Com as Olimpíadas, o Rio passou a ter futuro
Meu avô estava velhinho, quando me disse com os olhos úmidos: “É chato morrer, meu neto, porque eu nunca mais vou ver a Avenida Rio Branco!” Foi um pungente sentimento carioca.
Era na Avenida que ele me levava, para tomar frapé de coco na Casa Simpatia.
Para fazer meu filme, recentemente, andei por todos os subúrbios e vi com horror a decadência, não digo dos miseráveis, mas da classe média sem rumo, sem dinheiro, sem desejo. Não quero falar dos ratos políticos que destruíram a cidade nas últimas décadas, não, isso é conhecido em nossa vergonhosa História. Mas sinto que, depois de décadas de críticas contra a óbvia catástrofe urbana, alguma consciência civil já se consolidou. Se houver transparência nas obras de infraestrutura, sem roubos, podemos ter um novo futuro, legado até pelo acaso dos votos de uma comissão dinamarquesa. Agora, nós, cidadãos, temos de vigiar a execução de um sonho, impedindo superfaturamentos, desvios de recursos, para que as Olimpíadas não sejam pretexto para aventureiros.
De qualquer forma, uma morta ressuscitou: a esperança. E, como vão revitalizar o Porto e a Lapa, o humor dos cariocas também pode renascer.
Mas aqui não quero listar saudades. Claro que me lembro do bonde entrando na Galeria Cruzeiro, sob a chuva, no carnaval, claro que me lembro do tempo em que as geladeiras eram brancas, e os telefones eram pretos, como definiu Rubem Braga, mas não me interessa o tempo — apenas o “espaço” do Rio, as coisas que vejo desde criança como carioca do Meyer, da Urca e de Ipanema: cores, cheiros, ventos da terra e do mar, sal e peixes, súbitas luzes, súbitas brumas, súbitas “brahmas”. Assim como Salvador flutua sobre o olho do oceano, o Rio tem um espaço que nos define e desenha.
Sei que corro o risco da subliteratura, mas enfrentá-lo-ei de testa alta.
Vejo a púrpura que colore por instantes a Lagoa antes do crepúsculo, nos dias em que a água é um espelho sem uma onda, sem um peixe saltando, ouço os quartetos de cigarras abrindo o verão, vejo o esquilo atravessando a Estrada das Canoas, a cotia do Campo de Santana farejando perigo, ando sob a chuva quente que faz subir vapor nas calçadas, vejo as flores dos flamboyants caindo como gotas de sangue, vejo uma garça magra e branca como um manequim em desfile caminhando no Jardim de Alá, olho os imensos granitos de 500 milhões de anos atrás de minha casa, onde os dinossauros se aqueciam, contemplo os urubus dormindo na perna do vento do Corcovado e um teco-teco vermelho passando entre eles, anoto as nuvens rosas no Pão de Açúcar em fins de tarde, a cara do imperador assírio na Pedra da Gávea.
Apesar do tráfico e da violência, há nos morros uma sabedoria calma de velhos sambistas, há Zeca Pagodinho e tudo que ele preservou, há os poéticos caixotinhos dos apontadores dos bicheiros, vendendo apostas nas esquinas em calmas conversas com aposentados, há as frutas, os legumes, as gargalhadas dos feirantes nas manhãs, há a malandragem, o tom debochado do carioca sabido, o arrastado sotaque que evoca a desconfiança nos poderes da capital que já fomos, ritmos e gestos nascidos nos balcões de secretarias desde os tempos do Rei, sotaque curvo como a paisagem arredondada, oscilando em negaças e volteios, a fala marcada por sambas, metáforas vivas condensando morte e amor, cachaça, empada, navalha, bilhares e futebol. Entre a fórmica, os sujos grafites e os edifícios boçais, dá para ver ainda pedaços dos anos 50, restos de uma delicadeza perdida, as anedotas que se renovavam a cada semana, com papagaios e portugueses, piadas que morreram e que podem renascer. Há, sim, uma beleza em nossas fragilidades, no “samba, na prontidão e outras bossas que são coisas nossas...”, há a poética dos camelôs, objetinhos insignificantes nos tabuleiros, há também, apesar da decadência, uma satisfação cotidiana nos subúrbios, uma alegria desesperançada, uma aceitação das impossibilidades, diferente dos lamentos utópicos de inocentes do Leblon; há, sim, o jeito de andar das cariocas (olha o jeitinho dela andar), hoje com barrigas de fora e calças apertadas, sim, uma sexualidade forte não de celebridades de plantão, mas das gostosíssimas comerciárias e bancárias ao fim do expediente no Centro, há o prazer de amar a cidade de novo, principalmente depois que o prefeito derrubou o muro da vergonha do Cesar Maia no poético Bar 20, onde o bonde fazia a curva desde o início dos tempos (só falta derrubar a piroca de plástico do Casé), há a tragédia da miséria em toda parte, sim, mas entre os raios da tristeza, há os inúmeros grupos de choro e samba, tocando anônimos nos botequins e sob sovacos de morro, há uma alegria soterrada que pode reflorir daqui para a frente, para além da excessiva euforia das escolas de samba, uma alegria mais discreta e verdadeira, há a alma de Nelson Rodrigues entre botequins e negões, que diria que, depois da vitória em Copenhague, os cariocas são “príncipes e Napoleões tropeçando nos próprios mantos de arminho”, não mais vira-latas; há coisas ínfimas que só o carioca vê, detalhes tão pequenos de nós dois, há um velho Rio cultural, com cinema, teatro, música, que decaiu mas que pode renascer, há uma preguiça sábia, diferente da paranoia paulista, há uma preguiça para além do ócio ou do desemprego, a preguiça das conversas, de um ritmo sem capitalismo, há restos de trilhos de bonde entrevistos nas falhas do asfalto, há a cidade desenhada sobre um corpo de mulher, tudo é redondo, doce, as montanhas da Barra são mulher, as curvas, tudo mulher, há a linha infinita da Restinga de Marambaia à Joatinga, linha frágil que divide o mar ao meio, e finalmente há até a poética da sujeira, da zorra total, do baixo mundo, há a putaria poética em Copacabana entre putas, veados, aloprados, lunfas, potrucas, michês, miquimbas e cafifas, todos num desabrigo corajoso e batalhador.
O carioca vai reviver.