segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Opinião do dia – Fernando Henrique Cardoso*

 “Não é hora, contudo, para o ajuste de contas. A experiência mostra que é melhor esperar que o tempo escoe do que precipitar o fim de governos. Mais um pouco — se o povo não insistir nas antigas preferências e se tivermos a sorte de existir alguém que abra um caminho mais promissor — haverá novas eleições. Mudaremos algo?

Para responder com franqueza, e deixando de lado o que não entendo (fico na torcida pelo fim da pandemia), temo que continuemos a “não ver”. Talvez o maior problema do país seja a desigualdade. E ela “se naturalizou”. Podemos até vê-la e fazer comentários gerais a seu respeito. Mas, no dia a dia, como o problema vem de longe, acabamos por, implicitamente, aceitá-la. E esta talvez seja a maior dificuldade para obter o que, em geral, mais desejamos: que o país continue crescendo economicamente. Na cultura tradicional é como se crescimento equivalesse a melhor distribuição de renda. Existe, é claro, uma relação entre a prosperidade econômica e o bem-estar geral. Mas é enganoso crer que basta a economia crescer para as “questões sociais” se resolverem.

Nos dias que correm, não só a oferta de empregos está reduzida como as transformações tecnológicas do mundo requerem maior capacitação profissional. Torna-se mais visível que educação e saúde são requisitos para a modernização da sociedade e da economia. Como, entretanto, somos mais de duzentos milhões de pessoas, os setores dominantes parecem não se dar conta de que no longo prazo não haverá prosperidade com tanta miséria. Quem sabe a crise atual, dupla, a de saúde e a do desemprego, despertem não só “o governo”, mas cada um de nós. Quem sabe nos permita “ver” melhor e perceber que a transformação necessária é mais profunda e mexe com as pessoas, com cada pessoa, e não só com as instituições.”

*Fernando Henrique Cardoso, sociólogo, ex-presidente da República. “Annus horribilis”, O Globo/O Estado de S. Paulo, 3/1/2021.

Fernando Gabeira - Na marca do pênalti

- O Globo

No prontuário de Bolsonaro, não pesam só vidas humanas, mas todos os componentes da riqueza do Brasil

Bolsonaro fez parte de um seleto grupo de estadistas que negaram a pandemia. Em seguida, foi o único no mundo, ressalta o jornal “Le Figaro”, que se colocou negativamente diante da vacinação.

Ele foi escolhido como o pior corrupto do ano, pelo Organized Crime and Corruption Reporting Project. Coisa de comunistas? Os escolhidos anteriormente foram Putin, Maduro e Duterte.

Bolsonaro chegou ao fim de 2020 com 24 pedidos de impeachment acumulados na gaveta. Alguns comentaristas acham que ele zombou da tortura em Dilma Rousseff para desviar a atenção de seu fracasso diante da pandemia.

Mas é uma tática estúpida. Não se disfarça a morte com cheiro de morte, muito menos se esconde a desumanidade contra muitos, concentrando-a numa só pessoa.

O conjunto de declarações de Bolsonaro está registrado. Uma pandemia com quase 200 mil mortos não desaparece na história como um relâmpago no céu.

Ele contribuiu para que uma parte do povo brasileiro desafiasse o perigo da pandemia e colocasse em risco a própria vida e a dos outros.

Bolsonaro ignorou os apelos para que o Estado protegesse as populações indígenas. Por duas vezes, o STF devolveu ao governo a lição de casa que não consegue realizar: um plano eficaz para protegê-las.

No governo, Bolsonaro aumentou a destruição da Amazônia, queimou um terço do Pantanal, e o Cerrado perdeu 13 % de sua vegetação. No seu prontuário, não pesam apenas vidas humanas, mas espécies animais, plantas, enfim, todos os componentes da riqueza do Brasil.

Sua política arruína as chances de nos apresentarmos como uma potência ambiental, atraindo energias, capitais, poderosos governos, todos ansiosos por trabalhar conosco numa nova etapa da luta mundial pela sobrevivência das novas gerações.

