quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Opinião do dia – Fernando Henrique Cardoso*

Do mesmo modo que no caso de Celso, os escritos de Florestan vieram para ficar. Tanto os sobre A Organização Social dos Tupinambá e A Função Social Da Guerra Na Sociedade Tupinambá, como os estudos sobre os negros no Brasil e sobre o caráter pouco democrático da nossa forma de viver e, sobretudo, de mandar. É de intelectuais dessa têmpera que o Brasil precisa. Que pesquisem e saibam antever o que pode acontecer. Sem medos nem arrogâncias. Com sabedoria.”

 *Sociólogo, foi presidente da República, “Dois centenários”, - O Estado de S.Paulo / O Globo, 2/8/2020

Merval Pereira - Não é para amadores

- O Globo 

 A eleição presidencial de 2022 pode ser a mais interessante dos últimos tempos, pelo menos em termos de sociologia política. Poderão se enfrentar nas urnas o ex-juiz Sérgio Moro, que condenou Lula, o ex-presidente, que teria conseguido deixar de ser “ficha-suja”, e o presidente Bolsonaro, adversário circunstancial de Moro e inimigo figadal de Lula. 

 Está nas mãos do Supremo Tribunal Federal o destino do quebra-cabeças político-eleitoral que definirá a corrida presidencial de 2022, que já está em curso. A situação é mais do que retórica, é real, a começar pela possibilidade, cada vez mais concreta, de o ex-juiz Sérgio Moro ser considerado imparcial nos julgamentos em que o ex-presidente Lula foi condenado. 

Os ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski se pronunciaram em votos pela parcialidade de Moro, e derrotaram o relator da Lava-Jato, Edson Fachin, em julgamento da Segunda Turma na terça-feira. Embora o que estivesse em julgamento não fosse a parcialidade de Moro em si, mas o pedido da defesa de que a delação premiada do ex-ministro Antonio Palocci não pudesse ser usada em ações contra Lula, por ter sido incluída nos autos fora do prazo previsto legalmente, os ministros Gilmar Mendes e Lewandowski pronunciaram-se no mesmo sentido. 

Moro divulgou o depoimento de Palocci dias antes do primeiro turno da eleição presidencial de 2018 com o fim de prejudicar Lula, favorecendo assim Bolsonaro, de quem viria a ser ministro da Justiça. Caso seja considerado suspeito pela Segunda Turma, o processo do triplex do Guarujá, o único em que Moro foi responsável por condenar o petista, será anulado, o que provavelmente levará à anulação de outros dois processos, o do sitio de Atibaia, em que Lula foi condenado pela Juíza Gabriel Hardt, e o do Instituto Lula, que está em andamento com o Juiz Luiz Antonio Bonat. 

Se, ao contrário, apenas o processo do triplex for anulado, Lula continuará ficha-suja, pois foi condenado também em segunda instância pelo caso do sítio de Atibaia. Teoricamente o julgamento da suspeição de Moro está empatado, pois os ministros Carmem Lucia e Edson Fachin já votaram a favor dele, e entre os que faltam votar, apenas do ministro Celso de Mello não se tem uma ideia clara de como votará, embora existam informações de que ele teria ficado indignado com as revelações do site Intercept Brasil sobre o que muitos consideraram promiscuidade entre o juiz Moro e os procuradores da Lava-Jato. 

Como o ministro Gilmar Mendes, que pediu vistas antes de votar, tem se declarado favorável a que o tema volte a julgamento em reunião presencial, há o risco de que o ministro Celso de Mello não possa votar, pois se aposenta em novembro e o Supremo estará em reuniões virtuais até janeiro do ano que vem. 

 Nesse caso, o novo ministro, apontado pelo presidente Bolsonaro, ocuparia o lugar do decano na Segunda Turma, aumentando a chance de Moro ser considerado parcial. Só que nem tanto, pois será preciso medir a repercussão que um voto decisivo para tornar Lula novamente elegível terá nos apoiadores de Bolsonaro. Ou se Lula voltar ao páreo interessa ao próprio presidente. 

 Há uma outra possibilidade nesse xadrez. Como já aconteceu em outras ocasiões, o presidente do Supremo, que a esta altura será o ministro Luis Fux, poderá permitir que outro ministro vá para a Segunda Turma, assumindo o lugar de Celso de Mello. O ministro Fachin, por exemplo, pediu para ir para a Segunda Turma no lugar de Teori Zavascki, que era o relator da Lava-Jato. 

 Nessas situações, o ministro mais antigo, no caso Marco Aurelio Mello, tem a prioridade para escolher. Na substituição de Teori Zavascki, Marco Aurélio não quis mudar de turma, e Fachin tornou-se relator da Lava-Jato através de sorteio eletrônico. Desta vez, se for o caso, veremos como agirá. 

 Como o Brasil não é para amadores, como advertia Tom Jobim, há uma outra possibilidade. O ex-juiz Sérgio Moro pode ser considerado inelegível, se a idéia de criar uma quarentena para membros do Judiciário vingar, e prevalecer a interpretação de que normas eleitorais podem retroagir, tornando-se uma espécie de “ficha-suja”, e Lula ser reabilitado pela Segunda Turma do Supremo.

Maria Cristina Fernandes - As pedaladas do bolsonarismo

- Valor Econômico 

 Gambiarras que todos fingem não ver escondem bomba fiscal 

 “ Governo prevê aumento de gasto e alarma o mercado”. A manchete do Valor no dia 1º de setembro de 2015 marcou a escalada de indicadores que, dali a seis meses, ajudaria a precipitar o fim do governo Dilma Rousseff. Na véspera, o governo havia enviado a proposta orçamentária para o ano seguinte com a previsão de 0,5% de déficit, o primeiro do século, levando o dólar à máxima em 12 anos e o risco país, ao maior patamar naquela década. 

 Foram os ecos daquele tempo que se ouviram na terça-feira quando um dos juízes da trapalhada fiscal petista, o ministro do Tribunal de Contas da União, Bruno Dantas, foi o convidado de um encontro virtual fechado da XP: “Pedalada fiscal foi a alcunha que se criou para a contabilidade criativa do PT. Ainda estamos por nomear a criatividade a ser usada por este governo para não romper o teto de gastos”. Aos presentes, o ministro causou a impressão de que o TCU não vai alisar com a pedaladas bolsonaristas. 

Com a proximidade da data limite para o envio da peça orçamentária (31 de agosto), os sinais de desconforto no mercado com as perspectivas fiscais do país começaram a aparecer. Ainda contribuíram para isso as notícias de que o governo poderia mandar ao Congresso um pedido de renovação do decreto de calamidade pública. Foi esta a pré-condição para o Orçamento de guerra no início da pandemia. 

 No encontro com a XP, Dantas desenhou. O Orçamento, disse, tinha três grandes travas, que, rompidas, configuram crime de responsabilidade: a Lei de Responsabilidade Fiscal, a regra de ouro (proibição de fazer dívida para pagar despesa correntes) e o teto de gastos. Com a aprovação de regras orçamentárias excepcionais para a pandemia apenas se exige o cumprimento do último, mas já há sinais de que nem mesmo este requisito esteja sendo observado. 

No voto sobre o relatório de acompanhamento dos gastos do governo com a covid-19 apresentado por Dantas na tarde de ontem, fica claro que o governo acelera nas curvas da gestão fiscal deste governo. A estratégia passa por guardar para os anos seguintes, na forma de restos a pagar, os créditos extraordinários liberados para a pandemia ou mesmo as dotações orçamentárias originalmente previstas para este ano. 

Um vídeo de Tarcísio Freitas que circula nas redes sociais dá uma ideia do tamanho da penúria que se tenta cobrir. Nele, o ministro da Infraestrutura, em reunião com a bancada federal do Maranhão, diz que o Dnit, órgão responsável pela construção e manutenção de estradas, terá o menor orçamento da história em 2021. 

A penúria é a semente da gambiarra. Pra conseguir receber recursos do Tesouro, todos os ministros querem tirar seus projetos do teto de gastos ou fazer remanejamentos indevidos, como quis Paulo Guedes ao tentar arrancar dinheiro do Bolsa Família para a Secretaria de Comunicação da Presidência.

