segunda-feira, 31 de maio de 2021

Marcus André Melo* - Emendas orçamentárias

- Folha de S. Paulo

O jogo político não ocorre entre o Executivo e o Legislativo, nem após aprovação da lei orçamentária

 “A cada momento, para se votar projetos tem que entrar em negociações: eu emendo isso, você emenda aquilo, eu apoio essa emenda, você apoia a outra, sem o que a vida parlamentar se torna impossível.”

A afirmação é de Carlos Lacerda, o parlamentar mais “intransigente” de nossa história.

E citava casos em que colaborou com adversários e vice-versa: “A Câmara funciona como uma espécie de clube, o que acho profundamente civilizado pois não há nenhuma incompatibilidade entre a divergência na tribuna e as relações pessoais”.

Sim, emendas parlamentares fazem parte do rame-rame da política, mas o jogo em torno das emendas orçamentárias não. Nas democracias estabelecidas há intenso toma-lá-dá-cá (“logrolling ou horsetrading”, no léxico político anglo-saxônico). Mas o jogo não ocorre entre o Executivo e o Legislativo, nem após aprovação da lei orçamentária. Explico.

Nas democracias parlamentaristas nos países que adotam o chamado modelo de Westminster (das ex-colônias britânicas), a não aprovação do Orçamento como enviado pelo Executivo equivale a um voto de desconfiança no governo, levando a sua queda. O gabinete não é nada mais senão uma supercomissão com funções executivas e sua existência significa, na prática, a existência de uma maioria parlamentar.

Sergio Lamucci - Os riscos ao cenário de crescimento mais forte

- Valor Econômico

Inflação, pandemia e crise hídrica são ameaças à atividade

As perspectivas para o crescimento da economia brasileira em 2021 melhoraram nas últimas semanas, levando a uma onda de revisões para cima nas estimativas de bancos e consultorias. A atividade sofreu menos do que se esperava com as medidas de restrição à mobilidade adotadas especialmente em março e abril, devido ao recrudescimento da pandemia. O bom momento das exportações, impulsionado pela alta dos preços de commodities, também ajuda. Depois de um período em que muitos analistas viam um avanço do PIB na casa de 3% neste ano, hoje grande parte das previsões está acima de 4%, havendo quem aposte num crescimento de 5%, como o Itaú Unibanco.

O cenário de fato é melhor do que se projetava há algumas semanas, mas ainda há vários riscos para a atividade. A inflação continua elevada, corroendo o poder de compra dos salários, e o mercado de trabalho segue fraco. Além disso, há a ameaça de problemas na oferta de energia elétrica, por causa da crise hídrica. Primeiro, ela pressiona ainda mais a inflação - a bandeira vermelha 2 será acionada em junho, encarecendo as contas de luz, o que pode levar o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) a superar 8% no acumulado em 12 meses até meados do ano. Também há obviamente o risco de afetar a expansão da economia. Outro ponto é que uma possível terceira onda da covid-19 pode desacelerar o ritmo de atividade, se exigir medidas mais rigorosas de distanciamento social. Para completar, ainda há incertezas sobre a situação das contas públicas, embora a percepção sobre o quadro fiscal tenha melhorado um pouco.

Celso Rocha de Barros – Quem matou 90 mil sem vacina?

- Folha de S. Paulo

Senadores governistas tentam desviar foco da CPI com cloroquina

Dois fatos apurados pela CPI da pandemia, ambos documentados, mostram, sozinhos, que o número de brasileiros que comprovadamente morreram por culpa de Jair Bolsonaro durante a pandemia já se aproxima de 100 mil. Como calculamos duas colunas atrás, 100 mil mortos é mais do que a soma das vítimas de todos os assassinos brasileiros em 2019 e 2020.

