sábado, 24 de junho de 2023

Marco Aurélio Nogueira* - A democracia precisa dos democratas

O Estado de S. Paulo

A democracia digital não soterra a democracia como tal nem destrói a ‘velha política’. É um vetor de reorganização, que não virá por inércia ou mecanicamente

Há uma questão posta na mesa: se praticamente tudo está tomado pelas tecnologias de informação e comunicação (TICs), se a vida ficou digital, por que a política e a democracia escapariam ilesas dessa situação?

A democracia nunca foi um regime perfeito. Como valor, como princípio e proposta, tem seguido em frente com poucos arranhões. Quando levada à prática, porém, quando precisa interagir com as circunstâncias sociais concretas, esbarra em muitos desafios. Nos últimos tempos, giramos em torno da “crise da democracia” e da necessidade de reformar os sistemas políticos.

Com o crescimento das extremas direitas no mundo, a crise se aprofundou. Políticos autoritários, eleitos pelo voto popular, ganharam legitimidade para corroer os sistemas democráticos a partir de dentro, aproveitando-se da insatisfação social, dos efeitos da globalização, das ferramentas digitais e da desorganização das populações. As classes sociais foram engolidas pelas transformações em curso e, sem elas, os indivíduos ficaram soltos, formando multidões. Com isso, os partidos sofreram um baque identitário: já não mais conseguem atuar com referências objetivas claras nem com programas que se remetam a um ou outro grupo da sociedade. Passaram a funcionar no modo inercial, como estruturas burocráticas focalizadas exclusivamente na conquista e no controle do poder político, sem alimentar os laços que poderiam aproximá-los dos cidadãos.

Dora Kramer - O ocaso do capitão

Folha de S. Paulo

Ex-presidente ajudará a eleger prefeitos no ano que vem, mas será coadjuvante em 2026

Não há quem não dê como certa a retirada de Jair Bolsonaro dos páreos eleitorais até a virada da próxima década. Seja pela ação ora em julgamento no Tribunal Superior Eleitoral ou por alguns dos outros 15 questionamentos que existem contra ele a serem ali examinados, tudo caminha para a aposentadoria do ex-presidente como candidato.

Segundo gente que se diz fiel a ele (caminhões de dúvidas sobre a consistência dessa fidelidade), muito melhor para todos que seja patrocinador de candidaturas. De capitão a cabo, agora eleitoral. Por essa versão, ele ajudaria a preservar o eleitorado anti-Lula e não atrapalharia os planos da direita com sua enorme rejeição.

Portanto, trata-se de um cenário em que Bolsonaro é visto como um utilitário. Alguém de quem se aproveitam as vantagens e se descartam as desvantagens. Na figura de "facilitador", pode transitar de eleição em eleição até readquirir seu direito de concorrer.

Alvaro Costa e Silva - Bolsonaro procurou e achou

Folha de S. Paulo

Não pode culpar ninguém, além dele mesmo, pelo seu fracasso político

Com vista grossa de boa parte do Parlamento e em especial do presidente da Câmara, Arthur Lira, que desconheceu mais de 150 pedidos de abertura de impeachment, Bolsonaro fez o que quis na Presidência.

Alvo de mais de 600 processos, cometeu sobretudo crimes de responsabilidade, que foram naturalizados usando-se a desculpa de que, num belo dia de São Nunca, as instituições iriam moderá-lo. Por pouco —mostram as mensagens no celular do seu ajudante de ordens— não deu um golpe de Estado ao estilo tabajara, com o apoio de envernizados juristas e um grupo de militares preocupados em não perder suas benesses e cuja ideologia de direita funciona como disfarce para o projeto de ganhar vantagem e dinheiro em tudo, passando por cima da moral e da legalidade.

Demétrio Magnoli - Biden e o 'perigo amarelo'

Folha de S. Paulo

Presidente americano sabota suas próprias iniciativas internacionais com polarização interna

Putin não está sempre errado. Dias atrás, o porta-voz do Kremlin disse que, ao qualificar Xi Jinping como "ditador", Biden evidencia a "imprevisibilidade" da política externa dos EUA. O líder chinês é, obviamente, um ditador. Mas o presidente americano ilumina seus próprios dilemas geopolíticos quando utiliza o rótulo na esteira da delicada visita de seu secretário de Estado, um gesto destinado a restabelecer alguma normalidade nas relações entre as duas grandes potências.

A rivalidade estratégica EUA/China é o traço estruturante do atual sistema internacional. Os EUA engajam-se na contenção da potência asiática cerceando a expansão de sua indústria de semicondutores e cercando-a por dois colares insulares de acordos de cooperação político-militar no Pacífico. Taiwan, nó central do primeiro colar insular, poderia deflagrar a faísca de um incêndio devastador.

João Gabriel de Lima* - Hora de conhecer o coração do Brasil

O Estado de S. Paulo

Se somos ‘o país que tem uma floresta’, deveríamos nos obrigar a conhecer a mata que nos define

Os brasileiros da terra indígena yanomami nunca receberam a devida atenção nos recenseamentos do IBGE. Era como se não fossem brasileiros. Essa lacuna imperdoável – que inclui também populações ribeirinhas e comunidades carentes – será preenchida no novo Censo, cujos dados devem ser divulgados na próxima quarta-feira.