Depois que o ministro da Defesa excluiu a empresa de projetos navais da Marinha, a Emgepron, do teto, para fazer sua capitalização, o movimento fura-teto contagiou o governo. Espraiou-se do Ministério do Desenvolvimento Regional, que quer tirar o Minha Casa Minha Vida da limitação constitucional, à pasta de Tarcísio Freitas que, aliada aos generais palacianos, também engrossa o movimento com as obras do Pró-Brasil. 

Tudo isso para evitar colocar, no Orçamento de 2021, um rombo que provoque, no mercado, a impressão de que já se viu este filme antes. Um gestor graúdo explica que o mercado já aceitou que 2020 esteja “perdido”. A previsão do governo era de um déficit de 1,6% para este ano. A pandemia elevou a previsão para 11,6%. Alimentava-se, porém, a expectativa de jogo zerado para 2021, com uma pitada de me- engana-que-eu gosto. Todas essas manobras mostram que não falta vontade do governo de satisfazer essas expectativas. O problema é que não são críveis. 

A ausência de prazos conclusivos para uma vacina e as notícias de que a calamidade pública será ampliada azedaram a quarentena dos investidores. Apegaram-se à Bolsa acima de 100 mil pontos para manter um injustificado otimismo. 

Paulo Guedes poderia ter evitado a corrosão de sua confiança se não tivesse ido com tanta sede ao pote. Quando havia dois ministérios, o da Fazenda e o do Planejamento, cabia ao primeiro resistir aos acessos de criatividade do segundo e ao presidente da República, arbitrar a disputa. Com a fusão no superministério da Economia, Guedes levou para seu colo todas as contradições. 

Na gerência dessas pressões fez ouvido de mercador a advertências como a do Ministério Público de Contas de que um plano bienal teria possibilitado um enfrentamento da crise mais planejado e pactuado com a federação. Na terça-feira, Dantas reforçou aos investidores da XP que, sem válvulas de escape, o Estado será incapaz de conter a devastação social e econômica da pandemia e de frustrar a expectativa dos agentes econômicos. No voto de ontem, reforçou que isso não pode se dar às custas da transparência. 

Ao final da palestra, alguns investidores saíram com a impressão de que vai ser preciso colocar uma claraboia acima do teto de gastos, bem como aceitar que a coabitação de Paulo Guedes com o projeto de reeleição do presidente da República talvez esteja com seus dias contados. Observador desse embate, uma liderança da oposição em ascensão o resumiu: “Se eles conseguirem perenizar o auxílio emergencial sem aumentar imposto, a gente nem precisa voltar ao poder. Vamos todos aderir ao bolsonarismo.” 

De tanto receberem líderes partidários para falar exatamente o que suas endinheiradas audiências querem ouvir, investidores passaram a acreditar que o Congresso pode evitar um cenário fiscal degringolado. Como ninguém saiba o que vai acontecer na eleição para as mesas da Câmara e do Senado em fevereiro de 2021, a previsão é, no mínimo, otimista. 

Vai na linha do que a economista-chefe de um grande banco chegou a dizer, recentemente: “O Centrão mudou”. Pode ser leniência, auto-engano ou nenhuma das duas. Com todos de braços-cruzados ante as pedaladas do bolsonarismo que potencializam uma bomba fiscal não-reconhecida, a se juntar ao rol de motivos para um impeachment que não sai da gaveta, talvez ela tenha razão.

Ricardo Noblat - Sem pé nem cabeça o que disse Flávio Bolsonaro ao defender-se

- Blog do Noblat | Veja 

 Tal pai, tal filho 

Se o presidente Jair Bolsonaro, como demonstrado tantas vezes, é capaz de atravessar a rua só para pisar numa casca de banana, seu filho Flávio, o Zero UM, também é. E foi o que fez ao dizer tudo o que disse em entrevista ao jornal O Globo, a primeira que concedeu fora de sua zona habitual de conforto. 

Até então, ele só se dispunha a falar sobre a parceria com o ex-PM Fabrício Queiroz com veículos amigos de sua família, de preferência canais bolsonaristas no Youtuber, e redes de televisão que não lhe criassem problemas. E ainda assim a jornalistas confiáveis. Resultado: pisou na casca de banana e escorregou feio. 

Admitiu que Queiroz pagava suas contas pessoais com dinheiro vivo. Mas não dinheiro extorquido de servidores do seu gabinete à época de deputado estadual no Rio. Dinheiro limpo dele, Flávio. Ocorre que o Ministério Público tem provas de que o atual senador poucas vezes meteu a mão no bolso para pagar suas dívidas. 

Entre 2013 e 2018, Queiroz, então chefe do gabinete de Flávio, pagou pouco mais de 286 mil reais de contas pessoais de Flávio e da sua mulher, entre elas, parcelas do plano de saúde dos dois e mensalidades escolares dos filhos. E sempre em dinheiro vivo, sabe-se lá por que, se pagamento eletrônico é mais seguro. 

Nos 15 meses anteriores a um pagamento de quase 7 mil reais, outra vez em dinheiro vivo, o casal não fez nenhum saque nas suas contas. Uma parcela de 16,5 mil da compra de um imóvel pelo casal foi paga pelo PM Diego Sodré, amigo e correligionário político de Flávio. E o que ele disse a respeito disso? Simples. 

Um dia, Flávio e Sodré estavam num churrasco. Então Flávio lembrou que justamente naquele dia vencia mais uma parcela do pagamento do imóvel. Teria de abandonar o churrasco porque não tinha no celular o aplicativo que lhe permitiria pagar. Sodré pagou. E, depois, foi reembolsado por Flávio – em dinheiro vivo. Quer mais ou basta?

Bernardo Mello Franco - Histórias da carochinha

- O Globo 

 A entrevista de Flávio Bolsonaro ao GLOBO encheria um almanaque de histórias da carochinha. O senador nem se esforçou para tentar explicar o inexplicável. Deu versões que fariam corar o ex-deputado Paulo Maluf, aquele que jurava não ter dinheiro no exterior. 

O Ministério Público descobriu que o sargento Diego Ambrósio pagou um boleto de R$ 16,5 mil em nome da mulher do primeiro-filho. Por que um PM ajudaria o parlamentar a quitar seu imóvel? Resposta do Zero Um: os dois se encontraram num churrasco, a prestação “estava para vencer” e ele não queria deixar a carne no prato. Sensibilizado, o policial teria se oferecido para abater a dívida. Amigo é para essas coisas. 

Os repórteres Paulo Cappelli e Thiago Prado quiseram saber por que o faz-tudo Fabrício Queiroz pagava o plano de saúde e a escola das filhas de Flávio. Mais uma vez, a explicação foi singela. “Eu pego dinheiro meu, dou para ele, ele vai ao banco e paga para mim”, disse Flávio. Tudo normal, salvo a anormalidade de Queiroz ter recebido repasses de ao menos 13 assessores do chefe. 

O senador também não se preocupou em justificar o fato de o ex-PM ter sido preso na chácara do seu advogado. Ele jurou que não conhecia o esconderijo e reconheceu que “isso não podia ter acontecido”. No entanto, alegou que não houve “crime nenhum”. Nas palavras do primeiro-filho, a operação para ocultar Queiroz “foi um erro”, mas não teve “nada de errado”. Ah, bom! 

O Zero Um ainda abusou da boa-fé dos leitores ao falar da sua fantástica loja de chocolates. Como explicar o volume de pagamentos em espécie que chamou a atenção dos investigadores? “Se a pessoa chega com dinheiro para comprar, eu não vou aceitar?”, desconversou o dublê de senador e comerciante. Pequenas empresas, grandes negócios. 

Em outras passagens da entrevista, Flávio escancarou o divórcio da família com a Lava-Jato e defendeu o casamento com o centrão, que seu pai já definiu como “o que há de pior” na política. Ele também elogiou a proposta da nova CPMF. Neste ponto, é possível que tenha sido sincero. O imposto não vai incomodar quem paga as despesas em dinheiro vivo.

Carlos Alberto Sardenberg - Coisa de louco

- O Globo 

 Como votar um começo de reforma tributária, como a unificação do PIS/Cofins, se não se sabe qual a sequência? 