Rosângela Bittar - Não há aviso aos navegantes

- O Estado de S. Paulo

Tudo em 2021 dependerá do êxito da vacina. Não há mais espaço para conversa fiada de Bolsonaro

Os meteorologistas da política não encontram garantias para prever absolutamente nada de novo para 2021, mais um ano a ser dominado pela pandemia e pela expectativa da vacina. O que deve acontecer é a expansão de 2020 em todos os sentidos.

Jogaram-se para a frente as crises de saúde, a principal entre todas que castigam o Brasil. Também prorrogaram-se os prazos das crises econômica, social e política. Tudo em 2021 vai girar exclusivamente em torno da vacina. O sinônimo de vida.

Na roda de poder dos possíveis candidatos à sucessão de Jair Bolsonaro recomenda-se esquecer o ano novo como calendário original.

Quem tinha perfil de candidato a presidente na sucessão de 2022 e expectativa política deve continuar na mesma. Os fatores que fazem uma candidatura emplacar não estão liberados. Seja para o novato Luciano Huck ou para o veterano Ciro Gomes. Eles, e os demais postulantes conhecidos, entre os quais Hamilton MourãoJoão Doria e Sérgio Moro, se tiverem juízo para se submeterem à realidade, continuarão esperando uma possível largada bem mais à frente.

Carlos Pereira* - Bolsonaro 2021: um político tradicional

- O Estado de S. Paulo

Pandemia levará presidente a formar coalizão com o Centrão e a intensificar agenda conservadora de costumes

O acontecimento de maior relevância política do ano de 2020 não foi propriamente um evento político, mas sanitário: a covid-19. A pandemia causada pelo novo coronavírus foi um choque exógeno tão devastador que, ao gerar medos e incertezas sem precedentes, produziu efeitos políticos de grande magnitude.

As três rodadas da pesquisa de opinião que desenvolvi ao longo do ano, em parceria com Amanda Medeiros e Frederico Bertholini e com o apoio da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e do Estadão, mostrou que a pandemia alterou, de forma inequívoca, os eixos da polarização política no Brasil.

Por um lado, a ideologia política perdeu capacidade de explicar o comportamento das pessoas e suas próprias crenças. Ser de esquerda ou de direita deixou de ter importância diante do “medo da morte”. Por outro lado, os vínculos afetivos de pertencimento a um grupo (ou de aversão ao grupo rival) baseados em identidades valorativas de seus membros ganharam preponderância explicativa e passaram a nortear a principal clivagem política: aprovar ou rejeitar o governo do presidente Jair Bolsonaro.

Esta nova polarização se consolidou a partir de quatro reações de Bolsonaro em relação à pandemia: 1) minimização da gravidade e dos riscos de contágio da doença; 2) oposição às medidas de isolamento social; 3) valorização dos impactos negativos que as medidas de isolamento social trariam para a economia; e 4) oposição à obrigatoriedade da vacina.

Denis Lerrer Rosenfield* - Qual ano?

- O Estado de S. Paulo

Há um sincero desejo de que as coisas melhorem, deixando infortúnios para trás. Que assim seja

Um ano foi encerrado e outro se inicia sem que tenhamos ao certo uma linha divisória entre um e outro. Talvez por décadas seja esta uma experiência única, pois a sensação do não acabou ainda ou a pergunta de quando esse ano de 2020 vai terminar persistem. A humanidade foi severamente atingida por uma pandemia que segue ceifando vidas, as pessoas, acossadas, não sabem mais como responder. Algumas adotam a atitude de estar cansadas e decidem pela imprudência e pela doença, quiçá a morte, enquanto outras procuram se proteger. Vida e morte se entrelaçam de outra maneira, com esta última avançando.

Sinais de vida são fortalecidos mediante uma frenética e, parece agora, bem-sucedida busca por vacinas. Num esforço global gigantesco, 12 meses foram suficientes para que novas formas de combate à covid-19 fossem descobertas. Sinais de morte também encontraram o seu caminho, com governantes irresponsáveis menosprezando a doença, deixando as pessoas morrerem aos milhares. A irresponsabilidade do governo Bolsonaro é gritante, com 200 mil pessoas nos abandonando definitivamente. Nem numa guerra morrem tantas pessoas e, contudo, nem combatentes temos.

