segunda-feira, 16 de março de 2020

Opinião do dia – Luiz Sérgio Henriques*

A “venezualização” não é um risco associado unicamente ao populismo de esquerda. A “maré rosa” da primeira década do século tinha como área mais radical os regimes ditos bolivarianos, com a tática, num primeiro momento aparentemente invencível, de concentrar o poder em torno do Executivo, desautorizar os Parlamentos regularmente constituídos e destruir os delicados equilíbrios entre as instituições de Estado e entre este último e a sociedade civil. Contudo a régua e o compasso desse projeto infaustamente “revolucionário” se transferiram recentemente para outras mãos não menos ameaçadoras. E a ameaça presente - da parte da extrema direita liberticida - só faz confirmar que hipóteses “revolucionárias” de qualquer natureza, com seus remédios salvadores, costumam arruinar sociedades inteiras ou, no mínimo, encerrá-las em estéreis e prolongados conflitos e convulsões. Apesar do que somos e do que aspiramos a ser como povo e como nação, não podemos mais dizer que estamos alheios a esse tipo de atribulação.

* Tradutor e ensaísta, um dos organizadores das obras de Gramsci no Brasil, é autor de ‘Reformismo de esquerda e democracia política’ (Fundação Astrojildo Pereira). ‘A Venezuela como questão de método’, O Estado de S. Paulo, 15/3/2020.

Fernando Gabeira – A visita da realidade

- O Globo

Quando não for possível UTI, pelo menos aparelho respiratório. As pessoas não podem morrer como um peixe fora da água

Durante três semanas critiquei essa ideia de manifestação no domingo. Tanto o governo como a oposição pareciam para fora do mundo. Era contraditória a posição de Bolsonaro. Num dia, afirmava que o Brasil deveria seguir os especialistas no enfrentamento ao coronavírus; no outro, convocava manifestação de massas em todo o país. Ontem, ignorou o risco e cumprimentou manifestantes.

Houve quem protestasse: afinal, o povo tem direito de se manifestar nas ruas. Não era isto que estava em jogo, mas a saúde dos bolsonaristas e também dos opositores, uma vez que o vírus não tem ideologia.

Não faz sentido para mim usar este tipo de argumento “bem que avisei”. O Brasil tem um delay na absorção de algumas realidades evidentes no resto do mundo. Sabendo disso, é preciso sempre falar com calma, pois não vai ser o seu argumento que mudará as coisas. É algo que se resolve no curso dos fatos reais.

Não há que olhar para trás, criticar de novo. Bolsonaro nos EUA, depois de um jantar com Trump, disse que o coronavírus estava sendo ampliado pela mídia. Exatamente o que Trump costumava dizer.

Será preciso esquecê-los, se isso for possível, para pensar na estratégia real de combate ao vírus. Pelo que li sobre a Itália e a China, é evidente que precisamos preparar leitos e UTIs. Quando não for possível uma unidade intensiva, pelo menos aparelho respiratório. As pessoas não podem morrer como peixe fora da água.

Teremos de reduzir drasticamente nossos contatos físicos. Isso não é fácil. Uma campanha na Suécia, na década dos 80, me chamou a atenção: toquem uns nos outros, isso faz bem.

Ana Maria Machado - Mau exemplo contagioso

- O Globo

Somos instados a buscar sensatez

Com a chegada da Covid-19, somos instados a ter juízo, manter distância social e responsabilidade cidadã, proteger a nós mesmos e aos outros. Buscar sensatez. Seria bom ter bons exemplos.

Ainda outro dia, tínhamos de escolher entre os amotinados da polícia, em ação definida como inconstitucional pelo STF, ou o tresloucado senador da retroescavadeira avançando contra eles. Sem falar na difamação e ataques chulos a mulheres jornalistas a reverberar por hostes parlamentares. E convocações do Executivo para se ir às ruas contra o STF e o Congresso. Além da maluquice à solta, temos o contagioso mau exemplo que vem de cima.

Se o presidente pode engrossar à vontade, na certeza de que tudo fica por isso mesmo, o que não fará o famoso guarda da esquina, que nem ao menos está o tempo todo sob o testemunho das câmeras para que se saiba o que faz de horrível? Se, em cada encontro com jornalistas ou eleitores munidos de celular, ele pode xingar a mãe a qualquer pretexto, dar banana ou apontar arminha gestual enquanto libera uso de armas reais pelo país afora, o que não fará o brutamontes anônimo com arma de verdade e força física, entre quatro paredes, contra a mulher que não quer mais aturar suas ameaças e violência? Se secretário da Cultura considerado “de verdade” pelo presidente podia ecoar discurso nazista em ultrajante vídeo oficial, e se governante estadual pode fazer lista de livros a serem recolhidos, o que não fará a diretora da escola ou o pastor no escurinho do anonimato?

Cacá Diegues - Um alerta contemporâneo

- Globo

O coronavírus é uma formação natural de um mundo que ainda não conhecemos, equivalente ao que foi a Gripe Espanhola

O planeta nunca foi o mesmo. Ao longo do tempo, temos passado ao largo dessa questão, como se ela não nos importasse para entendermos melhor onde estamos. E o que enfrentamos, a cada momento, para existir. Um simples dado ignorado sobre o planeta pode nos revelar alguma coisa fundamental sobre nós mesmos. Talvez esse simples dado, sobre a existência do que não conhecemos, nos explique o que não conseguimos explicar até agora.

O calor excessivo na Europa, as cheias no continente asiático, as recentes chuvas de inverno durante o nosso verão devem ser uma reação da natureza ao que temos feito de errado no mundo. É como se fôssemos room mates num Airbnb apertado, reclamando do comportamento um do outro. Embora não saibamos quem é esse “outro”, formado no mesmo espaço que nós. Cada fenômeno daqueles é um gesto de nossos parceiros para nos chamar a atenção para o que deve estar errado. Ou então uma simples declaração de guerra, sei lá de que tipo.

Quando nossos erros se concluem antes de um desastre final, nossos parceiros deixam pra lá, esperam que desvendemos o fracasso de nossas más ideias. Outro dia, um daqueles príncipes do Oriente Médio ofereceu ao Brasil fazer parte da Opep, a organização dos países exportadores de petróleo. O cara deve ter feito o convite porque quase ninguém mais quer saber da Opep, por causa das novas fontes de energia.

