- O Globo
Política e cultura, segundo uma opção democrática, constitucionalista, reformista, plural.
sábado, 30 de janeiro de 2021
Merval Pereira - Só até a beira
Ascânio Seleme - Bolsonaro corrupto
O
capitão, que foi eleito prometendo varrer a corrupção de Brasília, montou ele
próprio um esquema para se defender e proteger as falcatruas de seus filhos e
aliados
Já se falou quase tudo do
governo de Jair Bolsonaro. Da sua índole intolerante e antidemocrática, da sua
beligerância permanente, das baixarias que produz em escala industrial, dos
seus inúmeros crimes de responsabilidade, da sua fraqueza moral, dos atentados
que comete contra a vida humana no tratamento que dispensa à pandemia do coronavírus.
Agora, pode-se também afirmar que esse governo é corrupto. O capitão, que foi
eleito prometendo varrer a corrupção de Brasília, montou ele próprio um esquema
para se defender e proteger as falcatruas de seus filhos e aliados.
São
várias as
evidências desse esquema ao redor do presidente. Bolsonaro controla tanto a
Procuradoria-Geral da República quanto a Polícia Federal com absoluto rigor.
Apesar de manter a aparência de independência, Augusto Aras e Rolando Alexandre
de Souza fazem o que for preciso para não desagradar ao presidente. Outras
instituições do Estado, além da PF, são usadas sem constrangimento. Tanto o
Ministério da Justiça quanto a Advocacia- Geral da União foram
instrumentalizadas por Bolsonaro para defender ele mesmo, os seus três zeros e
a sua turma.
Com o
centrão no
comando da pauta do governo, o que teremos até o desfecho deste lamentável
mandato será apenas mais um governo corrupto. Sabe-se desde já que na Câmara
Bolsonaro vai comer pelas mãos de Arthur Lira (corrupção ativa, lavagem de
dinheiro, violência doméstica) e seus parceiros. Lira deve ganhar a presidência
da Casa, mas mesmo que perca, será o guia do capitão naquele plenário. No
Senado, com Rodrigo Pacheco ocorrerá o mesmo. Como noticiou o Estadão na
quinta-feira, o deputado já anunciou que, sendo eleito, vai torpedear CPIs
contra o Planalto. Duas já estão na sua mira, a das Fake News e a da Saúde. E o
senador avisou que não gosta de CPIs. Oras.
O governo vai voar em céu de brigadeiro e só sentirá turbulência se não soltar lastro toda vez que for exigido pelos aliados gulosos. Vai precisar se livrar de muito peso, é bom que se diga. Já sinalizou inclusive que pode criar novos ministérios para abrigar a turminha. Bolsonaro vai fazer concessões, nenhuma dúvida, mas não terá sequer uma agenda que consiga pelo menos balancear possíveis estragos que vierem a ser feitos por larápios. Como se viu na demissão do presidente da Eletrobrás, nem a agenda liberal sobreviveu a dois anos de governo. Fora o escancaramento na liberação de armas e munições, a pauta conservadora também não anda, porque a turma não é tão besta assim. O que vai sobrar é o velho toma-lá-dá-cá.
Míriam Leitão - Ação deliberada de espalhar vírus
Crime
de epidemia. Essa é a acusação feita a Jair Bolsonaro na representação
encaminhada à Procuradoria-Geral da República para que ele ofereça denúncia
contra o presidente. “Da mesma forma que alguém que agrave uma lesão existente
responde por lesão corporal, presidente que intensifica a epidemia existente
responde por esse crime. Jair Bolsonaro sempre soube das consequências de suas
condutas, mas resolveu correr o risco.”
Esse crime é previsto no artigo 267 do Código Penal. “Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos” e a punição é prisão de 10 a 15 anos, podendo agravar-se a pena se houver morte. Torna-se então crime hediondo.
