Valor Econômico - Eu & Fim de Semana
Considerando-se as regras da política e a nossa tradição quanto a como fazê-la, é surpreendente o recente comportamento do deputado Eduardo Cunha a partir da divulgação da delação premiada acerca de suposto recebimento de propina de sua parte. O presidente da Câmara dos Deputados, em decisão de caráter estritamente pessoal, rompeu com o governo. Em entrevista, afirmou que se tornara oposição, em que pese o fato de ser o presidente de uma casa legislativa e de seu partido fazer parte da aliança governista, ter acesso a cargos públicos, recursos do orçamento e ao poder federal. Em uma metáfora bem conhecida no meio político, diz-se que Cunha ciscou para fora.
A crise política que atinge o governo Dilma não é novidade no Brasil. Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva também foram vítimas de escândalos de corrupção, cobertura midiática desfavorável, queda de popularidade e conflitos políticos entre parceiros de aliança em busca de melhor posicionamento e de mais acesso, vis-à-vis seus sócios, aos recursos disponíveis. É humana a propensão a acreditar que tudo que ocorre no presente é mais grave do que aconteceu no passado. Há até nome para isso: presentismo.
Lula conheceu uma grave crise política entre meados de 2005 e o fim daquele ano. Muitos diziam na época que o mensalão havia sido o maior e mais grave escândalo da história do Brasil. Todos se recordam do conflito ocorrido no coração do governo Fernando Henrique entre os senadores Antônio Carlos Magalhães (ACM) e Jáder Barbalho. Os dois líderes mais importantes de dois dos três maiores partidos da base de apoio ao governo subiram à tribuna do Senado para desferir ataques mútuos. Mais que isso, cada um deu início à sua própria CPI com a finalidade de investigar ilícitos do opositor. Nasceram assim a CPI dos bancos e a CPI das empreiteiras.
Ter consciência de que nossa falha interpretação das crises políticas, em virtude das limitações cognitivas humanas, acaba por conferir maior peso ao presente do que ao passado não nos impede de identificar diferenças entre as crises. No caso do governo Dilma, há duas particularmente importantes: os avanços institucionais, que deram maior poder à polícia, ao Ministério Público e à Justiça, e o fato de que, pela primeira vez, o presidente da Câmara não é aquele da preferência do governo. Há o episódio Severino Cavalcanti, quando o candidato do governo Lula a presidente da Câmara, Luiz Eduardo Greenhalgh, foi derrotado. Severino ficou no cargo menos de um ano. Eleito em fevereiro de 2005, perdeu apoio de seus pares em setembro e teve que se afastar.
Agora, em 2015, o governo Dilma decidiu enfrentar a candidatura de Cunha à presidência da Câmara, lançando o deputado petista Arlindo Chinaglia, que já havia presidido a casa no início do segundo mandato de Lula. Qualquer governo deseja que o presidente da Câmara seja um aliado. O poder dele é imenso. Aqueles que acompanham o noticiário souberam que Eduardo Cunha colocou para votar iniciativas legislativas que estavam na Câmara há mais de dez anos. Apenas esse fato mostra quão grande é o poder desse cargo e quão relevante é para o governo ter nele um ocupante com o qual esteja afinado.
O presidente da Câmara é quem define a agenda legislativa. Se seu poder fosse somente esse, já seria grande. Mas vai muito além, uma vez que ele é o vértice superior da articulação política legislativa. Todos vimos como os postos-chaves das principais comissões legislativas da Câmara dos Deputados foram ocupados em fevereiro: Cunha emplacou em tais posições seus aliados. No recente episódio de rompimento de Cunha com o governo, quando se declarou textualmente na oposição, ele permitiu que novos passos fossem dados para a instalação da CPI do BNDES. A simples mudança de posição pode levar a haver ou não uma CPI. Como se vê, o poder do cargo é imenso.
Eis a novidade desta crise política: o governo Dilma, desde fevereiro, tem na presidência da Câmara um deputado que não trabalha afinado com a presidente. Fernando Henrique não passou por isso, e Lula só passou por algo semelhante durante o breve mandato de Severino Cavalcanti.