No nosso recente leilão de pré-sal, não apareceu quase ninguém. Ninguém está mais a fim de gastar fortunas na exploração de petróleo, quando o mundo desenvolve a mil, e já usa, novas fontes limpas de energia, como a a eólica e a solar. Só a Petrobras adquiriu reservas.

Luiz Roberto Nascimento Silva* - A peste

- O Globo

A lembrança da maior epidemia da humanidade surge como memória involuntária. A “Peste Negra”no século XIV começou na Eurásia e invadiu a Europa com as caravanas de comércio do Mar Mediterrâneo e foi transmitida por ratos negros indianos. Estima-se que entre 70 a 200 milhões de pessoas morreram entre 1343 a 1353. O historiador Jacques Le Goff indica que para cada três europeus vivos, um morreu.

A medicina ocidental nesse período era mais rudimentar que a oriental. Em Veneza por exemplo, a peste encontrou um ambiente ideal por ser construída sobre as águas permitindo a propagação com rapidez. Os relatos dos autores transmitem a certeza do fim do mundo. Dramaticamente a cidade hoje é de novo das mais atingidas.

Além dos reflexos sobre a própria preservação da vida, o coranavírus causa estragos em todo ambiente econômico. As bolsas de valores renovam circuit breaks paralisando os negócios. Os juros fecham suas curvas criando rendimentos negativos. As moedas perdem seus parâmetros de referência. A crise na China, importante supridora de peças e componentes do mundo e grande compradora de commodities, interrompe enormes cadeias produtivas. Perdem-se produção, distribuição e consumo.

Impossível também não lembrar de “A Peste”, de Camus, publicado em 1947. Trata-se de um relato preciso de como uma epidemia age sobre uma cidade e sua população. A cidade de Oran, na Argélia, é de repente assolada por uma peste bubônica. Um narrador onisciente descreve a luta do Dr. Bernard Rieux e de outros personagens em auxiliar a população que reage primeiro com desinteresse e descrédito e depois com pavor, desespero e dor. Está tudo lá, vivo e atual.

Bolsonaro dá exemplo duplo de irresponsabilidade – Editorial | O Globo

Presidente descumpre protocolo médico em apoio a manifestações que afrontam a Constituição

Talvez o maior modelo político, ideológico e comportamental de Jair Bolsonaro, Donald Trump não parecia levar muito a sério o coronavírus até que, na quarta-feira, anunciou o fechamento do país a voos que partem da Europa. Como é do feitio dos políticos radicais, tentou usar politicamente a medida: estabeleceu uma exceção para a Grã-Bretanha do aliado Boris Johnson, como se ingleses, escoceses etc. não tivessem o mesmo poder de disseminar o vírus. Na sexta, foi obrigado a decretar “emergência nacional” e tomar uma série de medidas importantes.

O presidente brasileiro, nacional-populista de raiz, no figurino de Trump, deve ter tido vontade de chamar o patógeno da pandemia de “vírus estrangeiro”, imitando o presidente americano. Mas não há informação de que tenha criado empecilho a qualquer das decisões adequadas que vêm sendo tomadas pelo seu ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e por outras áreas do governo.

Os erros de Bolsonaro, reforçados ontem, são de outra ordem, tão ou mais graves: demonstrações de irresponsabilidade política e pessoal. O presidente entrou em terreno institucionalmente perigoso, na última semana de fevereiro, ao fim do carnaval, quando ajudou a divulgar por sua conta de WhatsApp a convocação de manifestações contra o Congresso e o Supremo realizadas ontem em algumas cidades. De sentido golpista. Inconstitucionais, ilegais.

Marcus André Melo* - Colégio eleitoral?

- Folha de S. Paulo

Espécie de relíquia institucional, sua abolição exigiria forte mobilização da opinião pública

O colégio eleitoral americano é uma espécie de relíquia institucional. Os motivos que levaram a sua adoção são desconhecidos por muitos, e as razões que explicam sua permanência também.

E isso malgrado o fato de que sua ineficiência é patente e sua abolição contar com maiorias superiores a 80% do eleitorado. Mas o paradoxo tem explicação institucional.

E não é para menos: como é possível que o candidato que tenha tido mais votos nas eleições tenha sido preterido em favor do segundo lugar, como em 1876, 1888, 2000 e 2016.

Em 2016, Hillary Clinton obteve 2% a mais de votos populares que Trump. A desproporcionalidade também favorece candidatos que ganham no voto popular e no colégio eleitoral, como Obama, em 2012, que obteve 11% a mais neste último, em relação ao primeiro.

Os pais fundadores dos EUA se depararam com uma tarefa nunca tentada anteriormente: escolher o principal mandatário em um regime sem precedentes históricos (presidencialismo). E a resposta veio na forma de uma solução açodada.

Igor Gielow - Irresponsabilidade sanitária abre guerra aberta contra os Poderes

- Folha de S. Paulo

Cenas insólitas deste domingo fazem conversas sobre impeachment deixarem de ser tabu

O ato de irresponsabilidade sanitária do presidente Jair Bolsonaro fez confluir de vez a crise política com o Congresso com a emergência da chegada da pandemia do novo coronavírus ao Brasil.

Neste domingo, o mandatário máximo saiu do isolamento recomendado devido à possibilidade de estar infectado com o coronavírus para confraternizar com apoiadores do ato contra o Congresso e Supremo. Uma cena insólita em todas as suas dimensões.

Enquanto governadores de estado e dirigentes de empresas se digladiam com dilemas diários acerca da dramaticidade das medidas contra o vírus, Bolsonaro achou por bem estimular aglomerações, abraçar pessoas e tirar selfies com seus celulares.

Nada surpreendente, a examinar a folha corrida do bolsonarismo no trato com a ciência —das franjas terraplanistas às políticas ambiental e educacional oficiais.

A pregação da ignorância antiacadêmica é um dos motes entre aqueles aderentes mais fanáticos da seita presidencial. Mas o que se viu neste domingo foi um patamar acima.

O grupo de WhatsApp dos governadores, uma espécie de termômetro do espírito dos estados ante a lida com o Planalto, fervilhou com mensagens unânimes de desaprovação dupla. Primeiro, do ato em si, e segundo, da ligeireza com que o presidente trata uma ameaça à saúde pública.

Entre outros políticos, ouviu-se até referência à lei 1.079/50, que prevê os crimes de responsabilidade que podem levar ao impeachment.