A primeira decisão foi a de não aceitar a oferta de vacinas da Pfizer. Na estimativa do epidemiologista Pedro Hallal, utilizando parâmetros conservadores (isto é, desfavoráveis à hipótese de que a decisão de Bolsonaro custou vidas), 14 mil brasileiros (5.000 no mínimo, 25 mil no máximo) teriam sido salvos se a oferta da Pfizer tivesse sido aceita. Uma única decisão: 14 mil pessoas morreram por ela.

A segunda decisão foi a de não aceitar a proposta do Instituto Butantan para entregar 45 milhões de vacinas da Coronavac ainda em 2020. A mesma conta feita pelo professor Hallal estimou em 81,5 mil (80,3 mil no mínimo, 82,7 mil no máximo) o número de brasileiros que não teriam morrido se a oferta do Butantã tivesse sido aceita. Outra estimativa, feita pelo jornal O Estado de S. Paulo, mostrou que as vacinas do Butantan teriam sido suficientes para vacinar todos os idosos brasileiros até fevereiro. Entre o meio de março e semana passada, morreram 89.772 idosos brasileiros.

Ricardo Noblat - Manifestações superaram as expectativas dos bolsonaristas

- Blog do Noblat / Metrópoles

Sem partido há mais de um ano, o presidente da República procura uma legenda onde ele e os filhos possam mandar em tudo

Pergunta que tão cedo será respondida: se a pandemia da Covid-19 estivesse em baixa, quantas pessoas a mais teriam comparecido às manifestações contra o governo do presidente Jair Bolsonaro que aconteceram no último sábado em todas as capitais do país, menos em Rio Branco, em Brasília e em mais de 100 municípios?

A resposta só poderá ser dada depois vencida a terceira onda da doença que está por vir, e do avanço da vacinação em massa que não será concluída tão cedo, podendo arrastar-se pelos meses iniciais de 2022. Aos cochichos, e a salvo dos jornalistas, ministros do governo, porém, reconhecem que elas superaram o que se esperava.

A pressa em avaliar seu tamanho fez os três filhos zero de Bolsonaro passarem vergonha, mas eles não ligam para isso. Flávio Bolsonaro, senador, debochou dos manifestantes em Porto Velho, onde esteve no fim de semana. Eduardo Bolsonaro, deputado, comentou um vídeo editado para mostrar que havia pouca gente.

Carlos Bolsonaro, vereador, comandante in pectore do gabinete do ódio que funciona no Palácio do Planalto, fez o de sempre – defendeu o pai, que considera um injustiçado e inocente dos crimes que lhe imputam. Generais da reserva falaram em procurar um candidato alternativo a Bolsonaro para derrotar Lula.

Entre os muitos problemas que tem pela frente para recuperar parte da popularidade perdida e disputar a eleição do ano que vem com chances de ganhar, Bolsonaro não pode demorar a resolver pelo menos um: o do partido ao qual se filiará. Os principais partidos do Centrão o apoiam, mas não lhe abrem as portas.

Como abrir se em determinados Estados eles estarão coligados com partidos de esquerda? De resto, preferem gastar os recursos do Fundo Partidário com as eleições de governadores, deputados e senadores. Com bancadas maiores no Congresso, negociarão cargos com o presidente que for eleito, não lhes importa qual seja.

Bruno Carazza* - A voz das ruas

- Valor Econômico

Esquerda e direita se aglomeram em nome da política

E o povo voltou para as ruas. Abandonando as recomendações da ciência de que é preciso evitar aglomerações a fim de se evitar uma terceira onda da covid, milhares de pessoas lotaram as cidades do país nos dois últimos fins de semana em nome da política.

Embora o senso comum atribua ao brasileiro uma natureza passiva e conformista, não foram poucos os episódios de nossa história em que a população se indignou e se mobilizou em massa reivindicando mudanças. Das revoltas populares no Império (Cabanagem, Balaiada, Sabinada, Farroupilha), passando pela Revolta da Vacina (1904), as greves operárias na década de 1920, os movimentos a favor e contra a ditadura militar (1964-1968) e chegando mais recentemente às Diretas Já (1984) e ao impeachment de Collor (1992), milhares ou milhões marcharam em favor de causas variadas.