Marcus André Melo* - Da governabilidade à democracia

- Folha de S. Paulo

O debate institucional brasileiro sofreu inflexões nas últimas três décadas

As análises sobre o arranjo institucional brasileiro sofreram várias inflexões nas últimas décadas. Embora tenha dinâmica própria, elas acompanharam o debate público mais amplo e refletiram a conjuntura.

A primeira década da democracia foi marcada por uma frustração coletiva avassaladora. O país viu a hiperinflação, planos macroeconômicos fracassados, e um impeachment presidencial.

O diagnóstico era de que o país institucional era ingovernável devido à combinação de presidencialismo, multipartidarismo, federalismo robusto, e partidos fracos. A debilidade do sistema partidário seria produto da adoção da representação proporcional com lista aberta e pela ação desorganizadora dos interesses regionais/locais.

O dilema seria, portanto, que presidentes sem sustentação parlamentar eram incapazes de aprovar a agenda do Executivo. A era FHC, no entanto, pôs em xeque o diagnóstico, e a agenda de pesquisas mudou. Os poderes do presidente —como as medidas provisórias, iniciativa exclusiva ou controle da agenda congressual— foram vistos como facilitadores da aprovação de agendas. O Congresso não se revelou obstáculo à agenda do executivo.

Celso Rocha de Barros* - Bolsonaro chantageou o Ministério Público?

- Folha de S. Paulo

Nenhum presidente brasileiro, até hoje, fez algo parecido

No dia 31 de dezembro, em sua última live de 2020, o presidente Jair Bolsonaro reclamou da atenção que a mídia dá ao caso Queiroz. Até aí, tudo normal. É o tipo de coisa que o presidente faz em vez de trabalhar para comprar vacina.

Mas Bolsonaro resolveu dar um passo a mais, e acrescentou, no minuto 34 do vídeo:
"Agora, o MP do Rio, presta bem atenção aqui: imagine se um dos filhos de autoridade do MP do Rio fosse acusado de tráfico internacional de drogas. O que aconteceria, MP do Rio de Janeiro? Vocês aprofundariam a investigação ou mandariam o filho dessa autoridade pra fora do Brasil e procuraria uma maneira de arquivar esse inquérito? Um caso hipotético, falando de um caso hipotético. (...) Caso um filho de uma autoridade do Ministério Público do Rio de Janeiro entrasse no inquérito da Polícia Civil do Rio e ali um delator tivesse falado que ele participava de tráfico internacional de drogas. Fica com a palavra as autoridades do Ministério Público do Rio de Janeiro".

Ricardo Noblat - Sem seringas e agulhas, governo revoga a lei da oferta e da procura

- Blog do Noblat / Veja

E segue o baile

Por seis meses, dormiu sem resposta em uma gaveta do Ministério da Saúde o ofício onde o Ministério da Economia perguntava se tinha interesse ou não em comprar da China seringas e agulhas para a aplicação de vacinas contra o coronavírus.

Só no fim do ano passado, por meio de pregão eletrônico, foi que o Ministério da Saúde, às pressas, tentou comprar 331 milhões de conjuntos desses produtos. Conseguiu apenas 7,9 milhões. O presidente Jair Bolsonaro alegou que o preço subira muito.

Que fazer então o quê? Contrariar a lei da oferta e da procura que determina a formação de preços no mercado. Ela diz que quando há muita procura por um produto, o preço sobe. Quando cai a procura, o preço baixa. É assim que funciona.

A pedido do Ministério da Saúde restou ao governo Bolsonaro, por meio de portaria da Secretaria de Comércio Exterior do Ministério da Economia, restringir a venda para outros países de seringas e agulhas fabricadas no Brasil. Dane-se a lei do mercado, ora!

Nas redes sociais, o Ministério da Saúde havia chamado de “fake news” notícias sobre a dificuldade do governo de comprar seringas. Mas seu fracasso no processo de compra foi o argumento apresentado para pedir o veto às exportações.

Segue o baile!