Celso Rocha de Barros* - É hora do populismo de WhatsApp calar a boca

- Folha de S. Paulo

Não somos ricos como os EUA; não temos dinheiro para comprar uma segunda chance

O melhor argumento do conservadorismo popular é que os pobres estão perto demais do naufrágio para fazer marola.

O jovem rico que passa alguns anos bebendo e faltando aula vai ter outra chance, vai ser sustentado enquanto se recupera, vai fazer cursinho por quantos anos for necessário até entrar na faculdade. O jovem pobre que tentar a mesma coisa nunca mais vai ter qualquer chance de sair da pobreza. A moça rica que engravidar na adolescência vai fazer seu aborto em uma clínica de qualidade. A moça pobre na mesma situação vai ter que largar a escola para criar filho. O direito a fazer besteira é tão desigualmente distribuído quanto a renda.

O mesmo vale para países. Se os Estados Unidos quiserem brincar de Donald Trump, é estúpido, mas eles têm dinheiro para isso. Nós, brasileiros, nunca tivemos dinheiro suficiente para brincar de Bolsonaro, e agora isso vai ficar mais claro do que nunca.

A primeira reação de Donald Trump à crise da Covid-19 foi fingir que não estava acontecendo nada. O país perdeu a chance de conter o contágio em sua fase inicial, o que teria sido importantíssimo.

Mas as instituições americanas são muito mais fortes do que as brasileiras, e os Estados Unidos são muito mais ricos que o Brasil.

Vinicius Mota - Má política mata e empobrece

- Folha de S. Paulo

Crise do coronavírus, de efeitos ciclópicos, vai separar as crianças dos adultos na vida pública

Nossas autoridades tiveram tempo para se preparar. A Covid-19 exibiu seus traços na Ásia e na Europa. Em quase três semanas de observações no Brasil, a evolução dos casos confirmados imita as piores trajetórias das nações ricas.

A perspectiva não é boa. Nessa marcha, haverá cerca de 60 mil casos na primeira semana de abril. Se 5% precisarem de cuidado intensivo, serão 3.000 leitos de UTI a mobilizar, quase metade dos que estão desocupados em todo o país.

Dá para prever também que, conforme a epidemia se alastre, as medidas restritivas serão reforçadas, a ponto de ocorrerem em regiões como São Paulo e Rio ordens de recolher draconianas, como as que vigoram hoje na Itália e na Espanha.

As consequências para a vida das pessoas e das empresas serão ciclópicas. Será preciso acionar mecanismos emergenciais não só de atendimento médico, mas também de abastecimento, garantia de renda, segurança pública e proteção para os setores populares vulneráveis, que no Brasil são vastos.

Leandro Colon – Irresponsável

- Folha de S. Paulo

Presidente quebra os protocolos de combate à doença e dá os piores exemplos

Enquanto o planeta Terra acelera o processo de confinamento de sua população para estancar a disseminação do coronavírus, Jair Bolsonaro quebra os protocolos de combate à doença e dá os piores exemplos ao país que preside.

Neste domingo (15), ele saiu do isolamento recomendável a quem fará novo teste. Ao menos 12 pessoas ligadas à comitiva presidencial da viagem aos EUA contraíram o vírus.

Bolsonaro cumprimentou pessoas, juntou-se a aglomeração, tirou selfies, pegou em celulares, ferramenta de fácil contágio, de desconhecidos.

Antes, passeou com a estrutura oficial do comboio da Presidência, com direito a ambulância médica de acompanhamento, para inflar o buzinaço da carreata de manifestantes.

Embora grave, o componente político do gesto do presidente de estar em um ato anti-Congresso fica até menor diante da irresponsabilidade em ignorar medidas básicas para estancar a escalada do coronavírus.

Ruy Castro* - Coragem ou irresponsabilidade?

- Folha de S. Paulo

Não será surpresa se Bolsonaro for visto, de propósito, chupando o dedo

Ao ver sua claque em frente ao Alvorada, Jair Bolsonaro saiu tocando mãos, deixando-se apalpar e tirando selfies com celulares de apoiadores que ele não sabe se estavam com o nariz escorrendo. Coragem ou irresponsabilidade? Se Bolsonaro está convicto de que o coronavírus é uma invenção da mídia e não liga para sua saúde, ótimo —os brasileiros de bem agradecem.

O problema é que ele não é dono apenas de seu nariz. Sua atitude de ontem gerou um péssimo exemplo. Para desespero das autoridades sanitárias, inclusive as de seu governo, ele deu sinal verde para que ninguém tome as precauções para evitar contágio. Com seu populismo de coronel da roça, Bolsonaro contrariou a maciça recomendação médica de que, em nome da saúde pública, as pessoas lavem constantemente as mãos, policiem-se para não levá-las ao rosto e evitem contatos em aglomerações.

Eliane Cantanhêde - Brincadeira de vida ou morte.

- O Estado de S. Paulo

Há tempos o Brasil não assiste, à luz do sol, a uma irresponsabilidade como a do presidente da República, que jogou para o alto as recomendações de saúde e se encontrou com manifestantes em frente ao Planalto. Em nova versão da “fantasia”, Jair Bolsonaro passou para a população a mensagem de danem-se o Ministério da Saúde, os especialistas, os médicos!

Entre o correto e o conveniente politicamente, Bolsonaro optou pela conveniência política, o que se torna ainda mais irresponsável quando a epidemia está só começando no País e, ao lado dele, estava o diretor substituto da própria Anvisa. Chocante.

Paulo Guedes defende reformas, mas Bolsonaro senta em cima das propostas e publica fotos justamente com faixas de “Fora Maia” nas manifestações. E o ministro Luiz Henrique Mandetta tenta evitar mortes e contaminação e adverte que em pessoas acima de 60 anos a covid-19 é mais letal e todos que tiveram contato com contaminados devem se preservar – e preservar os outros –, mas o que faz Bolsonaro? Vai à rua, toca pessoas e seus celulares.

Sérgio Abranches* - Uma questão de responsabilidade

- O Estado de S.Paulo

Mau exemplo do presidente é uma ofensa ao cargo e um desrespeito às autoridades sanitárias e à população brasileira

A presença do presidente da República em uma manifestação pública em meio a uma ameaça concreta de epidemia da Covid-19 tem muita gravidade. A atitude do presidente desfaz todo o cauteloso trabalho de seu ministro da Saúde, desobedece as recomendações das autoridades sanitárias, de epidemiologistas e da OMS.

