“A nossa tradição revolucionária, liberal, demagógica, é antes aparente e limitada a focos de fácil profilaxia política: no íntimo, o que o grosso do que se pode chamar ‘povo brasileiro’ ainda goza é a pressão sobre ele de um governo másculo e corajosamente autocrático. Mesmo em sinceras expressões individuais – não de todos invulgares nesta espécie de Rússia americana que é o Brasil – de mística revolucionária, de messianismo, de identificação do redentor com a massa a redimir pelo sacrifício da vida ou de liberdade pessoal, sente-se o laivo ou resíduo masoquista: menos a vontade de reformar ou corrigir determinados vícios de organização política ou econômica que o puro gosto de sofrer, de ser vítima, ou de sacrificar-se”.
Política e cultura, segundo uma opção democrática, constitucionalista, reformista, plural.
quarta-feira, 1 de janeiro de 2020
Opinião do dia: Gilberto Freyre - mística revolucionária, de messianismo
Rosângela Bittar - Roletas tímidas
- O Estado de S.Paulo
Chamadas de intermediárias, as eleições municipais sinalizam o futuro
Este é o ano da graça das eleições municipais, quando o humor dos eleitores será testado numa espécie de ensaio geral para a próxima disputa nacional. No momento, não se identificam fenômenos, nem naturais, nem construídos.
Uma volta ao passado não seria surpreendente, menos ainda uma demonstração, contra a corrente, de sentimento antibolsonarista. Bem como a presença do presidente, com vitórias importantes em capitais, reunindo vantagens a serem levadas à próxima campanha. Tudo ainda é possível.
As roletas estão começando a rodar, ainda tímidas, e ninguém fez apostas relevantes, por enquanto. A desconfiança é ampla, geral e irrestrita.
É que, se prefeitos e vereadores constroem o poder nacional, a recíproca não é necessariamente verdadeira. Por isso a cautela nas previsões.
A polarização vai se manter? Lula estará solto? O presidente Jair Bolsonaro conseguirá criar seu partido a tempo de seus candidatos disputarem pela nova sigla? Os temas em discussão serão de interesse apenas local? A ideologia vai prevalecer, como agora, ou a vida real irá predominar? Só vendo. O que é certo, em qualquer tempo e país, é que, chamadas de intermediárias, as eleições locais sinalizam o futuro.
Roberto DaMatta - Do bar ao cemitério
- O Estado de S. Paulo
Sabia da morte e a conhecia, mas fiquei surpreso com sua impositiva realidade
Eu a vi com o rosto de mármore, e os olhos para sempre fechados. Peguei no seu braço: estava como um pedaço de gelo. Sabia da morte e a conhecia, mas como ocorre na vida e no amor, fiquei surpreso com sua impositiva realidade.
Mario Batlha, meu querido amigo me pronunciou essas palavras neste Natal, no bar do Soares aqui em Niterói, no nosso encontro anual de velhos amigos – velhos pois todos temos mais de 89 anos.
Quando entramos no bar, os jovens atendentes sorriem, pois todo jovem gosta de ouvir histórias contadas por velhos. Elas revelam como somos tolos e antigos. E é preciso sentir-se esperto e moderno neste Brasil onde o sujeito que chama o outro de tosco não sabe o quão tosco ele é.
Vamos ao bar em busca da juventude que a amizade e o álcool – o espírito – fornecem. Bar tem a ver com alegria, piada, aventura e bebidas. É um espaço aberto e ambíguo, pois abriga e revela, permite sair e entrar sem pedir licença. É público no ambiente, mas suas mesas são como casas oferecendo a seus ocupantes uma certa privacidade.
Cristina Serra* - Feliz Ano-Novo?
- Folha de S. Paulo
Gostaria de desejar votos aos leitores com convicção, mas tenho dificuldade diante do que nos aguarda
A convite da Folha, coube-me publicar este artigo no primeiro dia do ano. Gostaria de desejar Feliz Ano-Novo aos leitores com convicção. Mas tenho dificuldade de fazê-lo ao refletir sobre o ano que passou e o que nos aguarda.
Falo especialmente da área ambiental. Em seu primeiro ano, o governo Bolsonaro asfixiou os órgãos de proteção do meio ambiente e a Funai; nomeou gente despreparada para essas funções e aniquilou o papel de liderança mundial do Brasil neste tema, construção histórica iniciada na Rio-92 e que passou por todos os governos desde então.
