A Comissão da Verdade anunciou ter identificado "várias dezenas" de agentes da repressão, entre militares, policiais e civis. Muitos já foram ouvidos, e todos serão convocados a depor. Segundo a Comissão, em 1964 foram presas cerca de 50 mil pessoas em apenas cinco estados, num esquema que incluía detenções em massa.
Repressão com nome e RG
Comissão da Verdade diz que identificou "várias dúzias" de agentes da ditadura; 15 foram ouvidos
Evandro Éboli
BRASÍLIA - A menos de três meses de completar seu primeiro ano de funcionamento, a Comissão Nacional da Verdade apresentou balanço de seus trabalhos e anunciou ter identificado "várias dúzias" de integrantes da repressão. São militares, policiais e até civis que atuaram durante a ditadura. Segundo a comissão, algumas dessas pessoas já foram ouvidas e outras ainda serão convocadas. Quem se recusar a comparecer poderá ser processado por desobediência.
Até agora, já foram tomados 40 depoimentos pela Comissão da Verdade. Desses, 15 eram de agentes da repressão. A comissão não detalhou a atuação desses agentes durante a ditadura.
O balanço dos trabalhos ocorreu durante um encontro com representantes de comitês da verdade, memória e justiça dos estados.
- Já identificamos várias dúzias, não foram duas ou três, de membros da repressão. Com nome, RG e endereço - disse Guaracy Mingardi, que assessora o grupo coordenado pelo advogado José Paulo Cavalcante, um dos integrantes da comissão.
Pelo entendimento do Supremo Tribunal Federal, agentes que torturaram durante a ditadura não podem mais ser alvo de processo, porque foram beneficiados pela Lei da Anistia.
O novo coordenador da Comissão da Verdade, Paulo Sérgio Pinheiro, confirmou que o grupo já recorreu ao expediente de convocar depoentes, mas não revelou nomes.
- Já fizemos várias convocações, mas não fazemos alarde. Não dá para sair por aí dizendo vamos ouvir fulano, beltrano ou sicrano. Até porque esse pessoal (militares) já vivia naquela época em rede e continua vivendo assim, como se vê por aí - disse Pinheiro, numa referência aos sites de militares daquele período, criticando ações da Comissão da Verdade.
Coordenadora do grupo "Golpe Civil Militar de 1964", na comissão, Rosa Maria Cardoso da Cunha, ex-advogada da presidente Dilma Rousseff durante os anos de chumbo, afirmou que os primeiros levantamentos sugerem que cerca de 50 mil pessoas foram presas em 1964, no Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, São Paulo e Pernambuco.
Rosa contou que a comissão investiga o uso de manobras de detenção em massa naquele período, como padrão de repressão, em operações chamadas pente-fino e arrastão. São prisões que se deram com bloqueio de ruas, buscas de casa em casa e checagem individual. Era necessário localizar pessoas em listas previamente preparadas.
- O uso dessa violência permitiu ao regime militar construir o estatuto de um Estado sem limite repressivos. Com três consequências: inoculou a tortura como forma de interrogatório nos quartéis militares, a partir de 1964; fez da tortura força motriz da repressão praticada pelo Estado brasileiro até pelo menos 1976; possibilitou ao Estado executar atos considerados inéditos em nossa história política: a materialização de atos de tortura, assassinato, desaparecimento e sequestro - disse Rosa.
Segundo levantamento preliminar feito por ela, entre 1964 e 1967, foram registrados pelo menos 27 mortes e 403 casos de tortura no país.
Presente à reunião, Gilney Viana, ex-preso político e atual coordenador do projeto Memória e Verdade da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, foi preso em 1964 e lembra que as prisões naquele ano se davam de forma indiscriminada. Ela atuava no movimento estudantil, em Belo Horizonte (MG).
- Para justificar o golpe, os militares saíam prendendo todo mundo. A cadeia era um cadeião. Prendiam cem, duzentas pessoas numa leva só - lembrou Gilney, que ficou quinze dias preso em Belo Horizonte. Depois, passou dez anos preso no Rio.
Rosa Cardoso afirmou ainda que os opositores do regime militar também eram presos em navios e estádios de futebol. Nos navios "Raul Soares" e "Almirante Alexandrino", cerca de 600 pessoas foram mantidas presas. Em sua maioria, sargentos e lideranças sindicais. Rose citou o estádio Caio Martins, em Niterói, como um dos centros de detenção da ditadura.
"promiscuidade entre estado e fazendeiros"
A psicanalista e escritora Maria Rita Kehl, que cuida das violações no campo e dos direitos indígenas durante a ditadura, disse que a aproximação dos militares com os grandes proprietários de terra era intensa.
- O que havia era uma promiscuidade entre o Estado e os grandes fazendeiros. A violação de direitos humanos dos trabalhadores ocorria até mesmo por simples questões trabalhistas, imagina quanto o assunto era luta pela terra - afirmou Maria Rita. - Com a vitória do Estado militar na Guerrilha do Araguaia, a terra era distribuída de forma aleatória a amigos do Curió (Sebastião Curió, militar que atuou contra guerrilheiros). É o que buscamos comprovar - disse.
Ex-ministro da Justiça de Fernando Henrique Cardoso, José Carlos Dias é o responsável pelo grupo que trata da violações de direitos humanos. Dias alertou que aqueles que forem convocados e descumprirem a ordem, podem ser criminalizados:
- Vamos convocar. Quem não aceitar, vai responder por crime de desobediência. É uma escolha.
José Paulo Cavalcante minimizou a necessidade de convocar pessoas e citou a idade avançada dos que atuaram naquele período:
- Não será fácil. Muitas dessas pessoas tinham 50 anos naquela época. Agora, quem está vivo, está com 100 anos. Temos que falar com os mais jovens daquele período. E vamos convidar. Não será uma caça às bruxas.
Incômodo com exposição desnecessária
Paulo Sérgio Pinheiro demonstrou-se incomodado com uma exposição desnecessária da Comissão da Verdade e afirmou que não está em busca de notoriedade.
- É fundamental mantermos uma postura de sobriedade e de estrita cautela com o que dizemos e divulgamos, até por respeito às vítimas e investigações em curso. Não dá para sermos aquele que abre a porta da geladeira, vê luz e começa a dar entrevista - disse o coordenador da Comissão da Verdade.
- Muitas vezes, o açodamento em divulgar um documento, um depoimento, uma suspeita põe por terra o trabalho cuidadoso de investigação, de coleta de indícios e identificação dos depoentes. Nunca esqueçamos que, afinal, seremos julgados não apenas por mobilização imediatista das atenções muitas vezes efêmeras no presente, mas pelo relatório final. É isso que interessa. É isso que conta.
O grupo tratou também dos militares perseguidos pela ditadura e citou que centenas de praças, opositores do regime, foram alvos dos oficiais. O entendimento da comissão é que a história deles não ganhou visibilidade. Apenas alguns deles, como Carlos Lamarca, ficaram conhecidos.
Fonte: O Globo