Há formalidades inerentes ao exercício da Presidência que são inescapáveis. Uma delas, está na Constituição, é respeitar o decoro do cargo. Ao violar publicamente medidas cautelares explícitas, durante a crise sanitária que se agravará nas próximas semanas, o presidente feriu o decoro. É o seu governo, junto com os governos estaduais, que recomendam evitar aglomerações e contatos físicos.

O mau exemplo do presidente é uma ofensa ao cargo e um desrespeito às autoridades sanitárias e à população brasileira. Sugere que a pandemia não tem a importância que os médicos dizem que ela tem. É uma atitude irresponsável. Atua-se com o cenário de maior gravidade, porque é uma epidemia sem precedentes, cujos desdobramentos se desconhece.

Bolsonaro fere o decoro e desrespeita os limites constitucionais da Presidência ao dar apoio explícito a uma manifestação antidemocrática, contra o Legislativo e o Judiciário. São Poderes Republicanos que o presidente tem a obrigação constitucional de respeitar e defender.

A mentalidade autoritária de Bolsonaro é notória. Mas, ao tornar-se presidente, ele se comprometeu a respeitar o código de deveres do cargo, que desrespeitou em duas dimensões. A comportamental, ao participar de manifestações de rua que elevam o risco de ampliação do contágio. Sua presença é um péssimo exemplo à população. A institucional, ao convalidar ataques aos Poderes constituídos da República.

Ao agir assim, o presidente comete crime de responsabilidade. Fere o decoro, estimula ataques aos Poderes constitucionais e induz a população a subestimar os riscos associados à uma grave epidemia sem precedentes.

*Sérgio Abrances é sociólogo, cientista político e escritor

Denis Lerrer Rosenfield * - Tempestade perfeita

- O Estado de S.Paulo

Ambiente deveria ser de apaziguamento, não de enfrentamento, para ela não se consumar

O Brasil está entrando em estado de tempestade perfeita, numa confluência de fatores que tende a agravar uma situação que já se apresentava ruim. A economia não está decolando, o Banco Central e grandes bancos refazem suas previsões para este ano abaixo do que estava sendo estimado - isso antes da pandemia do coronavírus. O bolsonarismo continua impregnando as redes sociais com ataques aos adversários e, mais concretamente, às instituições, como a Câmara dos Deputados, o Senado e o Supremo Tribunal Federal, tidos por inimigos.

A pandemia do coronavírus expõe uma desorientação do governo, com presidente e ministros se contradizendo entre si, cada um procurando sinalizar para uma orientação específica. No início foi a minimização do episódio, como se fosse uma mera “marolinha”. Todos se tornaram discípulos do ex-presidente Lula, com as consequências desastrosas já conhecidas desde aquele então. Depois o ministro da Saúde apontando para direções sensatas e preventivas sem que fique, porém, claro como o governo pretende enfrentar uma situação de crise, por falta de orçamento e outras medidas emergenciais. A imagem transmitida é de improvisação. Só palavras de apaziguamento não bastam. Não é um problema de psicologia pública, mas de saúde física da população, sobretudo doentes crônicos e idosos.

Capítulo à parte é o problema das reformas, que ressurge agora como um “remédio” para o coronavírus, sem que se saiba ao certo a relação direta entre eles, salvo no fator fiscal. A questão central é que o governo ou não sabe ou não quer negociar as reformas com o Legislativo, contentando-se em enviar projetos, sem diálogo, ou em falar deles sem os enviar, caso das reformas tributária e administrativa. O governo está transferindo sua responsabilidade, procurando suscitar a adesão da opinião pública, numa espécie de criminalização da classe política, como se todos fossem corruptos.

José Goldemberg * - Modernização e políticas públicas

- O Estado de S.Paulo

É útil começar já a entender o que fazem os países da OCDE e comparar com o Brasil

Está aberto o caminho para que o Brasil passe a integrar a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), mais conhecida como o “clube dos países ricos”. Fazem parte dela os 36 países mais avançados do mundo, onde se concentram mais de 40% da riqueza mundial.

Na prática, o Brasil, a oitava economia mundial, não é mais considerado um “país em desenvolvimento”, como é o caso de muitos países da África. E o ingresso na OCDE vai nos levar a alinhar certos procedimentos na economia e administração do País com os demais países do grupo.

Umas das áreas em que isso vai ter de ser feito é a do desenvolvimento científico e tecnológico, que é um componente essencial da modernização. É útil, portanto, começar a entender desde já as políticas públicas e os instrumentos que os países da OCDE utilizam e compará-los com os que estão sendo adotados hoje no Brasil.

Um documento útil para esse fim é o intitulado Colaboração Universidade-Indústria, publicado em 2019 pela OCDE, que analisa as políticas públicas dos países-membros da organização para apoiar a transferência de conhecimentos das universidades para a indústria. Esse não é um problema novo no mundo, nem no Brasil, e nos força a tentar entender o papel das universidades em geral na sociedade.

Até a criação da Universidade de Bolonha, por alunos e mestres independentes, há mais de 800 anos, todo o ensino e os estudos eram feitos apenas em estabelecimentos religiosos. Após a sua criação, seguida pela fundação de muitas outras, as universidades tornaram-se centros de pensamento intelectual e nelas se desenvolveram as grandes ideias filosóficas e científicas que abriram novos horizontes, para além dos permitidos pela Igreja Católica na época.

Entrevista | Maia: “Precisamos que o presidente assuma a cadeira de piloto do avião”

Deputado diz que Câmara poderá mudar meta fiscal, mas teto de gastos será mantido

Por Marcelo Ribeiro e Fernando Exman | Valor Econômico


BRASÍLIAO presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), recebeu o Valor na residência oficial já alertando: “De longe”.

O avanço do coronavírus não impôs apenas uma nova dinâmica para a entrevista, mas também para a atividade parlamentar, num momento em que o Congresso terá que combater os efeitos dessa crise, e na relação entre os Poderes.

Maia se disse “perplexo” com a participação do presidente Jair Bolsonaro nas manifestações contra o Legislativo e o Judiciário. Fora da entrevista, na rede social Twitter, bateu sem piedade. Mirou na questão da saúde, e não nas críticas que os manifestantes fazem às instituições.