 O ministro Paulo Guedes diz que o sistema tributário brasileiro é um manicômio. Tem razão. Mas o modo como o governo dele está encaminhando a reforma também é coisa de louco. 

Começa que diz ter uma proposta de reforma, mas não a apresenta. Em vez disso, joga umas ideias, umas mudanças aos pedaços que criam dois problemas para os deputados e senadores. Primeiro, como votar um começo de reforma, como a unificação do PIS/Cofins, se não se sabe a sequência? E segundo, como acreditar que não haverá aumento de carga tributária se não se sabe a sequência e se há aumento logo na primeira proposta? 

Já o público é tratado como bobo. Diz o ministro que a ideia geral é taxar mais os ricos e menos os pobres. E no meio disso vem uma garfada no FGTS  — a redução de 8% para 6% do salário no depósito mensal. Não parece que os mais ricos estejam especialmente preocupados com suas contas no FGTS. 

A esse argumento, o ministro talvez respondesse que a gente está sendo ignorante ou tem má-fé. Isso porque, diria, com o custo menor da folha de salário, seriam gerados mais postos de trabalho. 

Seriam mesmo? Numa economia andando devagar, quase parando, com a demanda fraca, o mais provável é que as empresas embolsassem a economia, como já aconteceu recentemente. 

É verdade que a cunha fiscal sobre salários é pesada. Vai uma grande diferença entre o que a empresa paga e o que o trabalhador leva para casa. Logo, é preciso reduzir o custo para a empresa, mas à custa do trabalhador? 

O mais importante nesse capítulo, como diz há décadas o professor José Pastore, é simplificar a legislação trabalhista, deixar que empregados e empresas se entendam. Ou, o combinado vale mais que o legislado. 

Parte da reforma foi feita. Mas apenas parte. 

No outro capítulo — a necessária desoneração da folha salarial — o ministro precisa encontrar outras fontes de repor a perda de receita do INSS. 

Nem é bom dizer isso, que ele já vai sacar o tal “imposto digital”. Jura que não é uma nova CPMF, mas um imposto moderno já discutido e cobrado em países desenvolvidos. 

Manicômio de novo. No mundo desenvolvido, os governos estão tentando encontrar um jeito de cobrar imposto sobre receitas e lucros dos gigantes digitais. 

Como operam no mundo todo, essas companhias fazem circular suas receitas para pagar imposto onde é menor ou nada. Operam em países onde nem têm domicílio. Como cobrar? É diferente de imposto sobre transações digitais, que é o jeitão da coisa pensada por aqui, e que parece, sim, um tipo de CPMF. 

Nessa confusão, o país passa ao largo de uma discussão que se trava no mundo todo. Houve ou não uma mudança na, digamos, nova ortodoxia econômica? Da responsabilidade fiscal (corte de gastos, redução de dívidas) para o “taxar e gastar”? 

Todos os governos aumentaram seus gastos e suas dívidas, de maneira pesada, por duas vezes nos últimos dez anos. Primeiro, para resolver a crise financeira de 2008/09. E agora, para conter os danos da pandemia. 

Déficits e dívidas públicas são tão elevados que um ajuste efetivo depende de uma combinação de aumento de impostos e corte de gastos. Ora, como fazer isso em economias deprimidas? 

Por outro lado, como um país pode crescer de maneira sustentável e sem inflação com uma combinação de elevada carga tributária, drenando recursos de pessoas e empresas, mais endividamento público crescente? 

Eis o dilema mundial. Para o Brasil, é ainda mais difícil. Primeiro, porque entramos nas duas crises com as contas públicas desajustadas. Se tivéssemos cumprido a responsabilidade fiscal que estava na lei, teríamos entrado nas crises com dinheiro em caixa ou com dívidas menores e mais sustentáveis. Foi o contrário. 

E, segundo, se tivéssemos feito a reforma/simplificação tributária em algum momento desses 30 anos em que se debate o tema, também haveria condições mais confortáveis para propor, talvez, um aumento provisório de carga. 

Armínio Fraga tem proposto uma saída interessante: uma reforma administrativa, de modo a reduzir gasto com pessoal e aumentar a eficiência do Estado, sem necessidade de cortar gastos importantes. Mas isso é muito complicado, não é mesmo?

Míriam Leitão - Os ricos e os pobres na visão de Guedes

- O Globo 

 O ministro Paulo Guedes vê a ação de ricos se escondendo atrás dos pobres nas críticas a um imposto sobre movimentação financeira. Na ida dele à Comissão Mista do Congresso sobre reforma tributária, o ponto mais tenso foi sempre a CPMF. Não aceitou o nome, mas diante de qualquer referência a ele Guedes ou se defendia ou atacava. Disse que só “maldade ou ignorância” levam as pessoas a comparar o imposto que ele quer criar com a velha CPMF. Ele falou isso num disparo contra o deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), relator da reforma. A senadora Simone Tebet (MDB-MS) disse que no caso dela era “ignorância” porque ignora qual é a proposta do governo, dado que ela ainda não foi apresentada. 

Somando-se todas as falas, fica claro que, sim, o ministro pensa em tributar as transações financeiras. Mas ele diz que é apenas um imposto sobre as grandes empresas de tecnologia. Paulo Guedes defendeu a tese de que os ricos no Brasil falam em regressividade da CPMF para se esconder atrás dos pobres. 

— Se eu falar que há alinhamento com um imposto de movimentação financeira, Deus me livre. Já caiu o Secretário da Receita, cai todo mundo que fala disso. Parece que é um imposto interditado. Muita gente não quer deixar as digitais em suas transações. Escondido atrás do pobre. Se o pobre que ganha R$ 200 de Bolsa Família, e falar que é um imposto de 0,2%, são R$ 0,40. Qualquer aumento de R$ 10 ou R$ 30 já tirou. Não dá para rico se esconder atrás de pobre. O rico é o que mais faz transações, o que mais consome serviços digitais. E está isento. Esconde atrás do pobre — disse o ministro. 

Tudo é mais complexo. O imposto distorce preços, camufla a carga tributária, é indireto. E quem demitiu o secretário da Receita que falou no assunto foi o presidente Jair Bolsonaro. 

Logo no começo da sessão, o ministro criticou o relator. Disse que Aguinaldo Ribeiro havia cometido um excesso quando disse que o imposto (a CPMF) era medieval: 

— Ele sugeriu que a Google e o Netflix existiam na Idade Média quando falou que o imposto digital é medieval. Os padres, os bispos nas catedrais góticas usavam Netflix, Google, Waze. 

O deputado João Roma (Republicanos-BA) disse que o relator se referia ao “absolutismo” de um governo que impõe um tributo sem explicar qual é. A senadora Simone Tebet propôs que o governo mostrasse todo o seu projeto: 

— Vossa excelência diz que quem está falando de CPMF é por maldade ou ignorância. Eu me incluo entre os ignorantes. Eu quero entender se essa contribuição vai atingir as plataformas ou qualquer um que com um cartão de crédito compre um remédio na esquina. 

O ministro não tirou a dúvida da senadora. E reclamou da imprensa, que o faz, segundo ele, ficar o tempo todo se defendendo. Perguntado pelo senador Reguffe (Podemos-DF) se atualizaria a tabela do Imposto de Renda, ele disse que fez as contas: 

— Custa R$ 22 bilhões elevar a faixa de isenção para R$ 3 mil. É um Fundeb. Se for estendido às demais faixas a conta vai para R$ 36 bi. A classe política tem de decidir isso. O congressista foi eleito para tomar decisão. 

Guedes lembrou que não atualizar a tabela do IR é uma forma oculta de tributar, mas atualizar seria indexar. Em outros países, disse, “todo mundo entende inflação como perda”. Na época da campanha, a promessa era elevar a faixa de isenção para R$ 5 mil. 

O deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ) criticou o aumento do PIS-Cofins (CBS) sobre livros. Guedes de novo falou da divisão entre ricos e pobres: 

— O deputado seguramente não quer ser isentado quando compra um livro, né? Ele tem salário suficientemente alto para comprar e pagar imposto como todo mundo. Ele está preocupado com as classes baixas. Essas, se nós aumentarmos o Bolsa Família, vamos estar atendendo. Agora, acredito que eles estão mais preocupados em sobreviver do que em frequentar as livrarias que nós frequentamos. 