Houve outras
ações às quais essa representação se refere e que apontaram vários artigos do
Código Penal que ele teria infringido, como o 132, que é pôr em perigo a vida
ou a saúde de outrem.
O grupo de procuradores aposentados — alguns exerceram até recentemente postos elevados no Ministério Público — e um desembargador que entrou com a ação apoiou-se em pesquisa. Recentemente publicado, o estudo faz uma linha do tempo dos atos e palavras do presidente da República nesta pandemia, para assim mostrar que houve uma ação deliberada do presidente de contaminar o máximo de pessoas, na suposição de que assim se atingiria a tal “imunidade de rebanho”.
Oscar Vilhena Vieira - A troca da guarda
País
ameaça dar mais um passo atrás com eleição no Congresso
Caso
se confirme a eleição dos candidatos apoiados pelo governo para a presidência
das duas casas do Congresso Nacional, o Brasil estará dando mais um perigoso
passo no processo de
regressão democrática em que ingressou com as eleições de 2018.
Conforme
a elegante formulação do ex-ministro Carlos Ayres Britto: “impedir que um
governante subjetivamente autoritário possa emplacar um governo objetivamente
autoritário” é uma das funções fundamentais de um regime democrático e,
portanto, uma tarefa essencial de instituições como o Congresso Nacional e o
Supremo Tribunal Federal.
Com a ascensão de populistas autoritários em diversas partes do mundo, inúmeros regimes democráticos têm sido submetidos a um dramático teste de resiliência. Muitos, como demonstram as experiências da Venezuela, da Rússia, da Hungria, da Índia ou da Turquia, não têm sobrevivido aos ataques de populistas e autoritários que, por meio da erosão e do vandalismo institucional, pavimentam o processo de subversão da democracia liberal.
Demétrio Magnoli – O oxigênio do impeachment
Remoção
de presidentes catastróficos é derradeira ferramenta de defesa da democracia
Jair
Bolsonaro comete
crimes de responsabilidade diversos desde que subiu a rampa do
Planalto. Dezenas
de pedidos de impeachment protocolados na Câmara ainda aguardam
encaminhamento, pois Rodrigo Maia sabe que o destino do presidente não será
decidido no tabuleiro das leis, mas no da política. A tragédia de Manaus marca
uma reviravolta no cenário: depois das mortes
por asfixia, o impeachment transitou do éter dos sonhos para a esfera
das possibilidades.
A
histeria do impeachment é, hoje, a maior ameaça ao impeachment. O Congresso não
impedirá o presidente pelo
chiclete ou pelo leite condensado. Os escândalos culinários provavelmente
indicam um rastro de esquemas corruptos ligados a superfaturamentos,
fornecedores fantasmas e lavagem de dinheiro. Contudo, a investigação do
labirinto demandaria meses, obscurecendo o crime maior que tem o potencial de
abreviar o pesadelo nacional.
Manaus é a prova de que já não dispomos de um governo funcional. Nos países modernos, retirantes não perecem de inanição na beira da estradas, não porque a miséria foi extirpada mas porque o Estado é capaz de mobilizar meios emergenciais para evitar o desenlace fatal. As mortes por falta da cilindros de oxigênio nos remetem a um passado mais ou menos distante, quando famélicos desabavam, exaustos e desamparados, fugindo das secas nordestinas. Na época, faltavam-nos aviões, helicópteros, estradas, caminhões e recursos financeiros. Hoje, tudo isso existe: o que falta é governo.
Cristina Serra - Bolsonaro e a PQP
Seus
ataques ao jornalismo não podem ser naturalizados.
"Previsão
do tempo: Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país
está sendo varrido por fortes ventos. Máx.: 38º, em Brasília. Mín.: 5º, nas
Laranjeiras". Com essa previsão do tempo, publicada na primeira página do
Jornal do Brasil em 14 de dezembro de 1968, o jornalista Alberto Dines (1932-2018)
tentava driblar a censura para noticiar o AI-5, que
deu poderes de exceção aos generais para reprimir opositores da ditadura.