“ O presidente da República ignora e desautoriza o seu ministro da Saúde e os técnicos do ministério, fazendo pouco caso da pandemia e encorajando as pessoas a sair às ruas. Isso é um atentado à saúde pública, que contraria as orientações do próprio governo”, escreveu.

Na entrevista, Maia cobrou que o presidente da República assuma a “cadeira de piloto” para a qual foi eleito, e demonstrou como a Câmara pode ajudar.

“A PEC do Teto de Gastos limita os gastos e é importante que a gente dê clareza aos investidores que ela não será cancelada”, destacou. “Mas ela tem uma previsão que em caso de catástrofe o governo pode editar projetos ou medidas de créditos extraordinários.”

Ele sinalizou, por outro lado, que uma alteração da meta fiscal que garanta recursos para o enfrentamento da crise não terá dificuldades no Congresso: “Este é um caso de catástrofe e precisa ficar claro. O orçamento do Ministério da Saúde não pode estar limitado por nada”.

Perguntado se o comportamento do presidente é incompatível com o cargo, o que em tese pode embasar um pedido de impeachment, o presidente da Câmara afirmou que o Congresso não agravará a crise. “Às vezes, me dá a impressão que o governo quer isso. Nós não seremos responsáveis por isso”, disse.

Valor: Antes das manifestações, o senhor estava com um discurso pacificador. O que muda a partir do que ocorreu no domingo?

Rodrigo Maia: Pacificador pelo tema [coronavírus], não pela relação com o governo. Eu sempre deixei claro que uma coisa são esses próximos três meses e outra coisa é depois dos três meses. Por mais que o que ocorreu hoje [domingo] seja gravíssimo, nós temos que ter paciência para dizer o seguinte: nós precisamos do piloto do avião no lugar correto. Nós não podemos repetir o filme “Apertem os cintos que o piloto sumiu”. Nós precisamos do presidente da República na cadeira de piloto. Essa é a cadeira para a qual ele foi eleito. Comandar o Brasil na crise, esse é o papel do presidente e só ele pode comandar o país nesta crise.

Valor: Como o senhor avalia a reação do governo em relação à pandemia e aos impactos econômicos dela decorrentes? Como o Congresso deve interagir com essa agenda do poder Executivo?

Maia: A agenda de hoje é muito diferente da de quatro ou cinco semanas atrás. Se a reação não for bem organizada pelo governo, nós teremos aumento do desemprego e da pobreza. Não podemos esquecer que o Brasil tem uma informalidade enorme. Muitos vão precisar entrar em quarentena, mas não têm outra renda. O que a gente espera é que o governo possa se organizar não apenas na saúde, mas tomar decisões para que o impacto em alguns setores seja minimizado. O que vai acontecer no setor de serviços, entretenimento? O setor de aviação, o de turismo? Alguns setores já estão dando férias coletivas ou demitindo.

Valor: A participação do presidente na manifestação não prejudica essa reação contra a pandemia?

Maia: Em um momento como este, cabe a todos os Poderes trabalhar em conjunto, unidos, para que os impactos desta crise sejam reduzidos. Infelizmente, não é o que a gente vem acompanhando nos últimos dias. Primeiro minimizou demais, depois chegou perto do coronavírus e no dia de domingo deu uma demonstração de total irresponsabilidade em relação a milhões de brasileiros. Mais do que isso: mandou um sinal desautorizando o seu próprio ministro da Saúde e sua equipe, quando recebeu uma orientação dela. Fez uma gravação junto com o ministro dizendo que não pode haver aglomerações e dois dias depois desautoriza a própria equipe da pasta.

Bruno Carazza* - O grande flagelo

- Valor Econômico

Epidemia se alastra e governo age a reboque

Ao chegarem as notícias de que uma epidemia assolava diversos países, o primeiro pronunciamento da autoridade máxima da saúde no Brasil foi tranquilizar a população: “Até agora nenhum caso suspeito nos chegou”. Depois de analisar os dados disponíveis, constatou que não havia motivos para pânico. E garantiu: “faremos tudo quando pudermos” para evitar o contágio da doença.

Diante do crescimento acelerado do número de casos ao redor do mundo, médicos recomendavam que o governo deveria empreender uma rigorosa fiscalização dos passageiros brasileiros e estrangeiros que chegavam principalmente da Europa, onde a epidemia parecia fugir do controle. 

Alguns especialistas, porém, criticavam a histeria dos meios de comunicação em relação à doença: embora de rápida disseminação, tratava-se de mais um surto de gripe que de tempos em tempos assola a humanidade, e isso não deveria ser motivo de preocupação, porque a letalidade da doença em geral é baixa, restrita às pessoas muito idosas e debilitadas.

A propagação do vírus no exterior, intensamente repercutida pela imprensa, deixou todos apreensivos. Navios com passageiros infectados começaram a ser proibidos de aportar em várias partes do mundo, deixando à própria sorte milhares de pessoas. Um grupo de brasileiros chegados do exterior foi colocado em quarentena e determinou-se a inspeção nos pontos de chegada e partida. Com a identificação dos primeiros casos de contaminação em território nacional, o Brasil entrava no mapa da mais nova pandemia.

Pouco menos de duas semanas após a detecção dos primeiros casos, a nova enfermidade começa a mostrar a que veio. Cidades e cidades começam a informar ao governo a ocorrência de surtos, principalmente em locais com presença de grande número de pessoas: órgãos públicos, escolas, quartéis, presídios.

Alex Ribeiro - Câmbio não deve limitar a ação do BC nos juros

- Valor Econômico

Diferencial de juros não explica alta recente da moeda americana

Muitos economistas chamaram a atenção sobre o risco de novos cortes de juros alimentarem ainda mais a alta do dólar. O Banco Central, porém, insiste que a política monetária opera independente da política cambial e que os juros podem cuidar apenas da inflação. Nessa controvérsia, a experiência empírica dá razão para o Banco Central.

A tese de que a política monetária é dominada pela política cambial não é, exatamente, nova. Em 2018, o BC chefiado por Ilan Goldfajn foi cobrado a subir juros para conter uma alta do dólar. Ilan seguiu a cartilha do regime de metas de inflação. Avisou que a política monetária iria reagir apenas se a alta do dólar causasse efeitos secundários na inflação. No fim, não precisou subiu os juros, e o tempo mostrou que ele estava certo.