“A gente vai ter o retrato fidedigno da terra indígena yanomami pela primeira vez na história”, diz João Villaverde, do Ministério do Planejamento, um dos coordenadores do recenseamento na região. “No Censo anterior faltaram, entre outras coisas, recursos e tecnologia.” Villaverde, professor na Fundação Getulio Vargas, é o entrevistado do minipodcast da semana.

Maílson da Nóbrega* - Autonomia estadual na reforma tributária

O Estado de S. Paulo

Argumentar que os governos subnacionais ficariam sujeitos a receber ‘mesada’ da União é desinformação. Isso não será permitido

A reforma tributária sob exame do Congresso pode criar um dos mais modernos e eficientes sistemas de tributação do consumo. Cinco tributos distorcivos (IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS) serão substituídos por um IVA dual, isto é, um imposto sobre o valor agregado com duas fontes de arrecadação, uma a cargo da União e outra, dos Estados e municípios. A proposta se baseia nas melhores experiências do mundo. Infelizmente, a reforma começou a perder qualidade. O relatório do respectivo grupo de trabalho, ao buscar compreensivelmente as condições políticas que viabilizem a aprovação do texto, optou pela criação de múltiplas alíquotas. O padrão mais eficiente é o da alíquota única.

Pressões setoriais demandam alíquotas diferenciadas para a agricultura e os serviços, neste caso mantendo a baixa tributação de segmentos abastados, que consomem serviços pagos de educação, saúde e lazer. A alíquota mais alta incidirá sobre a cesta alimentar dos mais pobres. A perda de qualidade da reforma reduzirá os efeitos na produtividade e no potencial de crescimento da economia. O maior dano pode vir, contudo, de resistências que se opõem à própria reforma, movidas pela equivocada percepção de ameaça à autonomia estadual. Mesmo assim, a reforma acarretará enormes ganhos para o País, mas poderia ser muito melhor.

Adriana Fernandes - Reforma e a carga tributária

O Estado de S. Paulo

O que ficou claro é que a proposta de reforma tributária ainda precisa de ajustes importantes

O relator da reforma tributária, Aguinaldo Ribeiro, ignorou no seu relatório uma das demandas mais importantes para os contribuintes: que a reforma tivesse um gatilho para ser acionado caso haja aumento da carga tributária após entrar em vigor.

Se a arrecadação aumentasse ou diminuísse, o gatilho seria acionado para recalibrar as alíquotas dos novos impostos.

Vale lembrar o princípio básico da reforma colocado pelos seus atores e referendado pelo governo Lula: o da neutralidade tributária. Ou seja, que a carga global não irá aumentar, mesmo que isso implique rearranjos entre os setores.

Pablo Ortellado - Dez anos depois, a hora da tarifa zero

O Globo

Ela é uma ideia revolucionária que, se bem implementada, traz uma série de benefícios à população

Pode ser difícil explicar o que fez com que a onda de protestos de junho de 2013 emergisse, mas não deveria ser difícil entender o que os manifestantes queriam.

No banco de dados “Grafias de junho”, que reuniu o registro fotográfico de mais de 6 mil cartazes de 40 cidades brasileiras, o tema mais frequente é mobilidade urbana, como mostrou Roberto Andrés no excelente livro “A razão dos centavos” (Zahar, 2023). No dia 17 de junho de 2013, em São Paulo, o Datafolha perguntou a motivação dos manifestantes, e 56% disseram “protestar contra o aumento da passagem”. No dia 20 de junho, o Ibope entrevistou manifestantes em oito capitais e descobriu que o principal motivo dos protestos era a redução das tarifas de transporte (o segundo era a corrupção). Não era apenas pelos 20 centavos, mas era também, e era sobretudo, pelos 20 centavos.

Eduardo Affonso - A chatice do mundo

O Globo

O ‘amor que não ousa dizer seu nome’ virou o ‘amor que não para de inventar nomes’

O presidente da França, Emmanuel Macron, tomou, de um gole só, uma garrafa de 330 ml de cerveja. Noutros tempos, a notícia seria tão relevante quanto “Caetano estaciona no Leblon”. Não na Era da Problematização Compulsória. Médicos criticaram a cena, afirmando que Macron deveria dar “exemplo de comportamento saudável”. Queriam que ele comemorasse a vitória do seu time, no vestiário de um estádio, com um copo (reciclável) de suco de couve, pepino, hortelã e água de coco? Uma deputada vislumbrou ali “masculinidade tóxica” — delírio análogo ao do personagem de Nélson Rodrigues que via degeneração dos costumes nas moças que tomavam Coca-Cola no gargalo.

A cada vestal a postos para apontar o pecado alheio, corresponde um resmungão que reage com igual intensidade e em sentido oposto, dizendo que o mundo está ficando muito chato. Não: está é cada vez mais interessante.