Naqueles
dias, atitudes como a de Dines poderiam resultar em prisão, tortura e morte.
Transposta para o Brasil hoje e guardadas as diferenças históricas, a alegoria
meteorológica é de assombrosa atualidade. Sob Bolsonaro, doentes morrem por
falta de ar. As instituições sufocam. Ele e sua súcia de bandoleiros semeiam
tormentas toda vez que ameaçam com golpe.
Escumalha da ditadura, Bolsonaro, se pudesse, mandaria todos os jornalistas para a "ponta da praia". Nesta semana, contrariado com uma publicação, o boca-suja do Planalto despejou seu vocabulário de espelunca contra a imprensa, mais uma vez. Aos gritos, o presidente-sem-decoro da República mandou o jornalismo brasileiro para a pqp e que os jornalistas enfiassem latas de leite condensado "no rabo".
Hélio Schwartsman - O papel dos clássicos
Entre
as missões da escola está a de produzir um conjunto de referências que sejam
partilhadas por quase todos
A
escola deve cobrar a leitura dos clássicos da literatura? O argumento
contrário, apresentado pelo youtuber Felipe Neto,
reza que forçar jovens a enfrentar obras para as quais ainda não estão
intelectualmente preparados —e ele citou Álvares de Azevedo e Machado de Assis—
apenas os faz desgostar da literatura.
Não
acho que esse seja o melhor ângulo para abordar a questão. Aqui, eu sou um
pouco fatalista. Há pessoas que gostam de ler e há as que não gostam. O que
define isso é uma complexa combinação de genes e estímulos ambientais nos
primeiros anos de vida. Se a meta é formar um público leitor, isso precisa ser
trabalhado bem antes do ensino médio ou mesmo do fundamental 2.
De qualquer modo, a escola precisa definir conteúdos concretos para as diferentes disciplinas que ministra. Em literatura, pode ser Machado ou um romance açucarado com pitadas de sexo e muita ação. Em tese, tanto faz. Mas reparem que não nos perguntamos se a trigonometria é mais ou menos "divertida" que a análise combinatória nem se as agruras de uma cotangente tiram o gosto da garotada pela matemática.
Ricardo Noblat - 2020, o ano que não acabou. 2022, o ano que já começou
2021,
o ano que não foi
Nada
sairá caro para Jair Bolsonaro se ele conseguir realizar daqui a um ano seu
intento de se reeleger. É isso que o move desde que foi admitido pela primeira
vez no imóvel mais cobiçado do país, o monumental e nada acolhedor Palácio da
Alvorada, e passou a despachar no terceiro andar do Palácio do Planalto.
Liberar
mais de 4 bilhões de reais para que deputados federais e senadores votem em
seus candidatos às presidências da Câmara e do Senado? Bobagem! Sai na urina. E
não sai do bolso dele, sairá indiretamente do nosso que pagamos impostos.
Recriar ministérios que extinguiu para acomodar nomes do Centrão?
Quem
ficará chocado com isso é porque não votou nele – ou votou, arrependeu-se e não
votará mais, a não ser que a esquerda tenha chance de voltar ao poder.
Bolsonaro quer preservar seu capital inicial – os 30% dos brasileiros que
incondicionalmente o apoiam. Se conseguir, uma das vagas do segundo turno será
sua.
De Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG), os mais cotados para comandar a Câmara e o Senado a partir da próxima segunda-feira, Bolsonaro espera que lhe entreguem algumas coisas prometidas: barrar pedidos de impeachment, facilitar a aprovação de reformas da economia e driblar pautas-bombas.
João Gabriel de Lima - O Canadá e o Brasil na ‘era da precariedade’
O
coronavírus chamou atenção para a importância de uma rede de proteção social
permanente
Parte
do enredo de As Invasões Bárbaras, filmaço que levou o Oscar de produção
estrangeira em 2003, se passa nos corredores de um hospital público do Canadá.
