- Journal of Democracy em Português
Neste texto argumentamos que no Brasil de hoje convivem, em cada cidadão, em maior ou menor proporção, um individualismo cívico e um personalismo transgressor. O primeiro deseja viver numa sociedade onde as instituições públicas e os cidadãos se orientam pelo rigoroso comprimento da lei e respeito aos princípios do universalismo e mérito. O segundo, vê no Estado um ente estranho e não confiável, o qual deve ser temido ou do qual devemos tirar vantagem, se possível, contornando ou descumprindo suas leis.
É frequente, tanto na bibliografia de ciências sociais como, mais ainda, no debate político, uma visão polarizada entre a sociedade e o Estado, em que, dependendo da orientação ideológica, a primeira é fonte de virtudes e o segundo, de vícios (ou vice-versa). A cultura permeia o conjunto da vida social e suas instituições e, se bem devemos distinguir a sociabilidade cotidiana do sistema político e dos organismos do Estado, eles estão entrelaçados.
Avançar rumo a uma cultura nacional moderna e democrática implica na transformação tanto da sociedade como do Estado, no sentido de que indivíduos, instituições públicas e o sistema político se orientem por valores cívicos. Na realidade, trata-se de subsistemas interligados, e os projetos de mudança que objetivam o aprofundamento da democracia no país devem incluir ambos, a sociedade e o Estado, sem desconhecer que, embora interligados, cada um possui uma certa autonomia, e cabe a cada subsistema agir no sentido de fortalecer a cultura cívica.
Dada a variedade de interpretações sobre o papel da cultura no desenvolvimento brasileiro e as críticas feitas em relação à sua relevância analítica, incluímos um breve anexo onde esclarecemos o uso que fazemos do conceito.
O atual desafio brasileiro
O Brasil vive um momento de transição cultural. Os valores democráticos penetraram na sociedade, aumentando as expectativas de acesso universal a bens sociais de qualidade e de consumo individual e de um Estado a serviço do bem público e não de interesses individuais ou de grupos. Por outro lado, continuam amplamente disseminadas práticas clientelísticas, prevaricação, corrupção, desvio de funções e uso de contatos pessoais para evadir a lei.
Estaríamos assim frente ao velho dilema do Brasil “atrasado” frente a um Brasil “moderno”? Acredito que não. O “atraso” e a “modernidade” de hoje não são os mesmos que os de meio ou um século atrás. A sociedade brasileira mudou profundamente, ainda que certos padrões de longa duração tenham sido reciclados e continuem presentes, porém dentro de um novo contexto social. No lugar de usar conceitos como “atraso” e “modernidade”, que podem dar lugar a equívocos, é mais adequado falar de duas pulsões, ambas presentes nas intuições, nas relações sociais, e em cada indivíduo. Uma que deseja um Estado e cidadãos que se orientem por valores e normas cívicas universais e outra, particularista, que se orienta na vida pública por afetos e interesses pessoais. Desta forma, podemos superar uma perspectiva simplificada que entende a oposição “atraso/modernidade” como referida a grupos sociais concretos, portadores uns de capital humano (educação), que os fazem modernos, e outros carentes do mesmo, e,
portanto, atrasados.