seu papel, que eles acabem não se envolvendo [em brigas políticas]. Não se deixem usar nesse contexto”, disse.

Mais cedo, Gilmar já havia divulgado uma nota oficial dizendo ter “respeito” pelas Forças Armadas, embora reafirmasse as críticas que havia feito.

Sob pressão, Bolsonaro vai avaliar nomes para a Saúde

Troca do interino, general Pazuello, começa a ser preparada em meio ao embate do Ministério da Defesa e as Forças Armadas com o ministro do Supremo Gilmar Mendes

Jussara Soares e Fausto Macedo| O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - Diante da pressão sofrida após dois meses sem um titular no Ministério da Saúde durante uma pandemia que já matou mais de 70 mil brasileiros, o presidente Jair Bolsonaro começará a avaliar candidatos para assumir o posto tão logo termine o seu período de quarentena por também ter sido contaminado pelo coronavírus. Auxiliares e interlocutores do Palácio do Planalto preveem que um novo ministro seja anunciado até meados de agosto.

A substituição do interino, general Eduardo Pazuello, começa a ser preparada em meio ao mais novo embate entre as Forças Armadas e um integrante do Supremo Tribunal Federal (STF), que desencadeou uma nova crise entre os Poderes. No sábado, 11, o ministro do Supremo Gilmar Mendes disse que o Exército estava se associando a um “genocídio” ao se referir à crise sanitária instalada no País com a covid 19. A frase mirou os 20 militares que ocupam cargos estratégicos na Saúde, dos quais 14 na ativa.

O ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, reagiu e ingressou na terça-feira, 14, com uma representação na Procuradoria-Geral da República (PGR) contra Mendes. Ao acionar a PGR, Azevedo usou parecer da consultoria jurídica que aponta crime contra a honra previsto no Código Penal e menciona o artigo 23 da Lei de Segurança Nacional. De acordo com este artigo, constitui crime incitar a animosidade entre as Forças Armadas. O documento também cita o Código Penal Militar, que, em determinados casos, pode incidir sobre civis. Se forem vistos indícios de crime ou conduta ilegal na posição de Gilmar, a PGR poderá decidir pelo prosseguimento da investigação. Caso contrário, a notícia de fato será arquivada.

Brasil completa dois meses sem titular à frente do Ministério da Saúde

Para funcionários e cientistas, pasta está à deriva justamente quando deveria conduzir o enfrentamento da crise sanitária mais grave do século

- O Globo

BRASÍLIA - Quase dois meses após a saída do ex-ministro Nelson Teich, o Ministério da Saúde sob comando interino e gestão militar mudou protocolos e rotinas, além de enfrentar dificuldades para cumprir algumas promessas, como a distribuição de 46 milhões de testes. Com a chegada dos militares à pasta, representados no posto máximo pelo ministro interino, Eduardo Pazuello, o ministério mergulhou em um clima interno de medo e desconfiança. Na visão de funcionários, cientistas e gestores públicos, a pasta está à deriva justamente quando deveria conduzir o enfrentamento à crise sanitária mais grave do século.

Pazuello viu a curva de casos e óbitos crescer vertiginosamente durante os 61 dias de sua gestão. Em 14 de maio, o Brasil tinha uma média de 9.627 casos diários; ontem, eram 36.650. Em relação aos óbitos, a média passou de 686 mortes para 1.056 no mesmo período.

— É uma situação sem precedentes no mundo. As entidades globais não conseguem entender como o país que é o segundo em número de óbitos do mundo não tem um ministro efetivo, apenas um interino que não se pronuncia e não transmite nenhum tipo de mensagem num momento crítico do país — diz Miguel Nicolelis, coordenador do comitê científico do consórcio de governadores do Nordeste.

Ao longo da gestão de Pazuello, em alguns casos, a pasta, que deveria seguir à risca evidências científicas, fez claramente a vontade do presidente Jair Bolsonaro, como nas orientações sobre o uso dos remédios cloroquina e hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19, e na frustrada tentativa de alterar a forma de divulgação dos dados da doença. Nesse tempo, o ministério também passou a recomendar que as pessoas passem a buscar unidades de saúde mesmo com sintomas leves.

Debate aberto e violência – Editorial | O Estado de S. Paulo

Não há construção da justiça onde vige a lei do mais forte, que pode ser quem ataca de forma mais fulminante nas redes sociais

Três dias depois do assassinato de George Floyd em Minneapolis, David Shor, um cientista político norte-americano de 28 anos, compartilhou em sua conta no Twitter o resumo de uma pesquisa de Omar Wasow, professor da Universidade de Princeton, comparando os efeitos de protestos violentos e pacíficos pelos direitos civis na década de 60. Segundo o estudo, as manifestações não violentas foram mais eficazes na promoção desses direitos.

A postagem de David Shor recebeu inúmeras críticas, sendo acusada de racismo e condescendência com a violência policial. Entre as reações, houve quem tenha exigido que o cientista político perdesse o emprego. De fato, dias depois, a empresa Civis Analytics demitiu David Shor.