O que se vê não combina com um país considerado modelo de bem-estar social:
doentes amontoados pelos corredores, atendimento precário, burocracia infinita
para agendar procedimentos. O protagonista do filme, Rémy, tem uma doença
terminal. Ele só consegue tratamento decente porque seu filho, Sébastien, pode
pagar os honorários dos melhores médicos.
Poucos países são mais diferentes que Canadá e Brasil. Jogamos vôlei na praia, eles brincam com bonecos na neve. Nosso mito musical é Tom Jobim, o gênio da bossa nova; o deles, Glenn Gould, pianista que revolucionou a música clássica. No mundo do coronavírus, no entanto, os dois países têm a pandemia em comum – e precisaram desenhar programas emergenciais a toque de caixa. “O Canadá criou do dia para a noite um seguro-desemprego dos sonhos”, diz o cientista político Ricardo Tranjan, brasileiro radicado em Ottawa, personagem do minipodcast da semana. Tal seguro pode inspirar algo que se estenda a tempos normais – o que seria um saldo positivo da pandemia.
Monica de Bolle* - A política econômica de Guedes e a Covid-19
O
que significa “responsabilidade fiscal” se ela viola o direito à vida de uma
parte da população brasileira neste momento?
“Quer criar auxílio de novo? Tem de ter muito
cuidado, pensar bastante. Se fizer isso, não pode ter aumento automático de
verbas para a educação e segurança pública porque a prioridade passou a ser a
guerra (contra a Covid).
Pega as guerras aí para ver se tinha aumento de salário, se tinha dinheiro para
a saúde e educação. Não tem, é dinheiro para a guerra.” Essas palavras são de
Paulo Guedes em recente matéria da Folha de
S.Paulo.
É
bom lembrar que a metáfora da guerra é inadequada para a pandemia, uma crise
sanitária com desdobramentos singulares na economia. O ministro deveria saber
disto: na guerra, o capitalismo implica a produção intensiva de certos bens.
Mas a fala também deixa ver a ideia que Guedes tem do capitalismo. Ela tem
relação com um fenômeno que fez Arendt afirmar, sobre o imperialismo em
suas Origens do totalitarismo,
que “a expansão não era uma fuga apenas para o capital supérfluo. Mais
importante do que isso, a expansão protegia os donos do capital contra a ameaça
de se manterem, eles próprios, completamente supérfluos e parasitários”.
Arendt, tão citada por liberais, era uma crítica da centralidade da economia na
política, da política econômica como uma forma de administração da vida. Se
cabe alguma analogia entre a pandemia no Brasil e a guerra é que o governo que
Guedes integra e ao qual dá racionalidade administra a morte.
Desde o início da pandemia, a política econômica de Guedes contextualiza a epidemia no Brasil e aponta as escolhas que devem ser administradas em tal situação.
Adriana Fernandes - A máquina do Executivo está a serviço de honrar o toma lá dá cá
Ala
política do governo está ocupando espaços dentro do próprio Orçamento, sem que
isso necessariamente atenda às prioridades do País
Não
faltou estratégia nem plano. Foi arquitetada a ação que a ala política do
governo Jair Bolsonaro empreendeu por meses até a abertura do
cofre para destinar R$ 3 bilhões para 250 deputados e 35 senadores aplicarem em
obras em seus redutos eleitorais.
O
dinheiro saiu do Ministério do Desenvolvimento Regional e tem servido como
moeda de troca de apoio às candidaturas do Palácio do Planalto nas eleições das mesas da Câmara e do Senado.
Reportagem
de Breno Pires e Patrik Camporez, do Estadão, revelou a existência de uma
planilha interna de controle de verbas, até então sigilosa, com os nomes dos
parlamentares contemplados com os recursos “extras”, que vão além dos que eles
já têm direito de indicar. Segue o fio:
A
estratégia começou a ser desenhada depois que fracassou a tentativa de criação
do Pró-Brasil, o programa do grupo político-militar (capitaneado pelo
ministro Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional) para deslanchar
investimentos em obras, sobretudo no Nordeste,
onde o presidente queria ampliar sua base de apoio nas eleições municipais, de
olho na sua reeleição em 2022.