A política mais cruel do atual governo, porém, é o discurso contra o ambiente e seus defensores e que tem se mostrado mais eficaz que qualquer mudança na legislação ou nos mecanismos de gestão. Bolsonaro faz campanha permanente e insidiosa contra florestas e povos indígenas. Seu discurso acirra conflitos, desata ódios adormecidos, estimula o crime e a violência. Seus seguidores se encarregam de sujar as mãos.
O “Dia do Fogo” na Amazônia (com recorde de desmatamento em 11 anos) e a matança de lideranças Guajajara, no Maranhão são exemplos eloquentes dos efeitos do discurso presidencial. Lembremos do que disse Adama Dieng, conselheiro da ONU para prevenção do genocídio, sobre os discursos de ódio que estimularam chacinas em diferentes épocas e lugares: “As palavras matam tanto quanto as balas”.
Hélio Schwartsman - Proibindo a proibição
- Folha de S. Paulo
A pauta de 2020 do STF é fraca em costumes, mas a questão da doação de sangue dará o que falar
O presidente do STF, Dias Toffoli, não parece muito disposto a entrar nas guerras culturais neste ano. A pauta dos próximos julgamentos que foi divulgada há pouco é forte em questões penais e tributárias e fraca em costumes. A notável exceção é a retomada do juízo sobre a constitucionalidade da proibição de doação de sangue por gays.
Sou simpático ao desejo de homossexuais de não se sentirem discriminados, mas não dá para esquecer que, do outro lado, está o direito de pacientes de ter acesso a sangue com o melhor mix possível de segurança e custo.
Vinicius Torres Freire - O futuro do ciclista de aplicativo
- Folha de S. Paulo
Mercado de trabalho melhora um tico no final de 2019, mas vai mudar muito ainda
Ciclista de aplicativo, bolo de pote e filas imensas de feirão do emprego foram as imagens do mercado de trabalho do ano que acabou de acabar. Quem arruma alguma ocupação ainda é trabalhador “por conta própria”, na linguagem das estatísticas oficiais. Mas, tudo somado, houve sinais de boa notícia nos números de novembro, os mais recentes.
Isto posto, é preciso explicar o que são essas melhorias. Mais ainda, é preciso ter perspectiva para pensar um pouco do que pode ser o mercado de trabalho —a neoprecarização começou bem antes da recessão e vai mudar de cara.
Primeiro, o emprego continua ruim. Mas o salário médio voltou a subir um pouquinho; a massa de rendimentos (a soma do que todo mundo ganha trabalhando), também. É combustível para alguma aceleração do consumo e do PIB em 2020.
O salário médio ficou estagnado (na comparação com o ano anterior) de abril a setembro; a massa de rendimentos crescia apenas 1,8% ao ano em agosto, setembro. Em novembro, crescia a 3%. Parece acelerar.
Segundo, não vai ser possível ter segurança dessas melhorias antes de fevereiro ou de março do ano que vem, quando teremos dados da virada do ano e uma medida do efeito de impulsos (talvez) passageiros, como a liberação do FGTS.
Terceiro, sabemos pouco do mercado de trabalho e menos ainda dessa economia que, parece, sai das ruínas.
Míriam Leitão - Os desafios dos anos 20
- O Globo
A busca dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU e a proteção da democracia vão marcar os anos 20 que começam hoje
Os anos 20 começam com a grande dúvida sobre o que vai acontecer em questões centrais da organização da sociedade humana. Até onde irá a inteligência artificial, como as economias criarão emprego nesta etapa da revolução tecnológica, os valores democráticos serão minados pelos governantes de índole autoritária que se espalham por inúmeros países, o mundo entenderá o risco da emergência climática? Essas dúvidas brasileiras e do mundo pairam sobre a década que começa hoje.
Ontem acabaram os anos 10. No Brasil, eles foram uma montanha-russa na economia. O país teve o maior crescimento do PIB deste século, 7,5% em 2010, e a pior recessão de que se tem notícia, superando as que ocorreram no governo militar, no início dos anos 80, e no governo Collor. Foi a mais profunda, mais longa, e que está impondo a nós o mais árduo caminho de volta. Cinco anos depois não recuperamos o PIB perdido. Na área ambiental, o país teve em 2012 o melhor número do combate ao desmatamento. Mas era em parte o efeito do impulso dado na década anterior. Esse esforço foi se perdendo aos poucos. Mas no ano passado o risco escalou, com o ataque sistemático ao aparato de proteção ambiental.