A segunda novidade tem a ver com a evolução, de um lado, da legislação que permite o combate à corrupção, e de outro, com o fortalecimento das carreiras de policial, promotor e juiz. Com o passar dos anos, novas leis foram aprovadas. Todas apontaram em uma mesma direção: as empresas e o setor público passaram a ser mais vigiados e controlados. Não apenas as leis explicitamente voltadas para o combate aos ilícitos financeiros foram nessa direção, mas também outros tipos de controles que têm como finalidade dar mais poder ao fisco na consecução de seu objetivo maior. Um exemplo prosaico disso é a adoção da nota fiscal eletrônica.
Mais instrumentos de controle foram parar nas mãos de policiais, promotores e juízes, que vêm sendo treinados em um novo ambiente, no qual eles sabem que seu sucesso depende exclusivamente do bom e eficiente cumprimento de seu papel profissional. No passado, políticos e juízes guardavam relações de parentesco. Não raro, havia políticos que eram irmãos, tios, sobrinhos ou primos de juízes. De uma maneira ou de outra, tinham crescido juntos, na família, na escola, e eventualmente, na faculdade. Como disse, no passado.
Com o advento da sociedade de massas no Brasil, deixou de ser comum que juízes e políticos se originem na mesma elite. Quando isso ocorria, o sucesso do político era sinônimo do sucesso do juiz. Hoje, como atestam Joaquim Barbosa e Sérgio Moro, isso deixou de acontecer. O mesmo que vale para os juízes vale para os promotores e, em menor dimensão, para os policiais. Estes eram, no passado, mais vítimas do desmando dos políticos. Policiais que de fato investigavam poderiam ser afastados de suas posições. Hoje, isso é impensável.
Eduardo Cunha é alvo de mais controles jurídicos e institucionais e de policiais, promotores e juízes mais independentes. O governo federal nada pode fazer para protegê-lo. Se o governo tivesse esse poder, o escândalo do mensalão não teria tido o desfecho que teve. Dito isso, a reação de Cunha, ao se colocar na oposição por conta de uma investigação, tem menos a ver com o que o governo pode fazer para protegê-lo e mais com suas propensões políticas.
O que mais surpreende na reação de Cunha é que não está de acordo com a tradição pemedebista de fazer política. O PMDB é um partido de raposas. Como se sabe, a adjetivação de raposa aplicada à política tem a ver com esperteza, habilidade, dissimulação. Por favor, não façam julgamento de valor. Essas características podem não ser úteis em outros mundos profissionais, mas são no mundo da política. A raposa caça sorrateiramente. Ela se aproxima da presa sem ser percebida. Só assim consegue atingir seu objetivo. Os políticos, em muitas situações, não revelam suas verdadeiras preferências e objetivos -essa é a condição, com frequência, para alcançá-los. Cunha vem fazendo o oposto.
Cunha teria agido dentro da tradição do PMDB se, quando houve a divulgação do escândalo que o envolve, tivesse feito a seguinte declaração: "O Brasil mudou, as instituições mudaram, e com isso é inteiramente compreensível que o Poder Executivo não exerça influência alguma sobre as investigações levadas a cabo no âmbito do Poder Judiciário. Não considero que esse episódio tenha a ver com o governo ou com a presidente. Assim, vou me defender e provarei na Justiça que todas essas denúncias são falsas e não passam de calúnias".
Feita essa declaração, Cunha passaria a agir cada vez mais como oposicionista. Eis o comportamento de raposa. Eis o comportamento tipicamente político.
Ao partir para a briga direta, para a explicitação de sua posição, Cunha começou a ser politicamente isolado. O PMDB prontamente emitiu uma nota, afirmando que o rompimento de Cunha não era a posição do partido. O deputado Miro Teixeira já se pronunciou acerca das condições de um possível afastamento do presidente da Câmara. Líderes de oposição já explicitaram que decisão política é diferente de decisão pessoal. O conteúdo e a forma da reação de Cunha às denúncias que o atingem apenas pioram sua situação.
----------------------------------
Alberto Carlos Almeida, sociólogo e professor universitário, é autor de A Cabeça do Brasileiro e O Dedo na Ferida: Menos Imposto. Mais Consumo