Rosiska Darcy de Oliveira - A esperança é teimosa

- O Globo

Presidente é um sádico que se compraz com a dor e a morte

Pela primeira vez em tantos anos, não molhei os pés no mar. Vi entrar o ano sem fogos de artifício, sem as lágrimas de ouro que caem do céu de Copacabana. A Floresta da Tijuca é assim, silêncio e mistério. Como o ano que se anuncia. Tanto silêncio e mistério nas coisas e nas pessoas.

No mundo, milhões já foram vacinados, e em breve — prioridade máxima — chegará a vez dos brasileiros. Vacinados, ainda teremos diante de nós um inventário de perdas: pessoas amadas, empregos, gente alegre que se fez amarga.

O mesmo presidente, cada dia mais cruel e pernicioso, que aplaude a tortura e debocha da pandemia, um sádico que se compraz com a dor e a morte. E a incompetência que fez e fará milhares de vítimas, se continuar sua tarefa de destruição.

Cacá Diegues - A vida ao vivo

- O Globo

Este ano não vai conseguir ser pior do que o que foi embora

Joca, meu amigo que mora nos altos do Rio, numa casa cercada por trecho preservado da Mata Atlântica, me telefonou outro dia. Me preparei para aceitar mais um convite para fim de semana no meio do mato, almoçando o que ele mesmo cozinha (Joca é especialista em peixe). Mas havia na voz de meu amigo um certo pânico, vi logo que não se tratava de nada divertido.

Com estardalhaço e a certeza de que estava sendo injustamente prejudicado, Joca desabafou, antes mesmo de um boa-noite regulamentar: ele havia assistido a um programa culto da televisão em que se dizia que o macaco-prego tinha o hábito de devorar o caule das palmas. E Joca sabia, por informação de um desses ecologistas palpiteiros que o frequentavam, que era justamente pelo caule que as palmas se multiplicavam. Como o que mais havia no mato em torno de sua casa eram macacos daquela família, tão numerosos quanto vorazes, Joca entrara em pânico. Se a notícia se confirmasse, a casa, passado algum tempo, poderia se tornar uma ilha de barro cercada de mato seco sem graça, por terrenos baldios sem verde algum.

José Roberto Campos - Negócios da China

- Valor Econômico

Há motivos políticos para frear o excesso de poder concedido a homens que construíram um império em um ambiente sem leis

Bilionários podem se dar ao luxo de ser arrogantes sem que isso seja visto como um defeito, como se com a riqueza viesse o perdão pelos maus modos. Nem sempre: tudo deu errado para Jack Ma, o biliardário chinês dono do Alibaba. Ele mal teve tempo de se arrepender de ter dito, em 24 de outubro, em evento financeiro que tinha como participantes o vice-presidente Wang Qishan, ex-reguladores e altos executivos dos bancos estatais, que banqueiros e órgãos de controle do país tinham mentalidade de “casa de penhores” e pareciam-se com “clubes de velhos”.

A reação do governo chinês foi fulminante e pode mudar não só a fortuna de Ma como o destino de toda rede de finanças online. O maior IPO da história, o do Ant, braço financeiro do Alibaba, estimado em US$ 37 bilhões, foi cancelado abruptamente algumas horas antes de ocorrer. Há suspeitas de que as ordens vieram de coma, diretamente de Xi Jinping, o presidente vitalício do país. A partir daí, uma série de medidas de regulação para as gigantescas fintechs chinesas foram expedidas para evitar a concentração de poder em meia dúzia de empresas que estão se tornando “poderosas demais para falir”, nas palavras de Guo Shuqing, presidente da Comissão de Regulação de Bancos e Seguros da China.

Há motivos políticos para frear o excesso de poder concedido a poucos homens que construíram um império em um ambiente sem leis, que lembra a saga dos ‘robber barons’ americanos. Eles passaram a dominar todas as ferramentas e meios que, no Ocidente, são usados para tentar mudar o destino de eleições, fomentar divergências, estimular oposições e empestear a atmosfera política. A ditadura chinesa é uma das mais avançadas em sistemas de controle e vigilância, com sua tecnologia de ponta voltada a esse fim - é, por exemplo, a líder mundial em reconhecimento facial. Pequim reconheceu que deu poderes demais a poucos e que chegou a hora de enquadrá-los.