Infelizmente, o caso acima é apenas mais um entre tantos outros. A chamada “cultura do cancelamento” tem levado a uma crescente onda de intolerância. Recentemente, mais de 150 professores, escritores e artistas denunciaram, em carta publicada na revista Harper's, o estreitamento do debate público em nome de uma suposta justiça social.

No caso do tuíte de David Shor, ainda que seu objetivo fosse tornar a causa mais eficaz, a mera reflexão sobre o comportamento dos ativistas despertou revolta e violência. Tal reação, seja qual for sua inspiração, afronta de forma inequívoca as liberdades e garantias individuais. Num Estado Democrático de Direito, cada um deve se sentir muito à vontade para dizer o que pensa, sem medo de ameaça ou represália. O que uma pessoa diz, por mais que contrarie determinados interesses ou pessoas, não é motivo para que ela seja perseguida por quem foi contrariado.

O lado da balança – Editorial | Folha de S. Paulo

Toffoli acirra tensões ao interferir em disputa interna no Ministério Público

Tem grande alcance a decisão tomada pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, que interveio na disputa em curso entre a Procuradoria-Geral da República e as forças-tarefas da Operação Lava Jato em três estados.

Em despacho, o ministro determinou que os investigadores compartilhem com a cúpula do Ministério Público todas as bases de dados que acumularam desde o início da operação, há seis anos.

O procurador-geral, Augusto Aras, tenta acessar as informações sigilosas desde maio, quando apresentou como justificativa às forças-tarefas estaduais a necessidade de maior coordenação das investigações sobre corrupção.

Os procuradores da Lava Jato se recusaram a atendê-lo, argumentando que não poderiam compartilhar informações tão sensíveis sem autorização judicial —e sem que o acesso tivesse objeto definido.

Mazelas do excesso de militares no governo – Editorial | O Globo

Oficiais da ativa não devem ter cargos, para evitar arranhar a imagem das Forças Armadas

Não se sabe ao certo a intenção do presidente Bolsonaro ao povoar seu governo de militares, alguns da ativa. Mas o que se observa é que essa predileção castrense tem funcionado como um escudo para o Planalto e tem sido motivo de curtos-circuitos desnecessários, próximos de crises institucionais, quando, num exemplo real, alguma decisão da Justiça desgosta oficiais. Entre eles há alguns da ativa, equivocadamente convocados a preencher cargos na máquina do Estado, que, se deve ser laico, também não pode se submeter a qualquer estamento civil ou militar.

Reconhecer isso não significa que se concorde com os termos usados pelo ministro do Supremo Gilmar Mendes, que, numa live, criticou o fato de o Ministério da Saúde estar nas mãos de um general de divisão da ativa especializado em logística, Eduardo Pazuello, dizendo que o “Exército está se associando a um genocídio”. Pode não ser cabível fazer esta associação do Exército com os mais de 74 mil mortos pela Covid-19, número que continua em ascensão, mas deve-se reconhecer que a solução dada por Bolsonaro para impor vontades nada científicas à Saúde não é boa para a população nem para as Forças Armadas.

Militares já reconhecem que é ruim para a instituição que oficiais da ativa tenham cargos no governo. Numa decisão sensata, o general Luiz Eduardo Ramos, que acumulava o posto militar com o cargo de ministro da Secretaria-Geral de Governo, anunciou sua passagem para a reserva. Sabe-se que Pazuello está sendo aconselhado a fazer o mesmo. O incidente com Gilmar Mendes deveria apressar este desfecho.

Inflação em tempos normais e durante a pandemia – Editorial | Valor Econômico

A drástica recessão tira o fôlego dos preços

A inflação é aferida por medidas que refletem padrões de consumo sedimentados em um período determinado de tempo. A pandemia do novo coronavírus não apenas alterou o tempo percebido, com milhões de pessoas em drástico isolamento social, como os próprios padrões de gastos. Nessa mudança, a covid-19 pode ter jogado tanto a favor da deflação como contra, dependendo dos pesos adotados para a confecção de índices que reflitam para onde foi o consumo durante a pandemia. No Brasil, seu papel foi deflacionário, como o IPCA mostrou em abril e maio, em grande medida pela impossibilidade de que determinados itens fossem consumidos, ou foram consumidos em volume muito mais baixo do que em épocas normais. A medida da inflação usual e da inflação com as transformações provocadas pela covid-19 são diferentes. Por um dos raros cálculos ensaiados para o Brasil, a inflação oficial está em 2,13% em doze meses, mas por um ‘índice covid-19’ é maior em algo como meio ponto percentual.