Marinho
entrou em choque com o ministro Paulo Guedes,
contrário à politica do Pró-Brasil como resposta à crise da covid-19.
Guedes começou a ser fritado pelos desenvolvimentistas do governo e pelo Centrão, mas resistiu com apoio do mercado financeiro.
Paulo Sotero – O Brasil já perdeu dois bondes no governo Biden
Mas o País é maior do que o governo que tem e isso é reconhecido no exterior
A
participação de Raquel Krähenbühl, da Rede Globo, no pool de
jornalistas que acompanhou o presidente Joe Biden no dia de sua posse resultou
da competência e dedicação da jornalista, a única correspondente internacional
incluída no grupo. Mas ela ilustra algo maior, a que me referi em novembro neste
espaço: a despeito da devoção subserviente de Jair Bolsonaro a Donald Trump,
que levou o Brasil a perder os bondes do combate à pandemia e às mudanças
climáticas, Biden não hostilizará o Brasil – embora não faltem motivos para
fazê-lo. Isso não significa que a nova administração em Washington terá tempo
para um presidente que reafirmou sua devoção ao fracassado ex-líder americano
mesmo depois de ele ter desencadeado manobras para invalidar a surra que levou
nas urnas de novembro e que culminaram num assalto sem precedentes ao
Capitólio, no dia 6 de janeiro, justificando a instauração de um segundo
processo de impedimento constitucional – fato inédito na História dos Estados
Unidos.
A atrasadíssima carta de congratulações que o presidente do Brasil mandou ao colega americano não vale o papel em que foi impressa e foi recebida como uma manifestação sem significado. As mensagens oriundas do Brasil que contam hoje em Washington são duas, e estão relacionadas com prioridades do governo Biden. A primeira, intensamente negativa, é a desastrosa resposta brasileira à epidemia de covid-19, tragédia que os dois países compartilham por motivos parecidos e levou as autoridades americanas a reimporem as restrições de acesso aos EUA por viajantes oriundos do Brasil, que Trump tinha levantado no apagar das luzes de seu governo. Se for para valer e produzir resultados – ou seja, punições exemplares –, será bem recebida a investigação que o Supremo Tribunal Federal ordenou contra o ministro da Saúde, um general sem qualificação para o cargo que ocupa e que comprovou sua incompetência em logística, supostamente sua especialidade, deixando que faltassem tanques de oxigênio nos hospitais de Manaus.
Marcus Pestana* - A agonia da semana
Há fatalidades e há erros cometidos. Ninguém
poderia prever o inesperado ataque do coronavírus. Mas era possível não
mergulhar no negacionismo, não apostar em falsas soluções, mobilizar a
sociedade para a prevenção, apostar na convergência, preparar rápida ação de
imunização, terreno em que o Brasil tem larga experiência. Outra enorme perda
de tempo e oportunidades foi a falsa polêmica entre vidas e empregos, saúde versus
economia. As duas crises são irmãs gêmeas, faces da mesma moeda. Só haverá
retomada econômica com a ampla vacinação da população.
Os desafios para 2021 são enormes: comprar tardiamente insumos farmacêuticos e vacinas num mercado mundial distorcido; vacinar a maioria da população, o que parece que só será possível até o final do ano; oferecer auxílio emergencial aos milhões de desempregados, desalentados e subempregados, e estímulo econômico a milhares de empresas que se encontram à beira do abismo, num quadro de total penúria fiscal e risco de perda do controle sobre a estabilidade econômica.
André Lara Resende - Vale tudo pelo equilíbrio fiscal?