O ministro disse que “quem tem poder em Brasília” consegue pagar menos imposto e por isso “há R$ 300 bilhões de desoneração”. E quem tem dinheiro “não paga imposto e vai pra Justiça” e assim há um contencioso de R$ 3,5 trilhões. 

O que o ministro não explica é por que não cumpriu a promessa de campanha de acabar com os R$ 300 bilhões de renúncias fiscais e por que manteve as isenções da Zona Franca de Manaus, já que me disse que “não deixaria o Brasil todo ferrado” para manter a Zona Franca. Entre os conflitos verbais do ministro e os fatos há uma certa distância.

Bruno Boghossian – O que Flávio Bolsonaro não disse

- Folha de S. Paulo 

Filho do presidente tenta se defender de suspeitas, mas se destaca pelo que não diz 

 Quando o país conheceu os rolos de Fabrício Queiroz, o então senador eleito Flávio Bolsonaro disse que o ex-auxiliar tinha uma “história bastante plausível” para justificar as movimentações suspeitas em suas contas bancárias. Meses depois, ele passou a insistir que não tinha “nada a ver” com a investigação sobre o PM aposentado. Até hoje, o filho do presidente se enrola a cada vez que tenta explicar o caso. 

Flávio deu um presente aos promotores que apuram a existência de um esquema de desvio de salários em seu gabinete na Assembleia do Rio. Em entrevista ao jornal O Globo, o senador confirmou fatos que estão sob investigação, mas se destacou pelo que não conseguiu esclarecer. 

Primeiro, o filho do presidente admitiu: “Pode ser que, porventura, eu tenha mandado o Queiroz pagar uma conta minha”. Flávio falava como se aquele fosse um caso isolado, mas o Ministério Público encontrou 63 boletos quitados em dinheiro, com “origem alheia aos rendimentos lícitos” do senador e de sua mulher. 

Ele ainda tentou dizer que sacava aqueles valores e repassava ao auxiliar para bancar as faturas. Flávio poderia ajudar os promotores a encontrar os registros dessas operações. Em outubro de 2018, Queiroz pagou em espécie as mensalidades escolares das filhas do senador. Nos 15 meses anteriores, não houve nenhuma retirada das contas do casal. 

O filho do presidente repetiu a versão segundo a qual Queiroz apenas recolhia parte dos salários do gabinete para subcontratar militantes. Flávio afirmou que não sabia dessa prática, embora isso queira dizer que o esquema ajudou a comprar apoio político em suas bases eleitorais. 

Também ficou pela metade a explicação sobre o pagamento de uma parcela de um apartamento da família, em 2016, feito por um PM. O senador disse que estava num churrasco e pediu ao policial para quitar o boleto pelo celular porque não queria ir ao banco. Segundo o amigo, Flávio devolveu os R$ 16,5 mil em dinheiro vivo —o que significa que não há registros bancários do reembolso.

Maria Hermínia Tavares* - Um murmúrio, nada mais

- Folha de S. Paulo 

 Ninguém, entre os caciques políticos, verte pela força-tarefa uma furtiva lágrima 

 A Operação Lava Jato agoniza, sufocada pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, sob a aprovação silenciosa do conjunto de partidos e líderes políticos —de A a Z. 

 Na origem, a força-tarefa encarnou a autonomia do sistema de Justiça em relação ao Executivo, sustentada nos poderes ampliados que lhe conferiu a Constituição de 1988. Tornou-se possível com o advento de uma nova geração de promotores e juízes que já não dependiam da patronagem, mas de seus méritos aferidos em concursos públicos, para ingressar na carreira. Faz sentido que se vissem como guardiões da lei maior ameaçada por um sistema político no seu entender irremediavelmente corrupto.

 A Lava Jato trouxe à luz a existência daquilo que, décadas antes, o cientista político americano Gordon Adams tinha chamado triângulos de ferro: arranjos informais e secretos que ligam firmas de prestação de serviços, burocratas de estatais e partidos políticos, em benefício dos envolvidos e em detrimento do interesse coletivo. 

De fato, os cruzados de Curitiba revelaram o poderoso triângulo de ferro incrustado na maior empresa pública nacional, a Petrobras, sólido o suficiente para sobreviver ao vaivém de presidentes e coalizões governantes, encabeçadas primeiro pelo PSDB e depois pelo PT. 

 A Lava Jato não criou a crise política que pulverizou o sistema de partidos e abriu caminho para a ascensão da extrema direita. Mas forneceu o combustível para as campanhas da imprensa e as grandes manifestações de rua, as quais, associadas à crise econômica, à polarização política e ao desmanche da base parlamentar governista, tornaram possível o impeachment de Dilma Rousseff e tudo o que se lhe seguiu. 

 Os métodos reprováveis a que recorreram promotores e o juiz Sergio Moro —especialmente sua inaceitável proximidade durante a montagem dos processos— tampouco contribuíram para o aperfeiçoamento da aplicação da Justiça e a criação de instrumentos legítimos para reduzir a corrupção política. 

No Brasil, o discurso moralista foi componente central de todas as grandes crises políticas sob regime democrático. Apesar do retrospecto, a Lava Jato morre agora não como explosão, mas como murmúrio —e sem ninguém, entre os caciques políticos, a verter por ela uma furtiva lágrima. 

 Mas os triângulos de ferro do professor Adams sobrevivem a ela. Ativados e operantes, existem em empresas públicas e agências reguladoras. Por isso, a retórica anticorrupção continuará sendo um recurso da luta política. Alimentará o populismo de direita enquanto não ocupar também posição de relevo na agenda dos democratas. 

 *Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.

Beatriz Resende* - Idade como desqualificação

- Folha de S. Paulo 

 Afastada da sociabilidade sob nova nomenclatura, toda uma geração é vista como descartável 

 O casarão da Fundação Casa de Rui Barbosa voltou a tremer nesta semana. Flora Sussekind, uma de nossas mais importantes críticas literárias, aposentou-se da instituição onde foi pesquisadora por quase 40 anos. E não saiu calada: "Agora, o que infelizmente se anuncia é não só um amesquinhamento interno, mas da fundação em seu caráter de instituição pública", afirmou. 

 No início deste ano, quando a roteirista de TV Letícia Dornelles foi nomeada pelo governo Bolsonaro para a presidência da casa, intelectuais decisivos do Rio de Janeiro se reuniram em protesto contra o ataque ao importante polo de memória e reflexão do país. 

 Para Flora Sussekind, a decisão de se desligar "foi uma dor" —e ela destaca que Dornelles "obedece a uma política de desmonte da qual é simples executora". Já a presidente, referindo-se à professora que aos 64 anos ainda nem pode entrar na fila onde idosos se organizam diante da detestável plaquinha de um homem curvado sobre sua bengala, disse apenas: "Acho natural um trabalhador de idade avançada se aposentar". 

 Em livro recém-traduzido ("Irmã Outsider"), a ativista de direitos civis Audre Lorde inclui o etarismo entre outros ismos que representam formas de opressão, como o racismo e o machismo, chamando atenção para questão tão contemporânea. 

 Afastada da sociabilidade sob nova nomenclatura, a de grupo de risco, disputando com jovens o último respirador disponível, toda uma geração é vista como descartável. Vozes que impulsionaram mudanças sociais e construíram a redemocratização do país não parecem mais necessárias. Enquanto isso, roemos as unhas aguardando o nome que será nomeado por Bolsonaro quando Celso de Mello, o decano do STF, chegar à aposentadoria compulsória. 

 *Beatriz Resende, ensaísta e professora de literatura na UFRJ.

Vladimir Carvalho* - 1930: a revolução nonagenária

Não foi uma insurreição de velhinhos como pode se supor a partir do título acima, até porque os longevos daquela época não chegavam facilmente aos noventa anos de idade como ocorre em muitos casos hoje, graças aos progressos das ciências. Trata-se mesmo é do grande movimento revolucionário que mudou, de certa forma, a fisionomia política e social do país e que, em outubro próximo, completará nove décadas. Os anos de 1920 já prenunciavam, em muitos setores da comunidade brasileira, uma vontade insopitável de mudanças e foram marcados por uma inquietação e um alarido com o fim de despertar o Brasil, o gigante adormecido pela inépcia e incúria da Primeira República, já precocemente velha. 