Por trás dos receios sobre o impacto do corte dos juros no câmbio, há a teoria de que há duas classes de países. De um lado, os desenvolvidos, que podem usar a política monetária no equilíbrio interno de suas economias. De outro, os emergentes, com fundamentos mais frágeis, que pagam o preço da recessão e baixa inflação para assegurar o seu equilíbrio externo.

Participantes do mercado financeiro também têm apontado uma suposta contradição na estratégia do BC. A autoridade monetária vende dólares para conter o avanço descontrolado da moeda americana. Mas, em paralelo, anuncia cortes de juros, que tornam menos atrativo manter dinheiro no país e impulsionam o dólar.

Luiz Carlos Mendonça de Barros* - A volta do momento Minsky

- Valor Econômico

Desta vez não houve Cisne Negro externo a pôr fim ao otimismo dos mercados, e sim a difusão do coronavírus

A teoria econômica no início do desenvolvimento do capitalismo, no final do século 19 e começo do 20, era mais um tratado religioso escrito pelos chamados economistas clássicos do que uma avaliação dos problemas reais que a incipiente economia à época apresentava. O homem que vivia a dinâmica das economias de mercado era justo, racional e religioso. John Maynard Keynes foi o primeiro pensador sobre as questões econômicas que desmitificou a forma de dogma religioso que prevalecia até então. Ele delineou os valores do verdadeiro Homem Econômico que existe nos mercados e não a imagem criada pelo dogmatismo do chamado homem racional.

A terrível crise da depressão econômica dos anos 30 desmoralizou o arcabouço teórico e prático do capitalismo puro e validou as observações mais importantes de Keynes e de um pequeno número de economistas ao seu redor. Mas o boom econômico no pós-guerra nos Estados Unidos permitiu que uma nova leitura mais realista dos ideólogos religiosos do capitalismo fosse desenvolvida, principalmente nas universidades americanas. Chicago passou a ser a nova Roma na defesa dos princípios reescritos e chamados de neoclássicos. Pouco a pouco uma série de mecanismos criados nos anos da depressão foram sendo desmontados ou reescritos com menor capacidade de intervenção dos governos nos mercados.

Com a ascensão de Ronald Reagan, uma nova geração de políticos do Partido Republicano retomou a “cruzada santa” dos clássicos de negar ao Estado o direito de restringir a liberdade individual de investidores e empresários. O sucesso econômico dos anos Reagan trouxe de volta a ilusão da racionalidade do sistema e que havia sido perdida nos anos terríveis da depressão.

José Francisco L. Gonçalves* - Fiscalizando a política monetária

- Valor Econômico

Aguardar que as reformas tenham o condão de libertar os “espíritos animais dos empresários” é imobilismo

Logo mais, o Copom vai definir a taxa Selic para as próximas seis semanas. E vai fazê-lo em ambiente difícil, dado o nível de incerteza que tomou os mercados desde a eclosão da covid-19 em meados de janeiro. Os desdobramentos do contágio interromperam a produção em vários segmentos da economia mundial e promoveram bruscas e grandes flutuações nos preços dos ativos reais e financeiros. Seu impacto sobre o preço do petróleo pode ter efeitos prolongados sobre a atividade econômica.

Em particular, as moedas emergentes sofreram brutalmente pela corrida dos investidores, ora para o dólar, ora para outras moedas fortes. Os juros que ativos públicos em tais moedas pagam tiveram outra rodada de queda, atingindo níveis inimaginavelmente baixos. Os bancos centrais de tais países entraram mais fundo em nova rodada de expansão monetária e de seus balanços, buscando elidir a incerteza e a brutal preferência pela liquidez.

Os ativos de risco foram enormemente desvalorizados, os prêmios de risco, multiplicados. As variáveis do balanço de risco do Copom (Comitê de Política Monetária do BC) estão claramente ponderadas: o ambiente internacional desinflacionário, para ser breve, a elevada ociosidade de fatores na economia brasileira, a capacidade de a inflação não acelerar com os vários choques dos últimos anos, a expectativa de inflação abaixo da meta no horizonte relevante, a incerteza sobre a potência da política monetária, os efeitos da redução de juros já realizada.

E o mais importante atualmente, “a consequência desses efeitos para a condução da política monetária dependerá da magnitude relativa da desaceleração da economia global versus a reação dos ativos financeiro”, leia-se, o bom e velho pass-through da variação cambial para a variação dos preços em reais.

Já antes da covid-19, as expectativas sobre a atividade econômica entraram em revisão - para baixo. O terceiro ano sob os esperados efeitos das reformas foi frustrante para quem nelas concentrava confiança. Assim, o sinal sobre a eventual pressão de preços decorrente da atividade econômica incompatível com a resposta da oferta pode ser considerado desprezível ainda por um bom tempo. Mais tempo agora. A demanda externa mais fraca, os termos de troca em deterioração, as decisões de investir no setor óleo e gás, a política fiscal contracionista, a incerteza elevada, tudo conspira para menos atividade adiante.

Entrevista | Liberalismo primitivo de Guedes não leva a crescimento, diz Lara Resende

Um dos formuladores do Real, economista sustenta em livro que debate econômico no país está superado

Vinicius Torres Freire* / Marcos Augusto Gonçalves** | Folha de S. Paulo / Ilustríssima

[Resumo] Em meio a resultados ruins da economia e ao pânico do coronavírus, André Lara Resende lança livro com teses inovadoras, critica a política econômica e afirma que o debate macroeconômico no país está superado.

Atropelada pela pandemia do novo coronavírus, a recente divulgação do PIB brasileiro de 2019 (1,1%), que selou uma sequência de três anos de crescimento irrisório, após dois de recessão, levantou questões incômodas para os defensores do atual receituário econômico. O fiasco não foi nenhuma surpresa para o economista André Lara Resende: “A atual política econômica baseia-se num liberalismo primitivo, o ‘laissez-faire’ de Milton Friedman dos anos 1960/70”, diz em entrevista à Folha, concedida em São Paulo.

Com passagem pela vida acadêmica e experiência como diretor do Banco Central, negociador da dívida externa, presidente do BNDES e um dos formuladores do Plano Real, ele considera um erro acreditar que basta retirar o Estado da economia e equilibrar as contas públicas para que a confiança dos investidores privados seja recuperada e a economia volte a crescer.

“Não há recuperação possível nessas condições”, afirma.

