- O Estado de S. Paulo
Plano de Trump para a saúde deixará cerca de 14 milhões sem cobertura já no primeiro ano
Os tempos estão favoráveis à distopia. Títulos como 1984, de George Orwell, The Handmaid’s Tale, de Margaret Atwood, It Can’t Happen Here, de Sinclair Lewis, vendem como água na Amazon e nas livrarias. Recentemente, reli os três. A excelente introdução do romance de Sinclair Lewis faz breve resumo da situação política nos EUA em meados dos anos 30.
Enquanto movimentos “nacional-socialistas” espalhavam-se na Europa, Franklin D. Roosevelt (FDR) estava cada vez mais encurralado ante os escombros da Grande Depressão. Surgiam retóricas populistas inflamadas nas vozes de Huey Long e Charles Coughlin (“Father Coughlin”). Escrevem os autores da introdução à fabulosa obra de Sinclair Lewis: “Soluções imediatas eram demasiado importantes para que fossem oneradas por detalhes e fatos inconvenientes; era suficiente que Long defendesse a justiça de uma proteção de cinco mil dólares aos valores dos imóveis por ocasião da morte de um de seus donos, além de uma renda adicional de dois mil dólares por ano para cada família americana dada pelo Estado”. Em meados dos anos 30, cinco mil e dois mil dólares eram muito dinheiro.
Como se sabe, não houve populismo nos EUA na década de 30, não nos moldes de Long ou de Father Coughlin. Houve o New Deal de FDR, e, logo em seguida, a Segunda Guerra Mundial. Avancem 82 anos no tempo. Em pleno 2017, surge a urgência das soluções imediatas e o repúdio aos detalhes e aos fatos inconvenientes. A diferença é que, se nos anos 30 os fatos inconvenientes previam que os planos de Huey Long para pôr dinheiro no bolso dos americanos mais pobres eram incompatíveis com o orçamento, na segunda metade da segunda década do Século XXI os fatos inconvenientes revelam como as políticas propostas pelo partido de Donald Trump são espécie de Robin Hood às avessas.
Temos hoje nos EUA o primeiro caso de um populista que promete destituir seus eleitores já destituídos, sem aceitar que é isso que está prestes a fazer. Temos também o primeiro caso de um partido - o Republicano - que retira benefícios de sua própria base e põe em risco a maioria conquistada no Congresso nas eleições de 2018. O instrumento? O American Health Care Act (AHCA), plano de reforma da saúde descortinado recentemente por seu principal defensor - Paul Ryan, porta-voz da Câmara -, cujo objetivo maior é enterrar a reforma de Obama, conhecida como Obamacare.
De acordo com o relatório produzido pelo Congressional Budget Office (CBO) - a instituição de monitoramento fiscal apartidária cuja finalidade é avaliar o impacto de leis e políticas públicas -, o AHCA deixará cerca de 14 milhões de pessoas sem seguro-saúde durante o primeiro ano de vigência da nova lei. Até 2026, serão 24 milhões os que não mais terão possibilidades de pagar um seguro-saúde minimamente razoável. Nos EUA, não há SUS, o sistema é inteiramente privado, à exceção do programa Medicaid para os mais pobres, o mesmo Medicaid que os Republicanos querem encolher, tornando-o despesa não obrigatória. O detalhe? O populista que ronda os corredores labirínticos da Casa Branca prometeu em campanha não tocar no Medicaid. Sua base de eleitores tomou suas palavras literalmente e seriamente.
Essa mesma base agora haverá de encarar números estarrecedores. Mostra o CBO em suas simulações que um indivíduo de uns 60 anos que receba cerca de US$ 26 mil por ano de renda verá o prêmio de seu plano de saúde aumentar 750% ao longo dos próximos anos em relação ao que dita a lei atual. Indivíduos dessa faixa de renda que moram no cinturão de ferro e nos Estados rurais constituem os eleitores de Trump, a quem Hillary Clinton referiu-se de modo extremamente infeliz como “deploráveis”. Ela os chamou de deploráveis; ele os trata como deploráveis. Enquanto isso, o plano de Ryan que Trump defende sob a fúria de Republicanos dissidentes e Democratas, preserva os mais ricos, os mais jovens e os mais saudáveis de brutal aumento no custo da saúde. Eis o populismo norte-americano.
O populista ronda seu labirinto, telefone em mãos, prestes a tuitar desaforos. Sinclair Lewis revira-se no túmulo. Definitivamente, a ficção já não dá conta da realidade.
*Economista e pesquisadora do Peterson Institute for International Economics, é professora da Sais/Johns Hopkins University