Esquerda e direita se aglomeram em nome da política

Em junho de 2013, porém, algo diferente aconteceu. Sua dinâmica e sobretudo suas consequências ainda são motivo de estudos e controvérsias, mas o fato é que, articuladas nas redes sociais, as manifestações cresceram em número de participantes, abrangência territorial e diversidade de reivindicações, numa velocidade sem precedentes em nossa história.

Carlos Pereira* - A ameaça fantasma

-  O Estado de S. Paulo

É precoce apostar num vencedor sem saber quem vai estar na final

Em pesquisa do Datafolha, realizada nos dias 20 e 21 de janeiro de 2021, foi perguntado “quem estaria fazendo mais pelo Brasil no combate ao coronavírus: o presidente Jair Bolsonaro ou o governador de São Paulo, João Doria”. Uma maior parcela, 46%, escolheu o governador Doria.

Mesmo diante dos desgastes provenientes dos sucessivos erros na gerência da pandemia, que levaram à morte mais de 456 mil vítimas da covid-19, 28% das pessoas ainda atribuíram ao presidente Bolsonaro o papel mais relevante no combate da pandemia.

Esses resultados são contraintuitivos, especialmente quando se observa que das 40 milhões de pessoas (19% da população) que já se vacinaram com a primeira dose ou das 20 milhões (9,5%) que se vacinaram com as duas doses, em torno de 65% receberam a vacina Coronavac, 33% a da AstraZeneca e 2% a da Pfizer.

Ou seja, sem a tenacidade do governador Doria e da eficiência do Instituto Butantan, apenas 6,6% da população teria sido vacinada até o momento com a primeira dose e somente 3% com as duas doses.

Por mais inusitado que possa parecer, em vez de almoçar com o governador Doria do PSDB e ajudá-lo em uma campanha de nacionalização de seu nome, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (presidente de honra do PSDB) preferiu almoçar com o ex-presidente Lula.

Além de Doria, o PSDB possui pelo menos dois outros pré-candidatos à Presidência para as eleições de 2022: o senador pelo Ceará, Tasso Jereissati, e o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite. Pelo que se sabe, FHC também não convidou nenhum deles para almoçar nem os consultou sobre a pertinência do convite recebido para encontrar Lula.

A suposta justificativa de FHC para o encontro com Lula seria a necessidade de juntar forças em prol da “frágil” e “indefesa” democracia brasileira, que estaria sob ameaça iminente de quebra institucional com Bolsonaro. Para derrotar Bolsonaro em 2022, FHC já anunciou que votaria no petista no segundo turno e que também se arrependia de não ter votado em Haddad em 2018. 

Adesão a atos contra Bolsonaro estimula oposição

Legendas de esquerda, como PT e PSOL, acreditam que apoio às manifestações de sábado demonstrou queda sistêmica da popularidade do presidente

Guilherme Caetano e Paulo Capelli / O Globo

SÃO PAULO E BRASÍLIA — A adesão às manifestações contra o presidente Jair Bolsonaro, no fim de semana, gerou uma onda de entusiasmo entre partidos de esquerda — e de surpresa nos aliados do Palácio do Planalto. Líderes de partidos como o PSOL defendem novos atos para fortalecer um eventual processo de impeachment. PT e PDT querem uma análise mais cautelosa sobre os próximos passos, principalmente diante do risco de uma terceira onda de contaminação pela Covid-19.

Para integrantes do PT e do PDT, os atos de anteontem foram um exemplo do que as pesquisas eleitorais vêm demonstrando: a perda sistemática de apoio do presidente.

Presidente do PT, Gleisi Hoffmann acredita que os atos fortalecem tanto a luta pelo impeachment, quanto servem como impulso às articulações da oposição de olho em 2022. Os próximos passos, diz ela, serão definidos ao longo da semana:

— Nós vamos ter uma reunião com as frentes (Povo Sem Medo e Brasil Popular) para fazer a avaliação dos atos e da luta a seguir.