O economista Alberto Cavallo, de Harvard, utilizou uma montanha de dados de compras de cartão de crédito e débito nos Estados Unidos durante a pandemia para montar uma nova “ponderação” de inflação com eles e compará-los à inflação oficial (CPI). Observou, por exemplo, que o CPI em doze meses encerrados em abril - o fundo do poço para a economia americana e também para a brasileira - foi de 0,35%, enquanto que seu “índice covid” foi de 1,06%. Estendeu depois esse experimento, com adequações necessárias, a 16 países, com algumas adaptações nos índices oficiais.

Os resultados não são um retrato exato da inflação corrente, mas se aproximam deles e indicam a direção real do índice em uma época excepcional. No caso do Brasil, a deflação mensal de abril, de -0,28%, se transforma em inflação de 0,20% na cesta covid-19. Em 12 meses, a diferença é mais nítida, de 2,1% no IPCA e 2,76% sob a nova medida. Com isso, a inflação brasileira não estaria de fato abaixo do piso da meta (2,5%). Cavallo apenas menciona números do Brasil, sem comentários. Uma das explicações é que o aumento do preço dos alimentos - com variação no ano de 4,09% até junho e 7,61% em doze meses - não só trouxe vida curta aos impulsos deflacionários provocados pela pandemia, como os suplantou depois. Uma implicação é que o IPCA também chegou ao fundo do poço em abril e maio, e seu caminho agora é para cima, com intensidade dependente da recuperação da economia.

Arte na rua pode ajudar recuperação do setor no pós-pandemia, diz produtor cultural

Jorge Freire aposta que solução da crise nessa área passa pela ocupação de espaços públicos

Regiane Jesus | O Globo

RIO — O futuro das artes pode estar no caminho de volta às suas origens. Ruas, praças, parques e outros espaços ao ar livre ocupados com espetáculos de dança, música e teatro é o que o ator e produtor cultural Jorge Freire espera ver quando a pandemia da Covid-19 passar e o artista puder ir aonde o povo está. Esse cenário democratizaria o acesso às manifestações artísticas no momento em que tudo leva a crer que os ingressos para eventos estarão com os preços elevados, efeito inevitável da redução das plateias em locais fechados. Mas para que o desejo deste morador da Tijuca se torne realidade, é preciso que haja políticas públicas nesse sentido.

— A ocupação do espaço público é uma vocação natural do carioca, sobretudo nos subúrbios. Acredito que a reconstrução do setor pós-pandemia pode estar no incentivo à efervescência cultural que acontece, por exemplo, em Madureira, e que pode se fazer presente em outros bairros da Zona Norte. A Praça Varnhagem, na Tijuca, tem uma grande ebulição gastronômica, mas pode ganhar investimentos públicos em economia criativa. Por que não? O acesso à cultura é um direito constitucional que sob hipótese alguma está abaixo de outros direitos, como saúde e educação. A capacidade criativa brasileira é nosso maior patrimônio cultural, e é dever dos governantes potencializá-la.

Mais do que um direito constitucional, a cultura é uma necessidade básica para a existência humana e um motor de peso para a economia nas esferas municipal, estadual e federal, assegura Freire:— A arte é essencial não só para nos salvar do tédio imposto por essa crise causada pelo novo coronavírus, mas também para nos levar à reflexão, nos unir como povo, pavimentar uma identidade nacional que faz o retrato do que somos. Não podemos perder a dimensão que a cultura tem, em especial no Rio, onde o turismo, o carnaval, a música, são importantes vetores econômicos no campo do entretenimento. Não dá para abrir mão da cultura, achar que esse setor é algo menor.

Ruy Castro* - Grande ano, 1920

- Folha de S. Paulo

Há 100 anos nasciam Elizeth Cardoso, Amália Rodrigues, Peggy Lee e outras vozes fabulosas

Elizeth Cardoso faria 100 anos amanhã (16). Estão em curso várias homenagens, dignas de uma artista a quem nunca faltou reconhecimento. Ela era a Divina, a Magnífica, a Meiga, a Enluarada. Elizeth viveu sob o peso desses adjetivos, aos quais fazia jus com sua grande classe como cantora e mulher —sem afetação e sem pose, mas também sem se rebaixar de Elizeth. Sabia quem era e o que valia.

Uma de suas poucas iguais no século, só que portuguesa, também estaria chegando aos 100 anos: Amália Rodrigues, no dia 23. O fato de essas cantoras terem construído universos tão distintos e fascinantes na mesma língua é um tributo à riqueza e maleabilidade desta língua. Mas a arte que praticavam parece em extinção —já não se exige “cantar bem”, como elas faziam.

Música | Sonho Estranho | Moacyr Luz e Samba do Trabalhador - com Chico Alves

Poesia | Ferreira Gullar - Dois e dois: quatro

Como dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena
embora o pão seja caro
e a liberdade pequena

Como teus olhos são claros
e a tua pele, morena
como é azul o oceano
e a lagoa, serena

como um tempo de alegria
por trás do terror me acena
e a noite carrega o dia
no seu colo de açucena

— sei que dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena
mesmo que o pão seja caro
e a liberdade, pequena