 Em cotejo com outros países estávamos estagnados. Não avançáramos no terreno das ciências, a educação era uma quimera e o analfabetismo batia no teto. A economia marcava passo no sobe e desce dos preços do café, nosso principal produto de exportação no mercado internacional, obrigando-nos a constantes queimas de divisas enfraquecendo o tesouro nacional. Nas artes, salvara-se - com ressalvas - o barulho feito pela Semana de Arte Moderna. 

 Seguíamos no ritmo lerdo, marcado desde muito pela oligarquia dos coronéis donos de terra, em prejuízo dos pobres e de uma classe média que, nos grandes centros urbanos, começara, porém, a dar sinais de inquietação. Os primeiros a se rebelarem contra este estado de coisas foram os militares, que vinham em desacordo com o governo de Artur Bernardes. Em julho de 1922, um grupo de tenentes dominou o Forte de Copacabana e depois de desigual, mas renhido combate, foram vencidos no episódio que ficou conhecido como Os Dezoito do Forte. 

 Os “tenentes” se reagrupariam em 1924 em torno de Luiz Carlos Prestes e Miguel Couto com o propósito de levantar o país, pregando a revolução, na tentativa de sublevar as populações marginalizadas pelas oligarquias e contra o governo. Encetaram heroica marcha que só terminaria em 1927, cobrindo 24 mil quilômetros de norte a sul do Brasil, a qual ficou conhecida lendariamente pelo nome de Coluna Prestes, em homenagem ao seu capitão comandante. 

 Seu feito seria enaltecido pelo poeta Pablo Neruda, mas, na prática e em termos revolucionários, não obteve o êxito pretendido, embora tenha permanecido como marcante estímulo político no espírito da classe média urbana. Os militares, leia-se o “tenentismo”, seguiram conspirando juntamente com as lideranças de jovens políticos dos partidos burgueses em ascensão, com forte protagonismo dos gaúchos. 

 No início de 1929, o presidente Washington Luís lançou a candidatura do paulista Júlio Prestes, do PRP, desrespeitando o pacto tradicional da política conhecida popularmente como “café com leite”. Era a vez dos mineiros, que entraram em reboliço. Desse tremendo mal estar resultou a criação da Aliança Liberal e o lançamento de Getúlio Vargas, ex-ministro da Fazenda, para presidente da República, tendo como vice o presidente da Paraíba, João Pessoa. As eleições de 1º de março de 1930 deram a vitória ao candidato oficial, apesar do aparente favoritismo de Vargas. 

 O pleito foi vastamente acusado de fraudulento, com protestos que nada alcançaram de positivo nos tribunais. Instalou-se, então, um período de insatisfação e conspiração entre as jovens lideranças e os tenentistas, que se posicionaram, mais uma vez, a favor de uma revolução. Demorou, mas justo em 26 de julho daquele ano, ocorreu para surpresa de todos o assassinato de João Pessoa perpetrado pelo advogado João Duarte Dantas, desafeto político deste. A polícia deste varejara o escritório de Dantas, confiscando e publicando cartas íntimas por ele escritas à sua noiva, Anayde Beiriz, poeta e feminista. 

O clima virou e forte comoção popular sobreveio reacendendo o estopim da oposição. Juarez Távora, membro proeminente da Coluna Prestes, fechou com os gaúchos de Vargas e junto com José Américo de Almeida – secretário de estado de João Pessoa – foi à garra levantando o Norte e o Nordeste. O féretro do presidente partiu de navio do porto de Cabedelo, fazendo paradas estratégicas, com direito a discursos em várias capitais, até chegar ao Rio de Janeiro, onde multidões o levaram ao sepultamento. O resumo da tragédia virou história com imagens retumbantes dos gaúchos amarrando seus cavalos no obelisco da Cinelândia. Seguiram-se a deposição de Washington Luís e a consequente ascensão de Getúlio à presidência. Este é, em linhas gerais, o “enredo” do meu filme O Homem de Areia, realizado há quarenta atrás. 

 *Vladimir Carvalho, Cineasta, escritor e Professor emérito da Universidade de Brasília

William Waack - O vírus e a loucura

- O Estado de S.Paulo 

 Filósofos andam céticos quanto ao mundo político pós-pandemia 

 O mundo pós-pandemia não vai ser muito diferente do que era até o começo deste ano, talvez só um pouco pior. Do ponto de vista da ordem internacional, a China vai registrando importante vitória tecnológica e política. Ajudada pelos Estados Unidos, que se isolam cada vez mais e despertam no resto do mundo, pela primeira vez, um sentimento de pena em relação aos americanos, no lugar de admiração, respeito ou raiva – como costumava acontecer antes do vírus. 

Do ponto de vista das sociedades ricas, acentua-se o egoísmo típico trazido pelo crescimento de desigualdades e concentração de renda em escala global. Da perspectiva dos mais pobres, o fim da esperança de que miséria fosse algo a ser liquidado ali na próxima esquina da história. No geral, morre a ideia de que “valores universais” (como direitos humanos, ou sociedades abertas, ou democracia liberal) fossem se impor de maneira mais ou menos “automática” na linha do tempo.

É a hora de os filósofos falarem da pandemia, e as ideias acima são do pensador-celebridade francês Bernard-Henri Lévy. Ele acaba de publicar já em inglês The Virus in The Age of Madness (em tradução livre: O Vírus na Era da Loucura), lançado no circuito internacional da propagação de ideias por meio de debates e conversas com outras celebridades como Fareed Zakaria (GPS), Thomas Friedman (New York Times) e Francis Fukuyama (American Interest). Está no YouTube para quem prefere assistir em vez de ler. 

 É difícil resumir em poucas palavras a sofisticação profissional de um Bernard-Henri (defensor de ideias liberais), mas algumas de suas frases são contundentes: “A epidemia veio da China, a resposta do Partido Comunista chinês foi eficiente e eles estão conseguindo vender para o resto do mundo o seu padrão de comportamento”. O título do livro não é só uma provocação. Um dos mais conhecidos “intelectuais públicos” está mesmo convencido de que vivemos uma “competição de loucuras” como resposta ao vírus. 

Fala da “sombria alegria” com a qual se abraçou o vírus enxergado como não só mais uma pandemia (disso já tratavam os filósofos gregos uns quatro séculos antes de Cristo), mas como uma expressão de “coisa real”, de “história real”, de “tragédia verdadeira”, ao contrário do mundo das notícias, que se parecem nos tempos “pós-históricos” (Levy) em que vivemos como “eventos irreais”, como “eventos fake”. “Um vento de loucura está varrendo o mundo”, afirma. 

O vírus não introduziu nada excepcionalmente novo, apenas acentuou ou escancarou tendências, problemas e dilemas já existentes, tanto na política quanto na economia. E tem até um lado que se diria vantajoso, segundo o filósofo: “Tornou evidentes a duplicidade e a inadequação”, além do oportunismo, de alguns dos personagens políticos citados por ele (nesta categoria negativa são Trump, Putin, Maduro e Bolsonaro). 

 Eles se esmeram na postura da “negação da realidade”, diz Levy, que dedica menções pouco simpáticas também aos que ele chama de “profilatocratas, vegetocratas e ecolocratas” (não só em alemão se inventam palavras no discurso filosófico), além dos defensores de políticas identitárias. Nesse sentido, tomando todos os “ismos” em curso, registra-se uma “competição de loucura” como resposta à pandemia, que nada tem de inédito, o mundo já lidou com isso muitas vezes antes, “e nem é tão ruim quanto parece”. 

Mas não se pense que só o grande circuito intelectual global está dando atenção a filósofos. O recente congresso anual da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), no começo desta semana, trouxe um filósofo para examinar com produtores rurais, economistas e técnicos do setor o que se imagina que venha a ser o mundo pós-pandemia. “Daqui uns três anos ninguém vai se lembrar que teve a pandemia”, vaticinou Luiz Felipe Pondé, o filósofo convidado.