Gleisi nega que os atos sirvam como instrumento de campanha para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Porém, no ato do Rio, o Lula recebeu até mesmo um boneco inflável com uma faixa presidencial. Presente na manifestação na Avenida Paulista, em São Paulo, a petista diz que as manifestações são contrárias a Bolsonaro.

Carlos Lupi, presidente do PDT, concorda com a necessidade de atos de rua, apesar da pandemia. A expectativa, segundo ele, é que esse tipo de evento se tornará mais frequente na medida em que a vacinação avance. Ele nega, no entanto, que esse cenário fortaleça uma eventual polarização entre Lula e Bolsonaro.

— É o que eles (bolsonaristas) querem — diz Lupi.

Guilherme Boulos (PSOL) é francamente favorável à continuidade dos atos:

— Existe um clima real para construir um impeachment, tanto pelos crimes já cometidos quanto pela CPI no Senado. As ruas sinalizaram isso ontem, com responsabilidade, usando máscaras. A gente precisa se opor ao negacionismo, mas não pode esperar por 2022.

Porta-voz da Coalizão Negra por Direitos, um dos organizadores dos atos de sábado, Douglas Belchior defende um calendário permanente de mobilização.

— Não tem queda de presidente sem povo na rua, nem no Brasil nem no mundo. Derrubar o Bolsonaro só será possível se a rua continuar fervendo. O grande desafio dos movimentos sociais agora é como avançar na mobilização — diz.

O senador Humberto Costa (PT-PE), prega cautela:

— Foi necessária uma ação concreta, mas espero que pare por aí, porque especialistas vêm alertando para a possibilidade de uma terceira onda de infecções por Covid-19 — diz ele.

Fernando Gabeira - O neocinismo dos generais

- O Globo

O general Pazuello disse na CPI que estava sem máscara num shopping de Manaus porque estava precisamente procurando máscara para comprar. Na manifestação no Rio, ele apareceu sem máscara, foi chamado de “meu gordinho” por Bolsonaro e saudou “a galera que apoia o presidente”.

Como explicar essa falta de seriedade no comportamento público de um general? Pazuello já havia antecipado a explicação na própria CPI.

Questionado sobre a frase “um manda, o outro obedece”, ele respondeu que isso é apenas uma coisa de internet. Na opinião dele, a internet é um espaço onde se pode falar qualquer coisa, sem o mínimo compromisso com a verdade ou a coerência.

O general Augusto Heleno, numa convenção do PSL, cantou o seguinte verso: “Se gritar pega Centrão, não fica um meu irmão”. Todos riram porque associaram Centrão a ladrão com rapidez.

Perguntado sobre isso, depois que Bolsonaro fez um acordo com o Centrão, o general Heleno sugeriu que o Centrão nem existe mais e que sua frase faz parte do show da política.

Assim como o general Pazuello vê a internet como um espaço onde se pode falar tudo, o general Heleno equipara a política a um show, sem correspondência com a realidade da vida do país.

Demétrio Magnoli - A casta


- O Globo

São “parasitas” que estão matando o “hospedeiro”? A sentença emitida por Paulo Guedes, como quase tudo que fala o já não tão poderoso ministro, é uma generalização estúpida. Nas suas desigualdades internas, o funcionalismo público é quase um microcosmo do conjunto da sociedade brasileira. Mas sua elite forma, de fato, uma casta aristocrática que extrai recursos vitais dos brasileiros comuns, amplificando a concentração de renda.

A casta está incrustada no funcionalismo federal: segundo o Ipea, em 2017, os servidores municipais tinham salário médio de R$ 2,9 mil, contra R$ 5 mil dos estaduais e R$ 9,2 mil dos federais. O Congresso e, especialmente, o Poder Judiciário formam os ecossistemas da casta: no Executivo, o holerite médio era de R$ 3,9 mil, contra R$ 6 mil dos funcionários do Legislativo e R$ 12 mil dos servidores do Judiciário.

