Merval Pereira
DEU EM O GLOBO
O "ativismo judicial" do Supremo Tribunal Federal voltou mais uma vez a ser o tema central do debate político com a decisão de impor 19 condições para que a reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, se mantivesse em território contínuo como fora demarcado pelo governo federal. Essa tendência, que foi retomada em 2007 com decisões que tiveram grande repercussão na opinião pública e na vida política do país, como a sobre a fidelidade partidária, o direito de greve no serviço público, o direito à aposentadoria especial, entre outras, está sendo reafirmada pela presidência do ministro Gilmar Mendes no STF, na qual muitos identificam uma estratégia de médio prazo de participar da definição de políticas públicas, tendência que seria majoritária hoje no Supremo.
O constitucionalista Luiz Roberto Barroso faz uma diferenciação entre judicialização e ativismo. O primeiro seria uma consequência do modelo constitucional brasileiro, com uma Constituição muito abrangente, que cuida de muitas matérias, de muitos detalhes.
Já o ativismo é uma atitude, quando o Supremo toma uma decisão política sobre situações que não foram expressamente previstas, nem na Constituição nem na lei.
Joaquim Falcão, diretor do Direito Rio da Fundação Getulio Vargas e representante do Senado no Conselho Nacional de Justiça, diz que o Judiciário pró-ativo caminha em dois sentidos, um político, o das decisões do Supremo, e outro de funcionar melhor, o que legitima seu eventual "ativismo", termo que não agrada a Falcão por conter um sentido de atuar "acima da lei".
O termo foi escrito pela primeira vez pelo jornalista americano Arthur Schlesinger, numa reportagem sobre a Suprema Corte dos Estados Unidos para a revista "Fortune", em 1947, para identificar os juízes que se consideravam no dever de interpretar a Constituição para garantir direitos.
Tema polêmico na ciência política e no Direito constitucional, as expressões "judicialização da política" ou "politização da Justiça" indicam a expansão do Poder Judiciário no processo decisório das democracias contemporâneas, e foram inicialmente utilizadas por Carl Schmitt, na sua crítica ao controle de constitucionalidade de feição política.
No Brasil, o tema foi estudado por Luiz Werneck Vianna, coordenador do Centro de Estudos Direito e Sociedade, do Iuperj, que, investigando as relações entre a política e o Poder Judiciário, publicou "A judicialização da política e das relações sociais" (Rio, Revan, 1999).
Joaquim Falcão considera que o Judiciário, a cada vez que vai ficando mais ágil e mais forte na percepção da população, vai tendo fundamentos para esses avanços. Preocupado com a lentidão do sistema judiciário brasileiro, ele encomendou uma pesquisa de opinião ao Instituto de Pesquisas Sociais Políticas e Econômicas (Ibespe) para verificar a percepção do brasileiro sobre o Judiciário, e apresentou os resultados em uma recente reunião do Conselho Nacional de Justiça com juízes de todo o país.
O grau de satisfação com o atendimento recebido da Justiça foi de 53%, sendo que 46% da população se diz "satisfeita". Entre os pontos positivos, destacam-se quase no mesmo nível o acesso à população de baixa renda e o combate às irregularidades.
Em uma avaliação da evolução da Justiça nos últimos cinco anos, depois da aprovação da reforma do Judiciário, 44% consideraram que a situação está melhor. E, quando sentem seus direitos desrespeitados, os cidadãos tendem majoritariamente a "procurar por conta própria uma solução amigável, com conciliação", e a segunda medida é "procurar um advogado".
O que leva Joaquim Falcão a comentar que o que a população quer é mediação, e ser servida por juizados de pequenas causas, cuja agilidade é maior. Mas a maior característica do Poder Judiciário, para os entrevistados, é a lentidão.
Essa lentidão, para Falcão, tem a ver, entre outras coisas, com que o chama de "uso patológico do Judiciário", isto é, as demandas de massa que poderiam ser resolvidas por uma atuação mais ativa dos órgãos governamentais como as agências reguladoras, pois os serviços públicos, como telefonia, são os campeões de processos. "No fundo, é uma transferência de custos do Poder Executivo para o Judiciário", diz Falcão.
Para Luiz Roberto Barroso, o Supremo está atendendo a algumas demandas sociais que o Congresso não atende, porque vive uma crise de funcionalidade, de representatividade, deixou de ser a vitrine da agenda política nacional.
Ele dá um exemplo: no caso das células-tronco embrionárias, uma lei aprovou essas pesquisas, e não houve debate, a lei passou quase em branco. "Mas quando o procurador-geral da República levou o debate para o Supremo, virou um tema na agenda política do país".
No caso da fidelidade partidária, Barroso diz que os ministros pegaram o princípio democrático e com base nele criaram uma regra que diz que, se mudar de partido depois da eleição, perde o mandato. "Isso não está escrito em nenhum lugar, mas eles sustentaram que isso viola o princípio democrático".
O ministro Carlos Alberto Direito, nas suas exigências sobre a reserva indígena de Roraima, também, segundo Barroso, "diz coisas que já decorreriam logicamente da Constituição, como que as Forças Armadas e a Polícia Federal podem entrar na reserva porque aquilo é um território nacional, ou que o usufruto é do solo, e, portanto, os potenciais energéticos e recursos minerais não pertencem aos índios".