Se a situação da economia já se mostrava desalentadora, a ameaça do novo coronavírus tornou o cenário dramático. O pânico nos mercados financeiros e a possível recessão mundial suscitam apelos de ação dos governos —proposta que encontra eco nas ideias do economista.

“Está claro que o coronavírus vai provocar uma parada brusca da economia mundial”, diz Lara Resende, que vê pouco espaço para a ação dos bancos centrais em relação às taxas de juros, mas prescreve atuação “inteligente” do Estado. “O tema do coronavírus ressalta a imperiosa necessidade de aprovar verbas emergenciais para a saúde. Cortar num momento como esse, ‘para compensar as perdas de receitas do petróleo’ [como foi aventado], beira o surto psicótico”, diz.

Pintado por guardiões do “status quo” econômico como uma caricatura de defensor quase incondicional do gasto público, ele expõe em seu recém-lançado “Consenso e Contrassenso: Por uma Economia não Dogmática” teses que questionam os mitos da austeridade inscritos nas tábuas da teoria hegemônica. Em seus textos, traça uma história crítica do pensamento e de fatos econômicos e explica por que a disciplina precisa ser repensada a fundo. Não são teses inventadas por ele, mas que teriam sido silenciadas e agora retornam ao debate internacional.

Na visão do autor, Estados que emitem a própria moeda não têm, sob determinadas condições, restrições financeiras. Podem gastar quanto quiserem, por meio de emissão monetária ou por endividamento a uma taxa de juros que têm como controlar. Pergunta-se: em decorrência, não haveria inflação, disparadas de juros e fugas de credores do governo, que deixariam o país ou buscariam outros ativos que não títulos da dívida pública?

Não, dentro de certos limites, responde o economista, que fez seu doutorado no MIT, na mesma turma de Ben Bernanke, presidente do Fed à época da crise de 2008. O governo —argumenta— poderia gastar até o limite em que consumo e despesas de investimento não pressionassem a capacidade de produção.

O país também teria de limitar com muita prudência o endividamento externo, pois não poderia emitir para cobrir esse passivo. De resto, o gasto tem de ser eficiente, definido talvez por uma agência independente. “O que desancora a inflação é crise, o Estado se desorganizar, tanto financeira quanto politicamente, o déficit em conta corrente, o aumento populista do salário mínimo, os choques de preço de energia”, diz.

E os credores, “o mercado”, não cobrariam mais para financiar a parte da despesa coberta por endividamento, com o que a dívida pública cresceria sem limite? Não. O Banco Central tem o poder de definir a taxa de juros abaixo da taxa de crescimento econômico. Com isso, a dívida cresceria menos do que a economia, e os donos do dinheiro não teriam para onde fugir, a bom preço.

De onde saiu a intuição ou a demonstração para a tese de que não haveria inflação? Da reação dos BCs à quebradeira de 2008. Na sequência do desastre, observou-se uma gigantesca expansão monetária nos EUA e na Europa, quando os bancos centrais, na prática, direta ou indiretamente, financiaram instituições e financistas quebrados e, a seguir, empresas e mesmo seus governos, com emissão de moeda. O resultado de tal política não foi inflacionário.

Segundo Lara Resende, há um ponto cego na teoria econômica, incapaz, há décadas, de explicar as relações entre moeda e atividade econômica. A sombra se tornou um mito, em parte por interesse, em parte por incompreensão do caráter histórico da teoria econômica. Na verdade, a história mudou faz alguns séculos, com a criação da moeda fiduciária. E os bancos criam moeda ao concederem empréstimos.

Se haveria tantos ganhos e tão poucos perdedores, porque a resistência à mudança? O establishment da teoria econômica resiste, bem como os emissores de moeda privada, ou seja, o sistema financeiro.

Lara Resende evita entrar em detalhes sobre como poderia ocorrer na prática a mudança para um tal regime de política econômica, transição que no caso do Brasil teria de superar traumas históricos de endividamento hiperinflacionário, um quase consenso prático e teórico a favor da austeridade e um edifício constitucional e legal em tese erigido para promovê-la, aliás sem muito sucesso, para dizer o menos.

Um problema seria que o “país vive um estresse pós-traumático com os planos de investimento do período do PT, incompetentes ou corruptos”, diz o economista.

Acredita, no entanto, que a mudança de visão é inevitável, tanto por pressão da quarta revolução tecnológica quanto pela previsível absorção do debate internacional mais atualizado, “como costuma acontecer em praças colonizadas”.

Certamente que tal projeto exige tempo e um debate que não interdite a divergência —ele acredita que ocorra hoje um obstáculo para tal, inclusive na mídia, “que subscreve a política em vigor”.

O economista não se mostra disposto a assumir funções públicas, mas se sabe que tem mantido conversas com lideranças políticas, em especial o presidente da Câmara, Rodrigo Maia.

Leia trechos da entrevista.

Rubens Ricupero* – Um século e meio de paz com os vizinhos

- Folha de S. Paulo | Ilustríssima

[Resumo] Último conflito armado do Brasil com países da América Latina, a Guerra do Paraguai chegava ao fim há 150 anos. Episódio ainda controverso, a batalha encerrou o período de choques na bacia da Prata, iniciou a derrocada da monarquia e inspirou uma tradição diplomática de paz e não intervenção.

No dia 1º de março, o Brasil completou 150 anos ininterruptos de paz com seus dez vizinhos. Nenhum outro país com tão vasta vizinhança ostenta essa tradição pacífica.

Em 1º de março de 1870, terminava, com a morte do ditador paraguaio Francisco Solano López, a Guerra do Paraguai contra a Tríplice Aliança formada por Brasil, Argentina e Uruguai. Em Assunção, manifestações oficiais relembraram a efeméride; no Brasil, passou em brancas nuvens.

Repetiu-se o que ocorrera no centenário do fim do conflito (1970). Nos cinco anos anteriores à data, os jornais guaranis recordaram dia a dia o que acontecera um século antes. O Brasil guardou silêncio, fiel à lição do barão do Rio Branco de que há vitórias que não se devem comemorar.

Somente no aniversário do fim do conflito, o ministro do Exército emitiu nota exemplar, afirmando que o Brasil tinha preferido esperar para comemorar cem anos de paz a um século de guerra. Era, e é, a melhor maneira de celebrar a maior tragédia da história sul-americana.