César Mortari Barreira e Marcelo de Azevedo Granato* - Democracia

- O Estado de S.Paulo 

No Brasil o exercício da administração pública por militares de novo dá em fracasso 

Nos últimos meses tem sido intenso o debate sobre a conveniência ou superioridade da democracia sobre outras formas de governo, em particular no caso brasileiro. De pedidos e ameaças de golpe militar a pesquisas de opinião e campanhas jornalísticas, a democracia não sai do noticiário. 

Mas quem é ela, a democracia? Há diversas respostas, decorrentes de distintas matrizes teóricas. Sabemos, no entanto, que a democracia moderna é caracterizada pela ideia de representação. Em regra, elegemos aqueles que tomarão as decisões coletivas em nosso nome. Ou seja, nosso voto normalmente não decide, ele elege quem deverá decidir. 

Essa compreensão vai ao encontro da definição que Norberto Bobbio dá à democracia: “conjunto de regras de procedimento para a formação de decisões coletivas, em que está prevista e facilitada a participação mais ampla possível dos interessados” (O Futuro da Democracia). Trata-se de uma definição que Bobbio mesmo chama de “mínima”, e que também é formal, já que ela não nos diz o que se deve decidir numa democracia, mas quem deve decidir (“participação mais ampla possível dos interessados”) e como se deve decidir (“regras de procedimento para a formação de decisões coletivas”). 

Mas Bobbio não ignora a existência de valores e condições da democracia. Alguns desses valores e condições estão implícitos nas seis regras pelas quais Bobbio especifica sua definição “mínima”. 

A primeira regra dispõe que “todos os cidadãos que tenham alcançado a maioridade etária, sem distinção de raça, religião, condição econômica, sexo, devem gozar de direitos políticos, isto é, cada um deles deve gozar do direito de expressar sua própria opinião ou de escolher quem a expresse por ele”. A segunda regra estabelece que “o voto de todos os cidadãos deve ter igual peso”. 

Nessas duas primeiras regras sobressai o valor da igualdade tanto na inclusão do maior número de pessoas no processo de formação das decisões coletivas quanto na atribuição de igual importância ao voto de cada uma delas. 

Na terceira regra, Bobbio afirma que “todos aqueles que gozam dos direitos políticos devem ser livres para poder votar segundo sua própria opinião, formada, ao máximo possível, livremente, isto é, em livre disputa entre grupos políticos organizados em concorrência entre si”. Conforme a quarta regra, todos “devem ser livres também no sentido de que devem ser colocados em condições de escolher entre diferentes soluções, isto é, entre partidos que tenham programas distintos e alternativos”. 

Nessas duas regras sobressai o valor da liberdade tanto no sentido de que a opinião política de cada um deve poder se formar livremente, sem distorções (daí o necessário pluralismo dos e nos meios de informação), quanto no sentido de que as pessoas devem dispor de alternativas políticas reais, que permitam que elas se identifiquem com alguma orientação política (daí a importância dos diferentes partidos e movimentos políticos). 

Na quinta regra Bobbio afirma que, “seja para as eleições, seja para as decisões coletivas, deve valer a regra da maioria numérica, no sentido de que será considerado eleito o candidato ou será considerada válida a decisão que obtiver o maior número de votos”. Essa regra traz um meio que garante a eficiência do processo de decisão coletiva: a regra da maioria, pela qual vence o candidato ou a decisão que obtiver o maior número de votos. 

Enfim, a sexta regra da democracia dispõe que “nenhuma decisão tomada por maioria deve limitar os direitos da minoria, particularmente o direito de se tornar (...) maioria em igualdade de condições” (Teoria Geral da Política). 

 Esta última regra não se refere, como as outras cinco, ao quem ou ao como do processo de escolha e decisão política. Ela se refere ao quê, ao conteúdo das decisões políticas. E nos permite um comentário final sobre as regras do jogo democrático. 

Ao dizer que “nenhuma decisão tomada por maioria deve limitar os direitos da minoria, particularmente o direito de se tornar (...) maioria”, Bobbio toca num ponto crucial, que é o fato de a democracia ser um regime que permite a alternância pacífica de governos. Nela os conflitos são resolvidos “pela contagem de cabeças”, e não “batendo na cabeça dos que pensam diferente” (Le Basi della Democrazia). 

A não violência, para Bobbio, é um princípio fundamental da democracia e a definição “mínima” ou formal trazida acima é justamente uma técnica de convivência destinada a resolver conflitos sociais sem o recurso à violência. Na democracia a violência dá lugar ao compromisso. 

Assim, na atual discussão sobre democracia ou ditadura, pode-se afirmar que o regime democrático é preferível ao regime militar não só porque, no Brasil, o exercício da administração pública por militares dá novamente em fracasso, mas também porque, na lógica democrática, “o adversário não é mais um inimigo (que deve ser destruído), mas um opositor que amanhã poderá ocupar o nosso lugar” (O Futuro da Democracia). 

 *Respectivamente, doutor em Teoria e Filosofia do Direito pela UERJ, coordenador científico do Instituto Norberto Bobbio; e doutor em Direito pela USP e pela Università degli studi di Torino, integrante do Instituto Norberto Bobbio e professor da Facamp

Everardo Maciel* - Fora de foco

- O Estado de S.Paulo 
 Apesar do chavão da pretensa simplificação, nenhum dos atuais projetos de ‘reforma tributária’ simplifica 

A pandemia de covid-19 vem se revelando mais persistente e insidiosa do que previra a mais pessimista previsão. A rigor, estamos sob o domínio da total incerteza, não só em relação às possibilidades de superação da crise sanitária, mas também no que se refere à natureza e dimensão das repercussões econômicas e sociais. 

A despeito desse quadro de incertezas, a ONU e o FMI projetam para o Brasil, em 2020, aumento de 45% no contingente de pessoas em condições de pobreza ou extrema pobreza, queda de 9% no PIB e dívida pública se aproximando de 100% do PIB. 

Esses alarmantes indicadores são agravados pela severa redução na atividade comercial, iminência de extinção ou redução do auxílio emergencial, problemática liquidação do estoque de tributos cujo vencimento foi postergado e agravamento da crise fiscal, sobretudo nos Estados e municípios, pela combinação de queda na arrecadação com aumento de gastos. 

Tudo isso num contexto de recessão mundial, em que se tornam escassas as perspectivas de auxílio financeiro externo. Ao contrário do que se faz no resto do mundo, seguimos executando uma política sanitária com baixa coordenação, promovendo debates sobre trivialidades e abdicando de construir um planejamento mínimo para enfrentar as consequências da crise. Esse alheamento da realidade e consequente abulia sugerem uma patologia. 

No âmbito tributário, especificamente, é evidente que temos problemas, como, em maior ou menor proporção, todos os países do mundo. Mas, em vez de aprofundarmos o conhecimento desses problemas e identificarmos soluções, preferimos brandir projetos de reforma tributária fundados em surrados chavões, sem a divulgação de qualquer estudo sobre repercussões setoriais e impactos sobre preços e com agendas ocultas que escondem propósitos polêmicos. 

Jared Diamond, pensador contemporâneo, em Reviravolta, ao explicar como indivíduos e nações bem-sucedidos se recuperaram de crises, ensina: “Isolar defeitos, preservar qualidades e superar problemas”. Não é o que temos feito. Entre os chavões preferidos está a pretensão de simplificar. Nenhum projeto, entretanto, simplifica. 

Por exemplo, hoje, a apuração do PIS/Cofins (contribuições com a mesma legislação e pagas com um mesmo documento de arrecadação), para os contribuintes optantes do regime cumulativo, se dá mediante a singela multiplicação de uma alíquota por uma base de cálculo, o que demanda conhecimentos obtidos nas classes iniciais do ensino fundamental. 

Na proposta de criação da Contribuição sobre Bens e Serviços, a apuração do tributo devido por esses contribuintes se daria mediante uma complexa apuração de créditos e débitos, visto que haveria receitas que permitiriam ou não o aproveitamento de créditos. Resolver essa intrincada questão demandaria um sistema de contabilidade de custos, que permita uma apropriação integrada e coordenada com a escrituração. 

Seguramente, faz-se mau uso do vernáculo simplificação. Os problemas do PIS/Cofins (litígios e regimes especiais) são de fácil solução. Litígios se concentram no aproveitamento dos direitos creditórios de insumos no regime não cumulativo, e são praticamente inexistentes no regime cumulativo. Esse litígio decorre de um erro de interpretação produzido por uma instrução normativa. 