Na verdade, as exigências do ministro Carlos Alberto Direito, acatadas pelo pleno do Supremo, são interpretações da Constituição aplicadas a esta situação concreta, vocalizando o sentimento de alguns setores da sociedade que sentiam ameaçada a soberania nacional sobre aquele território, temor que nem o Executivo nem o Legislativo souberam aplacar. (Continua amanhã)
DEU EM O GLOBO
O "ativismo judicial" do Supremo Tribunal Federal voltou mais uma vez a ser o tema central do debate político com a decisão de impor 19 condições para que a reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, se mantivesse em território contínuo como fora demarcado pelo governo federal. Essa tendência, que foi retomada em 2007 com decisões que tiveram grande repercussão na opinião pública e na vida política do país, como a sobre a fidelidade partidária, o direito de greve no serviço público, o direito à aposentadoria especial, entre outras, está sendo reafirmada pela presidência do ministro Gilmar Mendes no STF, na qual muitos identificam uma estratégia de médio prazo de participar da definição de políticas públicas, tendência que seria majoritária hoje no Supremo.
O constitucionalista Luiz Roberto Barroso faz uma diferenciação entre judicialização e ativismo. O primeiro seria uma consequência do modelo constitucional brasileiro, com uma Constituição muito abrangente, que cuida de muitas matérias, de muitos detalhes.
Já o ativismo é uma atitude, quando o Supremo toma uma decisão política sobre situações que não foram expressamente previstas, nem na Constituição nem na lei.
Joaquim Falcão, diretor do Direito Rio da Fundação Getulio Vargas e representante do Senado no Conselho Nacional de Justiça, diz que o Judiciário pró-ativo caminha em dois sentidos, um político, o das decisões do Supremo, e outro de funcionar melhor, o que legitima seu eventual "ativismo", termo que não agrada a Falcão por conter um sentido de atuar "acima da lei".
O termo foi escrito pela primeira vez pelo jornalista americano Arthur Schlesinger, numa reportagem sobre a Suprema Corte dos Estados Unidos para a revista "Fortune", em 1947, para identificar os juízes que se consideravam no dever de interpretar a Constituição para garantir direitos.
Tema polêmico na ciência política e no Direito constitucional, as expressões "judicialização da política" ou "politização da Justiça" indicam a expansão do Poder Judiciário no processo decisório das democracias contemporâneas, e foram inicialmente utilizadas por Carl Schmitt, na sua crítica ao controle de constitucionalidade de feição política.
No Brasil, o tema foi estudado por Luiz Werneck Vianna, coordenador do Centro de Estudos Direito e Sociedade, do Iuperj, que, investigando as relações entre a política e o Poder Judiciário, publicou "A judicialização da política e das relações sociais" (Rio, Revan, 1999).
Joaquim Falcão considera que o Judiciário, a cada vez que vai ficando mais ágil e mais forte na percepção da população, vai tendo fundamentos para esses avanços. Preocupado com a lentidão do sistema judiciário brasileiro, ele encomendou uma pesquisa de opinião ao Instituto de Pesquisas Sociais Políticas e Econômicas (Ibespe) para verificar a percepção do brasileiro sobre o Judiciário, e apresentou os resultados em uma recente reunião do Conselho Nacional de Justiça com juízes de todo o país.
O grau de satisfação com o atendimento recebido da Justiça foi de 53%, sendo que 46% da população se diz "satisfeita". Entre os pontos positivos, destacam-se quase no mesmo nível o acesso à população de baixa renda e o combate às irregularidades.
Em uma avaliação da evolução da Justiça nos últimos cinco anos, depois da aprovação da reforma do Judiciário, 44% consideraram que a situação está melhor. E, quando sentem seus direitos desrespeitados, os cidadãos tendem majoritariamente a "procurar por conta própria uma solução amigável, com conciliação", e a segunda medida é "procurar um advogado".
O que leva Joaquim Falcão a comentar que o que a população quer é mediação, e ser servida por juizados de pequenas causas, cuja agilidade é maior. Mas a maior característica do Poder Judiciário, para os entrevistados, é a lentidão.
Essa lentidão, para Falcão, tem a ver, entre outras coisas, com que o chama de "uso patológico do Judiciário", isto é, as demandas de massa que poderiam ser resolvidas por uma atuação mais ativa dos órgãos governamentais como as agências reguladoras, pois os serviços públicos, como telefonia, são os campeões de processos. "No fundo, é uma transferência de custos do Poder Executivo para o Judiciário", diz Falcão.
Para Luiz Roberto Barroso, o Supremo está atendendo a algumas demandas sociais que o Congresso não atende, porque vive uma crise de funcionalidade, de representatividade, deixou de ser a vitrine da agenda política nacional.
Ele dá um exemplo: no caso das células-tronco embrionárias, uma lei aprovou essas pesquisas, e não houve debate, a lei passou quase em branco. "Mas quando o procurador-geral da República levou o debate para o Supremo, virou um tema na agenda política do país".
No caso da fidelidade partidária, Barroso diz que os ministros pegaram o princípio democrático e com base nele criaram uma regra que diz que, se mudar de partido depois da eleição, perde o mandato. "Isso não está escrito em nenhum lugar, mas eles sustentaram que isso viola o princípio democrático".
O ministro Carlos Alberto Direito, nas suas exigências sobre a reserva indígena de Roraima, também, segundo Barroso, "diz coisas que já decorreriam logicamente da Constituição, como que as Forças Armadas e a Polícia Federal podem entrar na reserva porque aquilo é um território nacional, ou que o usufruto é do solo, e, portanto, os potenciais energéticos e recursos minerais não pertencem aos índios".
Na verdade, as exigências do ministro Carlos Alberto Direito, acatadas pelo pleno do Supremo, são interpretações da Constituição aplicadas a esta situação concreta, vocalizando o sentimento de alguns setores da sociedade que sentiam ameaçada a soberania nacional sobre aquele território, temor que nem o Executivo nem o Legislativo souberam aplacar. (Continua amanhã)