Verdadeira responsabilidade não é a harmonia
orçamentária em todas as circunstâncias e a qualquer custo
A partir da segunda metade dos anos 1990, depois da estabilização da inflação crônica brasileira, passou a haver uma sistemática preocupação de evitar que as contas do setor público saíssem de controle. A preocupação com o descontrole das contas públicas advém da vinculação entre o déficit fiscal e a expansão monetária. Até o fim do século passado, a macroeconomia hegemônica considerava que o descontrole dos gastos públicos e a excessiva expansão da moeda estavam por trás de todo processo inflacionário. Como gato escaldado tem medo de água fria, no Brasil depois da estabilização, a preocupação com o equilíbrio das contas públicas passou a pautar a política macroeconômica.
No momento em que se discute a suspensão do auxílio
emergencial à população em nome do equilíbrio fiscal, justamente quando a
epidemia de covid recrudesce, é fundamental entender que a verdadeira
responsabilidade fiscal não é o equilíbrio orçamentário em todas as
circunstâncias e a qualquer custo. Nas atuais circunstâncias, a insistência no
equilíbrio fiscal, além de macroeconomicamente equivocada, é moralmente
inaceitável. O objetivo deste artigo é examinar mais a fundo as raízes dos
equívocos da macroeconomia hegemônica. Apesar de revista, continua pautada pela
lógica da moeda metálica. É incapaz de incorporar em seu arcabouço analítico a
moeda fiduciária e o crédito sem lastro na poupança prévia.
O “quantitative easing”, QE, um inusitado
experimento de expansão monetária sem respaldo analítico prévio consolidado,
multiplicou o passivo dos bancos centrais por fatores superiores a dez vezes
num espaço de poucos meses, sem que houvesse qualquer sinal de pressão inflacionária.
Ficou então patente que não há relação entre a expansão da moeda e a inflação.
Todas as economias onde o QE foi posto em prática continuaram a flertar com a
deflação.
Abandonada na prática a relação de causalidade
entre expansão monetária e inflação, por tantas décadas sustentada pela
macroeconomia hegemônica, a restrição conceitual imposta à expansão do crédito
público foi reformulada como um limite superior para a relação dívida/PIB.
Em 2009, Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff2, dois
expoentes da macroeconomia hegemônica, publicaram trabalho influente
sustentando que o limite a partir do qual a economia se desorganizaria seria
90%. Mesmo sem considerar a totalidade do passivo consolidado do Estado, ou
seja, o passivo do Tesouro somado ao do Banco Central, antes mesmo da crise de
covid, inúmeros países, entre eles Japão, Itália, Grécia, EUA, já tinham
ultrapassado esse nível de endividamento.
A reação coordenada das políticas monetárias e
fiscais à pandemia durante 2020 voltou a elevar a relação dívida/PIB em todo o
mundo. Apesar dos altos níveis de endividamento público e da abundância de
crédito monetário, não há sinais da volta da inflação, nem de que as economias
avançadas estejam à beira de uma crise fiscal.
Está claro que não existe um limite fatídico para a
relação dívida/PIB, a partir do qual se abriria um “abismo fiscal”, na
expressão preferida dos analistas brasileiros, e o país entraria em colapso.
Diante de tão flagrante evidência, os principais
macroeconomistas americanos deram uma guinada conceitual. No início de dezembro
último, Jason Furman e Lawrence Summers3, renomados professores da Universidade
Harvard, argumentaram em favor de uma mudança de paradigma: a relação
dívida/PIB, ao contrário do que acreditavam, não é um indicador relevante da
sustentabilidade fiscal.
Ben Bernanke, ex-presidente do Fed, assim como
Olivier Blanchard e Kenneth Rogoff, ex-economistas chefes do FMI, concordaram
com eles. Como as taxas de juros praticamente nulas não foram capazes de
reativar as economias paralisadas pela pandemia, Furman e Summers agora
defendem uma política fiscal expansionista, baseada num programa de
investimentos públicos.