Carlos Alberto Sardenberg - A Selic vai cair, se o governo não atrapalhar

O Globo

Decisão do CMN elevando as metas provocará alta imediata nas expectativas de inflação, a ser consumadas nos próximos meses

Quer saber? O Banco Central tem razão. A queda da taxa básica de juros está logo ali. Mas ainda faltam algumas coisas. Foi o que disse o Comitê de Política Monetária do BC (Copom) ao cabo da reunião de quarta-feira passada, quando manteve a taxa em 13,75% ao ano. Comparando o último comunicado aos anteriores, há pelo menos quatro indicações de que o início da queda de juros está quase lá:

1) O Copom vinha repetindo que poderia ter de elevar o juro básico se as projeções indicassem desvio mais forte em relação às metas de inflação. Não diz mais, sinal de que não espera uma deterioração do quadro;

2) Entre os diversos cenários com que trabalhava, o Copom incluía uma versão considerando os juros de 13,75% mantidos por um longo período à frente. Também foi suprimida. Não está mais no horizonte do BC nem a alta dos juros básicos, nem sua manutenção nos atuais 13,75%;

3) O cenário de referência passou a ser aquele delineado no Boletim Focus. Esse boletim faz parte do ritual do regime de metas de inflação e funciona assim: departamentos técnicos de bancos, economistas-chefes de corretoras e fundos de investimentos, pessoal das consultorias e instituições de ensino e pesquisa rodam seus cenários macroeconômicos e enviam para o BC toda sexta-feira. O BC tabula isso tudo e publica o resumo na sua página, às segundas-feiras pela manhã. Trata-se, portanto, da visão do pessoal de fora do governo. Visão que o BC considerou em seu cenário de referência.

Alvaro Gribel - Juros já cruzaram a montanha

O Globo

Na prática, Banco Central já iniciou o processo de flexibilização da taxa Selic

Ainda que o Banco Central não tenha sido claro de que irá cortar os juros em agosto, é fato que a política monetária começou o processo de relaxamento. Como resumiu o gestor de uma grande corretora, “os juros já cruzaram a montanha”. A reação do Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e do próprio presidente Lula reflete duas preocupações legítimas, mas também carrega uma forte dose de sentimentalismo. Primeiro, a equipe econômica diz que são constantes os relatos de todos os setores — indústria, agricultura e serviços — de que os juros estão asfixiando a atividade econômica, com risco de empresas quebrarem. Segundo, a Selic elevada vai afetar o PIB e, consequentemente, a arrecadação, podendo minar o esforço fiscal. Até aí, tudo faz sentido. Mas há também o componente emocional pelo fato de Campos Neto ter sido indicado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. Por isso, mesmo que os juros caiam, nada indica que a convivência em algum momento será pacífica.

Marcus Pestana* - Reforma Tributária: necessidade e obstáculos (II)

Qualquer mudança no sistema tributário embute um conflito distributivo entre segmentos sociais, econômicos e esferas de governo. Uns perdem, outros ganham.

O ideal seria que Adão e Eva, nas origens do mundo, desenhassem o futuro sistema tributário ideal, justo e eficiente. Ainda assim, a serpente poderia atrapalhar. O desafio de promover uma reforma tributária em uma economia em pleno funcionamento assemelha-se a tarefa de mudar o pneu da bicicleta com ela andando.

No discurso, todos são a favor da reforma tributária já que o nosso sistema é reconhecidamente um dos piores do mundo: a carga de quase 34% é alta, o sistema pune os mais pobres e a burocracia e os conflitos jurídicos atazanam a vida dos empreendedores. Conclusão óbvia: precisamos mudar!

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Juro é tema que exige discussão técnica, não política

O Globo

Ao atacar presidente e autonomia do BC, Lula e Haddad contribuem para disseminar visão errada da economia

O Brasil é um dos poucos países onde os jornais dão destaque a um tema que, no mundo desenvolvido, fica relegado aos meios acadêmicos e ao mercado financeiro: a taxa de juros. Pudera. Ao manter a Selic em 13,75%, o Banco Central (BC) despertou a ira do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Lula não se cansa de atacar o BC, e Haddad disse que a queda do juro deveria ter começado em março. Ambos estão errados — e disseminam uma visão errada.

O brasileiro que embarcou na batalha em torno dos juros precisa evitar a simplificação grosseira — a ideia de Lula segundo a qual o BC “está jogando contra os interesses da economia” — e entender que se trata de discussão técnica. Quanto mais é tratada em tons políticos, pior para o país. É um sintoma do nosso atraso que mesmo meios intelectuais sofisticados aceitem argumentos pedestres, que atribuem ao presidente do BC, Roberto Campos Neto, alguma intenção política (ou maligna), ignorando o papel e o funcionamento dos bancos centrais. Tornar o BC autônomo foi, por sinal, fundamental justamente para evitar a interferência política que manipulava juros e alimentava a inflação no passado.

Poesia | Ascenso Ferreira -Trem de Alagoas

 

Música | Dominguinhos e Jackson do Pandeiro