Alex Ribeiro - BC começa a retirar estímulos ao crédito

- Valor Econômico

Não é só o “abismo fiscal” que ameaça a retomada em 2021

O fim das medidas de estímulo fiscal, entre as quais a mais importante foi o pagamento do auxílio emergencial, não é a única força que poderá conter o crescimento da economia neste começo de 2021. Cumprindo o cronograma que havia estabelecido, o Banco Central deixou expirar no fim de 2020 alguns dos programas de crédito direcionado que havia criado na primeira onda da covid-19 para manter o fluxo de crédito na economia.

Saiu de cena uma linha que liberou R$ 51,7 bilhões em depósitos compulsórios sobre depósitos em poupança, que estavam retidos no BC, para operações de crédito a micro, pequenas e médias e empresas. Essa mesma iniciativa canalizou outros R$ 7,6 bilhões dos grandes bancos para as instituições financeiras de menor porte, que em geral são especializadas em dar crédito aos pequenos negócios.

Também expirou uma linha de assistência financeira de liquidez que injetou R$ 69,5 bilhões em 49 bancos, com foco nos pequenos. Esse programa ajudou a reciclar a carteira de crédito das instituições financeiras, porque usa como colateral papéis (as chamadas LFGs) que são lastreados por empréstimos, garantindo assim o fluxo de novas operações.

Chegou ao fim em novembro outra iniciativa que liberou capital dos bancos, antes imobilizado para dar suporte a créditos tributários, que permitiu a realização de R$ 14,4 bilhões em financiamentos para micro, pequenas e médias empresas. Essa facilidade acabou antes do esperado porque a medida provisória (MP) que deu origem a ela não foi aprovada no Congresso. Mas, pelo cronograma original, expiraria de qualquer forma no dia 31 de dezembro.

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

146 anos de coerência – Opinião | O Estado de S. Paulo

A coerência do jornal confere um profundo sentido à sua história, aos 146 anos que hoje são celebrados. Mas é também o que dá sentido ao presente e ao futuro do 'Estado'

O jornal O Estado de S. Paulo completa hoje 146 anos. Desde sua primeira edição, em 4 de janeiro de 1875, o jornal foi testemunha de profundas mudanças sociais e econômicas, guerras mundiais, revoluções e variadas crises. Ao longo desse tempo, o próprio Estado passou – e continua a passar – por diversas mudanças de formato e de plataforma, acompanhando não apenas os avanços tecnológicos de cada época, mas os hábitos, as preferências e as necessidades de seus leitores.

Ao olhar as muitas mudanças ocorridas no mundo e no Brasil desde aquele 4 de janeiro de 1875, é motivo de orgulho constatar a continuidade do Estado ao longo de todo esse tempo. Esse orgulho reflete, e não poderia ser de outra forma, um profundo senso de comunhão com as gerações passadas que conduziram este jornal em circunstâncias muitas vezes difíceis, às vezes claramente heroicas.

Mas na história deste jornal o que mais se destaca não é tanto a passagem do tempo, tampouco as adversidades superadas. O que salta aos olhos é a defesa intransigente, desde sua fundação – quando se chamava A Província de São Paulo –, dos valores e princípios republicanos que são cultivados até hoje e que nos apontam os rumos do porvir. Fundado para defender a abolição da escravatura e a proclamação da República, este jornal nunca aceitou promover ou manter-se omisso diante de ideias ou práticas liberticidas, por maiores que fossem as pressões, por mais que determinados setores da opinião pública exigissem, em alguma circunstância, transigir com o arbítrio.

O compromisso do Estado com os mesmos valores pode ser observado ao longo de toda sua história. Por exemplo, este jornal não pactuou em 1968 com o Ato Institucional n.º 5 que, revogando direitos e garantias fundamentais, representou o mais forte endurecimento da ditadura militar. A recusa a fazer autocensura, prática corrente em outros periódicos, foi importante ato de resistência contra um regime que não admitia vozes contrárias.

Coral Edgard Moraes e Martins - Resta Sorrir

 

Poesia | Fernando Pessoa - O guardador de rebanhos

Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.

Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.

Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.

Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.

Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.

E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),
É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.