No Brasil, ao menos por enquanto, a esmagadora
maioria dos analistas continua a defender a imperiosa necessidade de equilibrar
as contas públicas. Optaram por se dissociar de seus mentores americanos para
sustentar seus dogmas. Apelam para a tese da jabuticaba, Brasil é diferente
porque o Estado e os políticos não são confiáveis. Sustentam que por aqui o
equilíbrio orçamentário é ao mesmo tempo condição necessária para evitar o
abismo e condição suficiente para que a economia volte a crescer.
Aparentemente, os únicos temas econômicos relevantes são o risco fiscal e as
reformas necessárias para garantir o equilíbrio das contas públicas. Tudo mais
seria secundário.
O ponto central da tese de Keynes na “Teoria Geral”
é que a política monetária precisa ser acompanhada do investimento público para
que a economia se recupere. A possibilidade de que, apesar do crédito abundante
e dos juros baixos, não haja recuperação do investimento e da atividade
econômica não deveria ser novidade.
A possibilidade do que Keynes chamou de uma
armadilha da liquidez tem sido efetivamente reivindicada para explicar por que,
apesar das taxas de juros muito próximas de zero, as economias contemporâneas
continuam estagnadas e sem inflação. No entanto, a solução proposta por Keynes,
uma política fiscal expansionista com o aumento do investimento público,
continua a ser vista com desconfiança pela grande maioria dos analistas.
Mesmo superado o dogma do equilíbrio fiscal e o fetiche da relação dívida/PIB, a macroeconomia hegemônica continua a não entender que a expansão do crédito prescinde da expansão da poupança. A tese de que a taxa de juros baixa é consequência do excesso de poupança tem origem na análise dos economistas clássicos que precederam Keynes. Segundo os clássicos, a taxa de juros é resultado do equilíbrio entre a oferta e a demanda de fundos para investimento. Conhecida como a teoria dos “loanable funds”, dos fundos disponíveis para empréstimos, foi um dos pontos centrais da crítica de Keynes, para quem a taxa de juros nada tem a ver com a poupança, é determinada no mercado monetário. Para Keynes, a poupança é sobretudo função da renda e investimento do otimismo dos empresários. São ambos pouco sensíveis à taxa de juros. Se não há otimismo e perspectiva de crescimento, a economia pode ficar estagnada, sem investimento, mesmo quando a taxa de juros está baixa e há abundância de crédito.
Sérgio Augusto - O último Silveira
Poucos
colegas me inspiraram tanto respeito e reverente temor quanto o gaúcho Zé
Perdi
mais um amigo de covid. Virou rotina. Cismei de contabilizar as perdas que mais
intensamente me atingiram nos últimos 10 meses, e só me lembrei de três
exceções ao flagelo virótico: Nirlando Beirão, Pete Hamill e Zuza Homem de
Mello, abatidos por outras enfermidades. No início da semana, o vírus nos levou
José Silveira, um dos últimos moicanos da era de ouro do jornalismo.
Não
conheci ninguém que não o admirasse como profissional, e daria para contar nos
dedos os que não têm ao menos uma história divertida com ou sobre ele dentro de
uma redação ou fora dela. Em todos os jornais por onde andou – Última
Hora, Correio da Manhã, Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo, além do Estadão –
muito ensinou até a quem acreditava já saber tudo sobre como fechar uma edição,
encontrar o melhor título para uma reportagem, limpar as impurezas de um texto
e cortar uma foto para dar mais realce gráfico à primeira página.
Secretário de redação incomparável, uma de suas mais decantadas proezas – reduzir um artigo de oito laudas de Antonio Houaiss a duas, sem deixar nada de fora – entrou para o folclore do jornalismo, com ajuda suplementar de Paulo Francis, que adorava relembrá-la, até porque achava Houaiss verborrágico e rebuscado além da conta.
O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais
Além
de conspurcar o exercício da Presidência e dar o governo ao Centrão, Bolsonaro
pode ressuscitar a oposição destrutiva, liderada pelo lulopetismo, que floresce
no caos.