Rennan Setti* - Piketty em almanaque
- O Globo
Mais amplo que o best-seller anterior, “Capital e ideologia” oferece uma espécie de anatomia histórica da desigualdade
Lançado recentemente na França, o novo livro do economista Thomas Piketty ganhará versões em português e inglês em 2020. O momento é oportuno, já que a discussão sobre a guinada da desigualdade deve protagonizar as eleições americanas deste ano e tomar ainda mais corpo em um Brasil cujo governo parece não estar muito preocupado com isso.
Mais amplo que o best-seller que o antecede, “Capital e ideologia” oferece uma espécie de anatomia histórica da desigualdade tanto em países avançados como emergentes, tanto em termos de riqueza como em poder político. Mas o livro funciona também como um anedotário do injustificável, um almanaque da selvageria através dos séculos.
Piketty conta que, em 1833, quando os britânicos aboliram a escravidão, acharam por bem, é claro, indenizar os escravocratas, em vez dos escravizados.
Versaram 20 milhões de libras esterlinas a 4 mil donos de escravos, ou 5% da renda nacional. Isso em um país que investia apenas 0,5% da renda em educação. Em valores atuais, o montante pagaria o Bolsa Família por mais de 20 anos.
O precedente de indenizar “proprietários” foi seguido por outros, mas a França inovou. No fim do século XVIII, o país que decapitava seu monarca prometendo liberdade, igualdade e fraternidade explorava aquele que é provavelmente o território mais desigual que já houve na História. No Haiti de 1780, 90% da população eram escravos, proporção recorde em qualquer outro país escravagista. No Brasil, à mesma época, a fatia era de já elevados 50%.
Elio Gaspari - 2020 poderá filtrar 2018
- O Globo | Folha de S. Paulo
Junto com o novo, veio uma carga de mediocridade e atraso
Começa hoje o ano capaz de filtrar o que o eleitorado quis dizer em 2018 e isso será percebido em outubro, depois da eleição municipal. Houve um voto contra o PT, mas houve também um voto hostil aos políticos. Até aí, nada de novo, mas 2018 elegeu Wilson Witzel (PSC) para o governo do Rio, Romeu Zema (Novo) para o de Minas Gerais e Eduardo Leite (PSDB) para o do Rio Grande do Sul. Todos encarnavam o novo. Dois vinham de partidos nanicos, só Leite vinha do tucanato e só ele tinha experiência administrativa, como prefeito de Pelotas.
Witzel (Harvard fake '15), com sua necropolítica, nada tem a ver com Zema e Leite. (João Doria, que se elegeu pelo PSDB para o governo de São Paulo, ficou no meio termo. Pode assemelhar-se a Witzel às segundas, quartas e sextas e à dupla mineira e gaúcha às terças, quintas e sábados.)
Esses governadores tão diferentes refletiram o resultado geral de 2018. São Paulo elegeu Tabata Amaral para a Câmara e o major Olímpio para o Senado. O antipetismo pode explicar a eleição de todos eles, mas isso não é suficiente. O ronco da rua entronizou tanto o novo como o atraso e é provável que em outubro esses dois ingredientes sejam separados.
Ligia Bahia - Saúde nas eleições de 2020
- O Globo
Entre 2010 e 2019, a rede SUS nacional perdeu 7 mil leitos obstétricos, enquanto o número de nascimentos cresceu
Para a saúde, a década de 2010 termina com mais baixos do que altos. A taxa de mortalidade infantil decresceu em ritmo menor que em períodos anteriores e se manteve acima de 14 por 1.000 bebês entre 2014 e 2017. A proporção de brasileiros que vive abaixo da linha de pobreza aumentou de 6,6% em 2016 para 7,4% em 2017. Houve melhoras, entre as quais, o declínio da fecundidade entre mulheres jovens e incremento na escolaridade feminina. Esses impasses, retrocessos e alguns avanços não reconhecem barreiras do calendário, adentram 2020. Entre 2010 e 2018 houve cinco eleições, três para governadores, deputados e presidente e duas para prefeitos e vereadores. Invariavelmente a saúde ganhou destaque em todas as eleições. Mas, com raras exceções, deixou de ser prioridade logo após o encerramento das urnas.
Uma possível explicação para essa diferença abissal entre o que se promete e o que será realizado é o apelo a propostas vagas a respeito do SUS. Declarar aspirações é uma vantagem, permite angariar votos de eleitores com interesses divergentes e afirmar depois a necessidade de redução da marcha, e que está se recorrendo a medidas de transição para alcançar a miragem apresentada na plataforma eleitoral. Quando os contrastes entre o SUS eleitoral e o real ficam exuberantes, contribuem para queda dos índices de avaliação de quem pretende se reeleger, a culpa é dos governos anteriores.