Raymundo Faoro iluminou, nos idos de 1958, a relação intrínseca entre o poder estatal e o estamento dos servidores públicos. A conversão patrimonial do bem nominalmente público em propriedade privada — a prática sistemática de “tosquiar” a sociedade — expressa-se, entre tantas formas, na remuneração da casta. Os funcionários federais ganhavam, em média, 96% mais que os trabalhadores de empresas privadas, sempre em 2017. No Judiciário, 4,2% dos funcionários recebiam salários superiores a R$ 30 mil.

Getúlio Vargas esculpiu a transição para a economia urbano-industrial criando a moderna burocracia estatal e lançando as sementes da casta. Os filhos dos fazendeiros tornaram-se bacharéis. O PT, partido apoiado nos sindicatos de servidores, completou a obra varguista. Nos governos Lula e Dilma, o gasto com pessoal saltou de cerca de R$ 200 bilhões para mais de R$ 300 bilhões, já descontada a inflação.

Eduardo Affonso - A via-crúcis da terceira via

- O Globo

Bolsonaro é a segunda pior coisa que já aconteceu ao Brasil. A pior foi Lula, que, além de tudo, nos legou Bolsonaro — uma “herança maldita” que corre o risco de se prolongar por mais quatro anos. O ex e o atual presidente se tomam mutuamente como antimodelos (no popular, como bicho-papão). Mas se retroalimentam: um é o esmeril onde o outro afia as garras.

Lulopetismo e bolsonarismo, hoje apresentados como os únicos caminhos politicamente viáveis, estão longe de ser simétricos, mas não são assim tão antagônicos. Vão dar no mesmo lugar: a negação da política, o desprezo pelo diálogo.

A expressão “terceira via” não ajuda muito. Ficou marcada como um Frankenstein com cérebro de capitalista e coração socialista. Mas aqui nomeia algo que nos liberte de um círculo vicioso, de uma espiral de hostilidade que torna a cada dia mais difícil desfazer o nó do “nós x eles”. Conseguimos não nos unir nem mesmo diante de uma pandemia que já matou quase meio milhão de brasileiros — ao contrário, encontramos nela combustível para nos afastar ainda mais.

Bela Megale - Por que Lula não participou dos atos contra Bolsonaro

- O Globo

Com seu rosto e nome estampados em parte das manifestações realizadas contra Bolsonaro no último sábado, Lula preferiu não comparecer aos atos e nem se manifestar publicamente. A pessoas próximas, porém, o ex-presidente deixou claro que considerou o movimento positivo. Segundo aliados do petista, ele avalia que os atos mostraram que há capacidade de mobilização da esquerda.

Para integrantes da cúpula do PT, incluindo o próprio Lula, os protestos também evidenciaram menor capacidade de mobilização de bolsonaristas. Enquanto opositores de Bolsonaro foram às ruas em capitais de todos Estados e em muitas cidades do interior, os últimos protestos realizados pelos apoiadores do presidente, inclusive com a presença de Bolsonaro, aconteceram de forma mais isolada em Brasília e, semanas depois, no Rio de Janeiro.

Malu Gaspar - A violência da PM em Recife e o perigo de conflitos em 2022

- O Globo

A comparação entre a postura da Polícia Militar nos protestos do último sábado, contra Bolsonaro, e na manifestação do final de semana anterior, a favor do presidente, traz um alerta preocupante para as eleições de 2022: o de que o bolsonarismo enraizado nas polícias e a insubordinação contra governadores de oposição ao presidente possa  provocar ainda mais conflitos num ambiente político já polarizado e conflagrado. 

Na motociata a favor de Bolsonaro, no Rio de Janeiro, havia mais de mil policiais militares, mas a única pessoa agredida foi um jornalista – e pelos próprios manifestantes, hostis à presença da imprensa. 

No ato em Recife, a escaramuça começou sem motivo aparente, e foi desencadeada pela própria PM - contra a orientação do chefe da polícia, o governador Paulo Câmara (PSB), que recomendava apenas acompanhar a manifestação e evitar excessos. 