Para resolvê-lo, cabe tão somente rever a interpretação, na esteira do que tem sido decidido pelos tribunais superiores. Regimes especiais não surgiram por geração espontânea. Para revogá-los, deve-se recorrer à mesma via legal que os instituiu, respeitados os que foram concedidos por prazo certo e determinadas condições, conforme estabelece o Código Tributário Nacional.

 De resto, o que se constata é o propósito dissimulado de promover uma grande redistribuição de carga tributária. Reduz-se a tributação de alguns produtos industrializados e aumenta-se, em meio à pandemia, a da mensalidade escolar, da consulta médica, do agronegócio, dos produtos da cesta básica, etc. Que intrigante lógica é esta? 

*Consultor tributário, foi secretário da Receita Federal (1995-2002)

Caso em aberto – Editorial | Folha de S. Paulo

Aclarar a relação entre Flávio Bolsonaro e Queiroz é prioridade judicial e política 

 Uma gíria acompanha as citações da família Bolsonaro a Fabrício Queiroz desde que o obscuro caso envolvendo o ex-assessor do clã eclodiu, há dois anos: rolo. 

Queiroz, que por anos foi amigo e faz-tudo do ora presidente, sempre é definido como alguém que vive de rolos —ou transações heterodoxas, em bom português. 

O termo foi recuperado pelo senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), mais recente membro da família a abrigar Queiroz, numa sinecura parlamentar quando era deputado estadual. 

Segundo o senador disse ao jornal O Globo, é possível que Queiroz tenha pago alguma conta pessoal sua. À explicação rala ainda acrescentou, ao comentar os altos volumes em dinheiro vivo movimentados pelo ex-assessor: “Ele é um cara que tinha os rolos dele”. 

A fragilidade de argumentos se repete no relato de que um policial militar havia pago um boleto seu porque estavam em um churrasco, a conta iria vencer e Flávio “não tinha aplicativo no telefone”. É um imperativo judicial e político esclarecer as relações entre o senador, sua família e o cipoal de contatos em torno de Queiroz. 

Primariamente, a suspeita recai no esquema das “rachadinhas”, segundo o qual funcionários do gabinete estadual de Flávio tinham o dinheiro apropriado para lavagem, segundo o Ministério Público. A análise da rede que cerca Queiroz trouxe à tona intersecções entre o gabinete e o mundo das milícias do Rio, seja por transações financeiras ou pelo emprego de parentes de um dos suspeitos de envolvimento no assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL). 

A entrevista também permite perceber a tática atual do clã para lograr seu objetivo estratégico, a manutenção de poder. Nela, seguem ausentes os ataques ao Supremo e ao Congresso que marcaram os meses que antecederam a prisão de Queiroz. Flávio delineia a retórica de justificativa do novo arranjo político buscado por Jair Bolsonaro. 

Ali, o procurador-geral Augusto Aras aparece como um herói legalista, a Lava Jato antes incensada é tisnada por seus membros, o chamado “gabinete do ódio” instalado no Planalto é algo legítimo, a cloroquina é apresentada como tratamento e até a “gripezinha” ganha uma explicação improvável. 

Sublinhando tudo, o apoio agora republicano encontrado em setores do centrão, antes a fonte de todos os males no ideário do presidente e seus seguidores. Como uma versão Barra da Tijuca dos Bourbons, os Bolsonaros não aprenderam nada e não esqueceram nada.

As pressões fiscais sobre a educação – Editorial | O Estado de S. Paulo

Com a pandemia, o impacto fiscal sobre a educação é duplo: o processo de adaptação aumenta os custos e a queda na arrecadação diminui investimentos 

 No cenário de incertezas da pandemia um dos dramas mais angustiantes é o da educação. “Enquanto o mundo enfrenta níveis insustentáveis de desigualdade, nós precisamos da educação – o grande equalizador – mais do que nunca”, disse o secretário-geral da ONU, António Guterres. Mas também é preciso proteger as crianças, os professores e suas famílias, e ninguém encontrou a equação certa para promover o retorno às aulas. 

 O desafio pode deixar legados positivos, como a elaboração de metodologias de ensino remoto e híbrido, novos canais de comunicação entre escola e família ou a promoção da inclusão digital e programas de apoio aos vulneráveis. Mas isso só acontecerá se existirem recursos técnicos e financeiros. A grande dificuldade é que o impacto fiscal sobre a educação é duplo: por um lado, o processo de adaptação aumenta os custos imediatos; por outro, a queda na arrecadação diminui a disponibilidade para investimentos. 

 As estimativas do Todos Pela Educação mostram que o conjunto de tributos destinados apenas às redes municipais, responsáveis pela educação básica, deve ter queda de 10% a 20%, algo entre R$ 15 bilhões e R$ 30 bilhões, ou R$ 670 e R$ 1.339 por estudante. Ao mesmo tempo, os gastos adicionais – com ensino remoto, merenda, comunicação com as famílias, subsídio a pacotes de dados de internet ou materiais sanitários – devem atingir R$ 870 por estudante. 

Ante a perspectiva de colapso financeiro, o Todos Pela Educação sugere ações executivas e legislativas – muitas já em trâmite – para amortizar o choque. 

 Em primeiro lugar, é preciso racionalizar os gastos nas Secretarias da Educação. A implementação da MP 934/20, que aguarda sanção presidencial, pode otimizar as estratégias de colaboração entre as três instâncias da administração pública, por exemplo, na distribuição às famílias dos recursos para aquisição direta de alimentos. Além disso, é preciso monitorar mais atentamente do que nunca se Estados e municípios estão destinando adequadamente os recursos recebidos da União para a educação. 

O acesso à internet é crucial, agora e no futuro. Atualmente, tramitam no Congresso três iniciativas para equacionar o desafio da conectividade: o programa Educação Conectada, com diretrizes para a equidade na implementação; o auxílio-conexão emergencial, para custear planos de acesso à internet durante a pandemia; e um pacote de recursos para prover acesso gratuito a estudantes e professores por meio do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações. 

 Também serão necessários recursos específicos para os gastos adicionais com problemas de adaptação no retorno às aulas presenciais. Isso pode ser feito por meio da suplementação de programas já existentes – como o programa Nacional de Alimentação Escolar e o Programa Dinheiro Direto na Escola –, além da manutenção dos programas de financiamento de transporte e livros didáticos. 

 Para recompor os demais gastos será preciso aprovar o socorro emergencial da União aos Estados e municípios. O PL 3.165/20, apresentado na Câmara dos Deputados em junho, prevê um montante de R$ 31 bilhões para a educação. Mas isso pode ser rediscutido. Entre o cenário otimista e o pessimista, as redes municipais e estaduais juntas podem perder de R$ 24 bilhões a R$ 58 bilhões em tributos. 

 Além da oxigenação emergencial do sistema educacional, a fonte de recursos mais importante para sua recuperação e reestruturação será o novo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), aprovado pela Câmara e em trâmite no Senado. Sem ele, 62% dos municípios entrarão em situação de subfinanciamento e cerca de mil municípios perderão mais de 50% do seu orçamento educacional. 

 Como disse Guterres, “nós enfrentamos uma catástrofe geracional que pode desperdiçar um potencial humano desconhecido, prejudicar décadas de progresso e exacerbar desigualdades enraizadas”. Minimizar este risco é prioridade, sobretudo no Brasil, um dos países mais desiguais do mundo, com educação abaixo da média. Tudo começa pelo financiamento.

Balança sinaliza saldo maior, mas incertezas prevalecem – Editorial | Valor Econômico

A pandemia e sua evolução desconhecida tem repercussão importante nos preços e na demanda dos produtos exportado
 O superávit de US$ 8,06 bilhões da balança comercial em julho marcou um recorde histórico mensal de todos os tempos, ajuda a economia em momento de extrema fragilidade, reforça as contas externas, traz divisas para o país, mas está longe de ser motivo de maiores comemorações. Tanto as exportações quanto as importações caíram. Houve uma redução da corrente de comércio. As exportações estão mais do que nunca concentradas em um comprador, a China, e em um punhado de produtos. Todos esses aspectos são reflexo do enfraquecimento da economia global causado pela pandemia do novo coronavírus. 