Zuenir Ventura - A volta do amigo oculto
- O Globo
Queiroz sumiu por uns oito meses, durante os quais o presidente perdia as estribeiras só de ouvir o seu nome
Antes de viajar para passar fora o réveillon, e de decidir retornar a Brasília, o presidente Bolsonaro fez uma avaliação do seu primeiro ano de governo, anunciando, orgulhoso: “estamos terminando 2019 sem qualquer denúncia de corrupção”. Devido talvez à perda momentânea de memória por causa do tombo no banheiro, ele teve uma crise de amnésia ao fazer essa afirmação.
Na verdade, o ano registrou mais de uma denúncia e o presidente esqueceu, por exemplo, o caso do ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, denunciado por usar candidaturas de fachada para acessar o Fundo Eleitoral de 2018.
O episódio de maior repercussão, porém, envolve justamente o filho mais velho do presidente, o senador Flávio, o 01, acusado pelo Ministério Público de chefiar uma organização especializada em crimes de peculato e ocultação de patrimônio. Ele teria lavado R$ 2,3 milhões por meio de transações imobiliárias e de negócios em sua loja de chocolate.
Tudo veio à tona quando, há cerca de um ano, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras descobriu que no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro um assessor era capaz de realizar “movimentação atípica” de R$ 1,2 milhão sem renda compatível e depositar um cheque de R$ 24 mil na conta da futura primeira-dama Michelle Bolsonaro.
Esse personagem, o PM Fabrício Queiroz, amigo do presidente há 30 anos, comandava a “rachadinha”, o esquema em que os funcionários são coagidos a devolver ao deputado parte do salário.
O que a mídia pensa – Editoriais
Travessia – Editorial | Folha de S. Paulo
Testada diante de um presidente hostil, arquitetura democrática saiu-se bem
Euforia, revolta, depressão, cruzada anticorrupção, impeachment, surpresa nas urnas. Desde o final da primeira década deste século, o Brasil navega mares agitados.
Na conclusão dessa travessia terá se consolidado, provavelmente, outra normalidade no modo como as forças da sociedade partilham e acessam o poder de Estado —mas não uma nova institucionalidade.
Tem sido notável a resistência da arquitetura constitucional aos múltiplos choques, o que foi realçado em 2019. Pela primeira vez ela teve testada a sua integridade diante de um presidente hostil aos valores democráticos do pacto de 1988 —e saiu-se bem.
Cabeceios antissistema do Planalto acabaram em recuo ou derrota. O uso da Presidência para fins pessoais só andou onde é maior a alçada do Executivo, como no Ibama, ainda assim em forte atrito com a burocracia, órgãos de controle e setores da sociedade.
Bravatas autoritárias da ala alucinada do governismo foram amplamente rechaçadas e levaram a um processo no conselho de ética da Câmara. O desplante do presidente Jair Bolsonaro de cogitar o filho como embaixador morreu diante da firmeza do Senado.
Poesia | Fernando Pessoa - Vive
Vive, dizes, no presente,
Vive só no presente.
Mas eu não quero o presente, quero a realidade;
Quero as cousas que existem, não o tempo que as mede.
O que é o presente?
É uma cousa relativa ao passado e ao futuro.
É uma cousa que existe em virtude de outras cousas existirem.
Eu quero só a realidade, as cousas sem presente.
Não quero incluir o tempo no meu esquema.
Não quero pensar nas cousas como presentes;
quero pensar nelas
como cousas.
Não quero separá-las de si-próprias, tratando-as por presentes.
Eu nem por reais as devia tratar.
Eu não as devia tratar por nada.
Eu devia vê-las, apenas vê-las;
Vê-las até não poder pensar nelas,
Vê-las sem tempo, nem espaço,
Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê.
É esta a ciência de ver, que não é nenhuma.
Vive só no presente.
Mas eu não quero o presente, quero a realidade;
Quero as cousas que existem, não o tempo que as mede.
O que é o presente?
É uma cousa relativa ao passado e ao futuro.
É uma cousa que existe em virtude de outras cousas existirem.
Eu quero só a realidade, as cousas sem presente.
Não quero incluir o tempo no meu esquema.
Não quero pensar nas cousas como presentes;
quero pensar nelas
como cousas.
Não quero separá-las de si-próprias, tratando-as por presentes.
Eu nem por reais as devia tratar.
Eu não as devia tratar por nada.
Eu devia vê-las, apenas vê-las;
Vê-las até não poder pensar nelas,
Vê-las sem tempo, nem espaço,
Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê.
É esta a ciência de ver, que não é nenhuma.
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