Imagens registradas pelos manifestantes mostram que o ato transcorreu pacificamente até o final do trajeto, quando os policiais passaram a disparar balas de borracha e spray de pimenta sobre as pessoas.

Nas apurações preliminares, os PMs disseram ter disparado balas de borracha porque os manifestantes não se dispersaram no local combinado e seguiram caminhando por mais um trecho. 

Nos dias anteriores à manifestação, o Ministério Público estadual notificou o governo para que o ato não fosse permitido, mas a decisão final foi de autorizá-lo. 

Vera Magalhães - O 29M foi grande e importante: e agora, o que esperar?

- O Globo

Muitas dúvidas, de diversas naturezas, cercaram a organização dos atos deste 29 de maio, convocados por múltiplas organizações, diversos partidos e diferentes correntes políticas, pelo impeachment de Jair Bolsonaro e exigindo responsabilização do presidente e de seu governo pela decisão de não comprar vacinas contra o novo coronavírus, o que agravou a pandemia de covid-19 no Brasil.

Já na segunda-feira passada escrevi a esse respeito, apresentando os dilemas colocados para os cientistas, para os políticos que até então vinham apontando o negacionismo de Bolsonaro e as aglomerações por ele incentivadas, e para a imprensa. Mas a oposição acabou levando adiante a organização dos atos, fazendo questão de marcar importantes distinções com os eventos bolsonaristas, principalmente no incentivo ao uso de máscaras de alta proteção, como as PFF2, e a distribuição gratuita das mesmas em todas as cidades onde as manifestações ocorreram.

Os debates acerca da oportunidade de realização de grandes atos, mesmo com esses cuidados, quando se avizinha uma terceira onda, vão continuar ao longo dos próximos dias. Jornalisticamente, há muitos enfoques a adotar nessa cobertura, que precisa ser feita.

Mas não é possível ignorar que as manifestações ocorreram e, ao menos na praça mais emblemática de atos políticos nas últimas décadas, a avenida Paulista, no coração de São Paulo, ela foi robusta, não ficou restrita aos partidos de esquerda e mostrou a existência de uma oposição vigorosa, disposta a desafiar até as recomendações sanitárias que continuam em vigor, para expressar sua indignação e o sentimento de que uma boa parcela da sociedade não aceitará mais que o presidente siga tentando ocupar sozinho o espaço público, quase sempre zombando da pandemia, negando sua gravidade, ignorando o sofrimento das famílias enlutadas, promovendo desinformação a respeito da propagação da covid-19 e fazendo ameaças golpistas contra adversários e aqueles que não são seus seguidores.

As ruas mostraram, pela primeira vez desde que a pandemia começou, o que as pesquisas de opinião já mostravam sem fotos: que aqueles que rechaçam Bolsonaro e sua política negacionista são em maior número que aqueles que o apoiam. A pé, os oposicionistas foram às ruas em maior número que os motorizados e barulhentos motociclistas de Bolsonaro, um fim de semana antes.

Cláudio de Oliveira* - Qual é o programa, senhores?

Um dos males do presidencialismo brasileiro é o culto à personalidade. Discutem-se os candidatos, a busca por um pai dos pobres salvador da pátria em detrimento de programas e propostas de governo.

Nas últimas campanhas eleitorais, o debate foi prejudicado pela forte propaganda mistificadora promovida por marqueteiros pagos a preço de ouro, sem que houvesse debate dos efetivos problemas nacionais e elaboração de um projeto de país na complexa realidade da globalização e da chamada revolução tecnológica 4.0.

Em 2014, a campanha de Dilma Rousseff, com o marqueteiro João Santana à frente, usou de mentiras contra seus adversários, em especial contra a então candidata da coligação PSB-PPS-Rede, Marina Silva, e escondeu ao máximo a crise fiscal e econômica do país, que viria a se revelar dramaticamente após desligadas as urnas. 

