Duas crises, dois scripts
O conflito entre o presidente Bolsonaro e o ex-ministro Sergio Moro, em torno da substituição do comando da Polícia Federal e a consequente exoneração do segundo, a pedido, provocaram um terremoto no governo federal e detonaram nova crise política. A óbvia repercussão desses fatos palacianos sobre as bases de apoio social ao Presidente constitui um prato cheio para o jornalismo político e para a dinâmica das redes sociais, a ponto de colocarem em segundo plano, no noticiário, a crise sanitária e econômica, ambas com repercussão social muito mais amplas. Isso resulta de uma interpretação da crise política como crise institucional, que se torna possível em face dos ingredientes de caráter criminal - crimes comuns e de responsabilidade política - incluídos na mútua lavagem de roupa suja em público, promovida por essas duas destacadas personagens políticas.
Contraste evidente com a crise política que culminara, uma semana antes, na exoneração, pelo Presidente, do ex-ministro da Saúde Luiz Mandetta. A crise reforçou a despolarização política, em favor de maior unidade do país para enfrentar a crise sanitária e mitigar seus efeitos econômicos e sociais. Deu lugar a uma convergência entre sociedade política e sociedade civil, com forte adesão popular à política do MS e de governadores, provocando crescente isolamento do presidente, que em situação de crescente solidão, atacava moinhos de vento no intuito de sabotar o novo ambiente político. Enquanto enfrentava crises do mundo real, o sistema político, tendo o Congresso como eixo articulador principal, articulado a governadores, acumulava legitimidade para, quando efeitos mais agudos da epidemia amainassem, convocar a sociedade a resolver, civicamente, o problema do presidente subversivo. A consciência de que é preciso afastá-lo já se consolidara e ganhava respaldo social, ao tempo em que a prudência política esperava momento próprio para fazê-lo sem agravar a insegurança pública.
Com o caso Moro, dá-se o oposto. Retorna o clima de polarização política, com aceleração de um processo que tende a detonar desde já uma luta pelo impedimento do presidente. Para não atropelar o estado democrático de direito, não poderá ser processo sumário. Precisará dar tempo a investigações minimamente idôneas e a reações da opinião pública a cada passo do processo. Além disso, como as evidências da conduta do presidente e seu grupo de seguidores demonstram, não será passeio imune à explosão de violência política de dimensões imprevisíveis. Ainda que o processo detonado pelo duelo de mitos se resolva pacifica e mais rapidamente, pela mão do STF, precisará continuar no Congresso, comprometendo sua concentração na inadiável missão de dar governabilidade ao país nas circunstâncias de uma pandemia que se encontra em momento de crescente agravamento.
Analistas têm dito que o caso Mandetta virou passado longínquo após o terremoto Moro. Tentarei argumentar em sentido oposto, tanto quanto às relevâncias dos dois processos para a política brasileira como quanto à atualidade de ambos, do ponto de vista das suas consequências sociais. Para isso, é preciso fazer um esforço retrospectivo preliminar, na direção desse suposto passado remoto. Para isso, sirvo-me, em parte, de afirmações já feitas numa entrevista ao jornal Tribuna da Bahia, de 20.04.2020.
Com a descontinuidade política e gerencial gerada pela substituição do ministro da Saúde, a sociedade perdeu a orientação segura, transparente e diária que vinha sendo dada pelo Ministério. O próprio Estado sofreu, porque suas instituições, flagrantemente em desacordo com a decisão presidencial, ficaram ainda mais tensionadas, fato que se torna mais visível com a sua possível contaminação pela crise política seguinte. E o governo, particularmente, porque precisou alterar conceitos políticos, procedimentos técnicos e rotinas administrativas em pleno desenrolar de uma situação crítica.