 O saldo comercial obtido em julho foi mais do que o triplo do registrado no mesmo mês em 2019. Na mesma base de comparação, as importações, que já vinham caindo e encolheram 27% em junho, registraram novo tombo, de 35,2% no mês passado. Teve forte influência nesse resultado o recuo de 33,6% em bens da indústria de transformação, como reflexo da retração econômica interna. Já as exportações tiveram queda de 2,9%. 

 O desempenho acumulado no ano também reflete o recuo dos negócios. A corrente de comércio caiu 8,2%, de US$ 231,1 bilhões de janeiro a julho de 2019 para US$ 212,2 bilhões em igual período deste ano. No acumulado até julho, as importações ficaram em US$ 90,9 bilhões, com queda de 10,5% pela média diária apurada pela Secretaria de Comércio Exterior (Secex); e as exportações somaram US$ 121,286 bilhões, com diminuição de 6,4% na comparação com o mesmo período de 2019. O saldo acumulado supera os US$ 30 bilhões. 

 A expectativa é que o ano termine com um total de exportações e importações menores do que o registrado no ano passado, embora o saldo possa até ser superior. A avaliação é que, até agora, os números sustentam a previsão do governo de superávit de US$ 55,4 bilhões. Alguns analistas projetam um saldo ainda maior, de US$ 60 bilhões, apesar da expectativa de que a retomada da economia deva ampliar as importações. 

O resultado deve assim superar com folga o saldo de US$ 46,6 bilhões registrado em 2019; e possivelmente o de US$ 58 bilhões de 2018. O desempenho será um feito, considerando que um dos mais importantes parceiros comerciais do Brasil, a Argentina, está com economia totalmente combalida e só conseguiu fechar nova renegociação da dívida no último momento, nesta semana. Os Estados Unidos, parceiro igualmente importante, também tem a economia afetada de modo importante pela pandemia. 

Mas a resposta rápida da China, que entrou primeiro na crise e começa a sair dela antes dos demais países, a desvalorização cambial e a demanda global pelas commodities, mesmo com preços em queda, sustentam as previsões otimistas. Após cair 6,8% no primeiro trimestre sobre o mesmo período de 2019, a economia chinesa cresceu 3,2% no segundo trimestre. 

Na avaliação de especialistas, a reação em V sinaliza que a China deve ser um dos raros países a crescer este ano. Não deverá repetir o desempenho espetacular de alguns anos atrás, mas ficar no terreno positivo no cenário atual já será um feito. Há quem diga que no quarto trimestre a economia chinesa já estará perto do ritmo de sua tendência de longo prazo, com crescimento de 5,5% ao ano. 

 Cálculos feitos pelo Barclays com base em dados do Ministério da Economia indicam que os embarques do Brasil para a China cresceram 14,6% de janeiro a junho, somando US$ 34,35 bilhões, enquanto caíram 15,2% para o resto do mundo (Valor 27/7). Há algumas outras exceções também localizadas na Ásia, como a Indonésia, Vietnã e Coreia do Sul, mas cujas compras do Brasil são em volumes consideravelmente menores. 

 A participação da China na pauta de exportações brasileiras cresceu mais, de 27% no primeiro semestre de 2019 para 34% no mesmo intervalo de 2020, apesar das estocadas de Brasília em Pequim. É o maior percentual desde 2000, primeiro ano da série elaborada pelo banco. Do superávit de US$ 22,3 bilhões acumulado pela balança no primeiro semestre, a China responde por US$ 17,7 bilhões, ou quase 80% do total. A demanda chinesa concentra-se nos produtos básicos: de janeiro a junho, os embarques de soja e minério de ferro cresceram 31% e 27%, respectivamente. 

 De toda forma, as previsões para a balança comercial neste ano devem ser encaradas com cautela. A pandemia e sua evolução desconhecida adiciona muita incerteza ao cenário, com repercussão importante nos preços e na demanda dos produtos exportados e na economia global.

Ímpeto gastador do bolsonarismo cresce e preocupa – Editorial | O Globo

Até o Zero Um aproveita a pandemia para pedir a Paulo Guedes que libere ‘um dinheirinho’ 

O senador Flávio Bolsonaro, o Zero Um, não poderia ter sido mais explícito: “O Paulo Guedes vai ter que dar um jeito de arrumar mais um dinheirinho para a gente dar continuidade a essas ações que têm impacto social e na infraestrutura”, disse ontem no GLOBO. Assim funciona o Brasil. Falta dinheiro? Pede ao ministro, ele dá “um jeito de arrumar”. O espírito que não vê obstáculo à alta de gastos está aí desde que Rui Barbosa assumiu o Ministério da Fazenda depois da Proclamação da República e, para estimular a industrialização, adotou a política de emissões descontroladas que resultou no Encilhamento. Volta e meia ressurge e, invariavelmente, acaba em inflação ou crise nas contas externas, em meio a recessão e estagnação. 

A pandemia, que impôs mais gastos na crise, abriu uma nova oportunidade ao ímpeto desenvolvimentista. Seus partidários acenam com uma recuperação mais rápida se o Tesouro aproveitar o momento em que acertadamente libera bilhões ao combate da crise sanitária e do desamparo para também destinar recursos à infraestrutura. É uma causa politicamente atraente a aliados políticos do governo, que este ano enfrentam eleições locais. 

O primeiro sinal visível de que o governo Bolsonaro reproduz o padrão histórico — a divisão entre quem deseja usar o Estado para acelerar a economia e os que se preocupam com equilíbrio fiscal e inflação — surgiu quando os militares do Planalto, mas não só eles, levaram ao presidente a proposta do Pró-Brasil. Renascia um programa que já teve vários nomes: Plano de Metas (Juscelino), PND (Geisel), PAC (Lula e Dilma). Sempre justificado pelo meritório objetivo de queimar etapas na corrida para o Brasil se tornar um país desenvolvido. 

O Pró-Brasil tem o DNA de Rui Barbosa e deriva também da cepa desenvolvimentista oriunda dos quartéis — decisiva, no governo Geisel, para o aprofundamento da participação do Estado na economia, por meio do programa de substituição de importações, conduzido por um BNDES sustentado pelo Tesouro (modelo depois usado pelos petistas Lula e Dilma). Entende-se por que foi apresentado pelo ministro Braga Netto, general da ativa não faz muito tempo. Partiu de seu aliado, o ministro Rogério Marinho, a tentativa de excluir os investimentos do teto de gastos, drible para “arrumar um dinheirinho”. 

Pela legislação fiscal, qualquer “dinheirinho” precisará sair de algum lugar, e os balões de ensaio do governo mal disfarçam a intenção de elevar a carga tributária. Bolsonaro, vale dizer, declara ser contra. Mas a tentação parece irresistível mesmo a Guedes, um liberal que representou, nas urnas em 2018, a antítese do ímpeto desenvolvimentista. Desde o tempo de Rui Barbosa, sabemos que “arrumar um dinheirinho” sem lastro custa caro lá na frente. Por que daria certo agora?

Música | Dominguinhos + Hamilton de Holanda + Mayra Andrade + Yamandu Costa [Lamento Sertanejo]


Poesia | João Cabral de Melo Neto - O cão sem plumas

A cidade é passada pelo rio 
como uma rua 
é passada por um cachorro; 
uma fruta 
por uma espada. 

 O rio ora lembrava 
a língua mansa de um cão 
ora o ventre triste de um cão, 
ora o outro rio 
de aquoso pano sujo 
dos olhos de um cão. 

 Aquele rio 
era como um cão sem plumas. 
Nada sabia da chuva azul, 
da fonte cor-de-rosa, 
da água do copo de água, 
da água de cântaro, 
dos peixes de água, 
da brisa na água. 

 Sabia dos caranguejos 
de lodo e ferrugem. 

 Sabia da lama 
como de uma mucosa. 
Devia saber dos povos. 
Sabia seguramente 
da mulher febril que habita as ostras. 

 Aquele rio 
jamais se abre aos peixes, 
ao brilho, 
à inquietação de faca 
que há nos peixes. 
Jamais se abre em peixes.