As medidas de ajuste fiscal anunciadas na sequência pelo ministro Joaquim Levy passaram a sensação de estelionato eleitoral a parcelas significativas do eleitorado e foram o combustível para a continuidade das manifestações de rua iniciadas em 2013.

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

EDITORIAIS

Novidade nas ruas

Folha de S. Paulo

Atos aproveitam pior momento de Bolsonaro, mas esquerda ainda carece de programa

Os protestos contra o presidente Jair Bolsonaro neste sábado (29) são uma bem-vinda lufada de ar na atmosfera política brasileira.

Após quase um ano de domínio exclusivo das ruas por alguns parcos, mas barulhentos, manifestantes bolsonaristas, milhares de opositores se aventuraram no asfalto de diversas capitais.

Havia uma clara preocupação dos organizadores de diferenciação, com o estímulo ao distanciamento social possível e ao uso de máscaras —em contraste com as irresponsáveis aglomerações estimuladas pelo presidente.

Isso dito, houve cenas condenáveis do ponto de vista sanitário, além dos deploráveis confrontos envolvendo forças policiais, como o ocorrido em Recife.

Ao mesmo tempo em que se mostram como novidade no panorama, contudo, os atos não encobrem as limitações da agenda da esquerda que se rearranja após ter sido trucidada nas urnas a partir de 2016.

Animado com o reaparecimento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na liderança de pesquisas eleitorais, o campo tem desafios mais complexos à frente.

Se a rejeição ao petista aferida pelo Datafolha não é tão grande quanto a do atual presidente (36% ante 54%), é importante entender as circunstâncias da fotografia.

Bolsonaro está no seu pior momento, com a CPI da Covid recontando a tragédia criminosa de sua gestão, efeitos sociais das fragilidades econômicas em curso e até uma ameaça de crise energética.

Mas o que a esquerda, a começar pelo PT, oferece além da adversativa? Se o que Lula tem a ofertar se reflete na embolorada crítica às privatizações, como fez no caso da Eletrobras, as perspectivas de um eventual novo governo petista são decepcionantes.

A crítica nas ruas do sábado a Bolsonaro é justa e até tardia. Porém seu potencial de mobilização, até pelos sentimentos contraditórios despertados em pessoas que se preocupam com os protocolos sanitários, ainda não é claro.

Além disso, convém lembrar que o antipetismo segue sendo uma força orgânica em centros urbanos, o que delimita o escopo das bandeiras que se veem agitadas.

Furar essa bolha, para usar um clichê, é a tarefa colocada à esquerda. Apresentar propostas concretas e viáveis, que vão além do embate ideológico, é um imperativo para qualquer força política que queira fazer frente a Bolsonaro em 2022.

Poesia | Ferreira Gullar - Digo sim

Poderia dizer 

que a vida é bela, e muito, 

e que a revolução caminha com pés de flor 

nos campos do meu país, 

com pés de borracha 

nas grandes cidades brasileiras 

e que meu coração 

é um sol de esperanças entre pulmões 

e nuvens 

Poderia dizer que meu povo 

é uma festa só na voz de 

Clara Nunes 

no rodar 

das cabrochas no carnaval 

da Avenida. 

Mas não. O poeta mente. 


A vida nós amassamos em sangue 

e samba 

enquanto gira inteira a noite 

sobre a pátria desigual. A vida 

nós a fazemos nossa 

alegre e triste, cantando 

em meio à fome 

e dizendo sim 

- em meio à violência e a solidão dizendo 

sim - 

pelo espanto de beleza 

pela fama de Tereza 

pelo meu filho perdido 

neste vasto continente 

por Vianinha ferido 

pelo nosso irmão caído 

pelo amor e o que ele nega 

pelo que dá e que cega 

pelo que virá enfim, 

não digo que a vida é bela 

tampouco me nego a ela: 

- digo sim 

Ferreira Gullar, em "Na vertigem do dia", 1980.

Música | Boca Livre - O Trenzinho do Caipira (Villa Lobos e poema de Ferreira Gullar)