Em
abril do ano passado, o presidente Jair Bolsonaro, durante um dos tantos
protestos golpistas que estimulou, esbravejou contra o Congresso: “Nós não
queremos negociar nada. Nós queremos é ação pelo Brasil. O que tinha de velho
ficou para trás, nós temos um novo Brasil pela frente. Acabou a época da
patifaria!”.
Pouco
menos de um ano depois, Bolsonaro partiu para a compra explícita de apoio de
parlamentares e partidos fisiológicos. Isso nem velha política é, pois no
passado, mesmo que a negociação de votos fosse a norma, ainda havia
eventualmente algum acordo em torno de projetos em comum. Hoje não mais: o que
há é a entrega do governo para a deglutição do Centrão, que se banqueteará de
cargos, verbas e poder. Poucas situações representam a época da patifaria como
essa.
Repórteres
do Estado tiveram acesso a uma planilha de negociação do governo com
deputados para angariar apoio à eleição, para as presidências da Câmara e do
Senado, dos candidatos apadrinhados pelo presidente Bolsonaro. A reportagem
mostra que aquela planilha representa a distribuição de cerca de R$ 3 bilhões
para 250 deputados e 35 senadores usarem em obras em seus redutos eleitorais.
Mas
esse é seguramente apenas um fragmento da história. Outras fontes garantem que
o total de recursos liberados é de cerca de R$ 16,5 bilhões. O presidente da
Câmara, Rodrigo Maia, falou em R$ 20 bilhões. Em qualquer dessas contas, o
valor destinado aos parlamentares supera, em vários casos, o limite a que cada
um deles tem direito a destinar em emendas ao Orçamento.
A reportagem mostra que o gabinete do ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, tornou-se o quartel-general das candidaturas apoiadas por Bolsonaro. Segundo parlamentares ouvidos pelo Estado, o candidato governista à presidência da Câmara, deputado Arthur Lira (Progressistas-AL), orienta os deputados a ir ao gabinete do ministro Ramos e acompanha todas as etapas do processo, negociando conforme seus interesses e envolvendo seus apadrinhados, que já estão em vários postos importantes do Ministério de Desenvolvimento Regional, pasta de onde sai o dinheiro.
“Aspectos do Novo Radicalismo de Direita”
“Quem não quer falar do capitalismo, deveria calar-se sobre o fascismo.” A frase de Max Horkheimer (1895-1973), do tempo da Segundo Guerra, ainda ressoa nesta análise “adorniana” de um novo radicalismo de direita na Alemanha dos anos 1960. Como isso se explica no seio de uma democracia? Theodor W. Adorno (1903-1969) insiste: tal fenômeno é menos um sinal de loucura ou tolice e mais um sintoma de uma transformação social objetiva em curso. Em 1967 o filósofo dizia: “Os pressupostos dos movimentos fascistas, apesar de seu colapso, ainda perduram socialmente, mesmo se não perduram de forma imediatamente política”. Estava ali o alerta: mesmo com o fim do regime nazista, o que o provocara ainda estava presente.
Poesia – Joaquim Cardozo - Chuva de caju
Como te chamas, pequena chuva inconstante e breve?
Como te chamas, dize, chuva simples e leve?
Teresa? Maria?
Entra, invade a casa, molha o chão,
Molha a mesa e os livros.
Sei de onde vens, sei por onde andaste.
Vens dos subúrbios distantes, dos sítios aromáticos
Onde as mangueiras florescem, onde há cajus e mangabas,
Onde os coqueiros se aprumam nos baldes dos viveiros
e em noites de lua cheia passam rondando os maruins:
Lama viva, espírito do ar noturno do mangue.
Invade a casa, molha o chão,
Muito me agrada a tua companhia,
Porque eu te quero muito bem, doce chuva,
Quer te chames Teresa ou Maria.