Passado tanto tempo, a Guerra do Paraguai continua a suscitar acusações e dúvidas que merecem esforço de elucidação. A quem cabe, por exemplo, a culpa pelo conflito?
As hostilidades começaram em 11 de novembro de 1864, quando, sem declaração de guerra, os paraguaios capturaram o vapor brasileiro que conduzia o presidente (espécie de governador) designado para Mato Grosso. Em fins de dezembro, duas colunas invadiram o território mato-grossense.

López protestara em agosto de 1864 contra a intenção brasileira de intervir na guerra civil uruguaia e advertira o Brasil das consequências de um ataque a seus aliados do Partido Blanco. Não houve, no entanto, nenhuma ameaça ou agressão direta contra o Paraguai da parte da Corte do Rio de Janeiro.

Não existia, assim, justificativa para o Paraguai invadir o Mato Grosso, em seguida o Rio Grande do Sul e ocupar Uruguaiana. Aliás, a fim de atacar o território gaúcho, López violou o território argentino, possibilitando a aliança com o Brasil que não teria ocorrido sem essa provocação.

Como se explica que um país cuja população em 1860 se estimava em cerca de 400 mil habitantes desafiasse a Argentina, com 1,7 milhão, o Brasil, com 9 milhões, e o Uruguai, com 250 mil, num total de menos de meio milhão contra 11 milhões?

Em defesa da democracia

É urgente neutralizar as ameaças às instituições

Dom Walmor Oliveira de Azevedo* /Felipe Santa Cruz** / José Carlos Dias***/ Paulo Jeronimo de Souza**** | - Folha de S. Paulo (15/3/2020)

Constitui objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, entre outros, “construir uma sociedade livre, justa e solidária, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Isto está escrito com todas as letras na nossa Constituição Federal de 1988 e é aspiração do povo brasileiro. É preciso reafirmar, no momento atual do país, com todas as nossas forças, que a democracia é o único regime político capaz de implementar a sociedade prevista na Carta Cidadã.

A democracia, considerados seus próprios limites, é um dom a ser desdobrado em valores e dinâmicas que garantam a participação, a liberdade e o incondicional respeito aos princípios de defesa da vida e da dignidade de toda pessoa humana. Por isso, é incontestável e merece defesa a democracia no Brasil, fruto sofrido e amadurecido da redemocratização inspirada na ação de destacados atores políticos, aos quais reverenciamos; entre eles, um povo que soube reconquistar a liberdade e os direitos confiscados.

Foi esse povo que também legitimou, por lutas sociais, os direitos cidadãos registrados na Carta Magna de 1988, comprometendo a todos na sua obediência irrestrita e práticas transformadoras, pelo dever cidadão da edificação de nossa sociedade sobre os alicerces da igualdade e da solidariedade, garantindo o tratamento de todos como iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.

O Brasil, por seus Três Poderes, segmentos e cidadãos todos, no horizonte e nos parâmetros sacramentados pela Constituição Federal, sobre os alicerces do Estado democrático de Direito, não pode permitir o enfraquecimento de suas instituições democráticas de poder-serviço, garantindo equilíbrio entre os Poderes da República, considerados, especialmente, o papel institucional do Poder Executivo, do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, sem os quais a democracia mergulhará na escuridão e se pagará um preço ainda mais alto. Os Poderes exercem funções diferentes, mas nenhum é maior que outro. Sem eles, não há democracia.

É necessário e urgente, por uma lúcida compreensão e práticas democráticas, neutralizar e vencer as ameaças a essas instituições, pela obrigação moral de todos de defendê-las e fortalecê-las. Não se pode, absolutamente, fomentar o risco de levar os brasileiros ao caos do enfraquecimento e até à destruição da nossa democracia.

É no Estado democrático de Direito que se vai avançar na urgente busca do indispensável equilíbrio para a sociedade brasileira, detentora de todos os recursos para a superação dos vergonhosos cenários de misérias, com tanta pobreza, corrupção, privilégios, milhões de desempregados, com situações de crises humanitárias, exigindo velocidade e lucidez em respostas novas na economia, na educação e na saúde; avançar por meio de posturas adequadas no tratamento do meio ambiente, já tão pressionado pelos interesses econômicos; e avançar no cuidado prioritário dos pobres e pela exemplaridade responsável no exercício da política.

Por isso, preocupados com os riscos do clima de afrontas e de fomento à intolerância, juntamos forças em nossas entidades para levar esta mensagem ao povo brasileiro.

Marcados pelo sentido da solidariedade, sintam-se todos convocados a gestos e compromissos com a vida, superando bravamente as crises humanitárias, efetivando ações que façam o conjunto da sociedade brasileira trilhar os caminhos da Justiça, com lógicas e dinâmicas novas, na verdade e pela paz!

*Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo de Belo Horizonte e presidente da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil)

**Felipe Santa Cruz
Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)

***José Carlos Dias
Presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns - Comissão Arns

****Paulo Jeronimo de Souza
Presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI)

O que a mídia pensa – Editoriais

Bolsonaro dá exemplo duplo de irresponsabilidade – Editorial | O Globo

Presidente descumpre protocolo médico em apoio a manifestações que afrontam a Constituição

Talvez o maior modelo político, ideológico e comportamental de Jair Bolsonaro, Donald Trump não parecia levar muito a sério o coronavírus até que, na quarta-feira, anunciou o fechamento do país a voos que partem da Europa. Como é do feitio dos políticos radicais, tentou usar politicamente a medida: estabeleceu uma exceção para a Grã-Bretanha do aliado Boris Johnson, como se ingleses, escoceses etc. não tivessem o mesmo poder de disseminar o vírus. Na sexta, foi obrigado a decretar “emergência nacional” e tomar uma série de medidas importantes.

O presidente brasileiro, nacional-populista de raiz, no figurino de Trump, deve ter tido vontade de chamar o patógeno da pandemia de “vírus estrangeiro”, imitando o presidente americano. Mas não há informação de que tenha criado empecilho a qualquer das decisões adequadas que vêm sendo tomadas pelo seu ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e por outras áreas do governo.

Os erros de Bolsonaro, reforçados ontem, são de outra ordem, tão ou mais graves: demonstrações de irresponsabilidade política e pessoal. O presidente entrou em terreno institucionalmente perigoso, na última semana de fevereiro, ao fim do carnaval, quando ajudou a divulgar por sua conta de WhatsApp a convocação de manifestações contra o Congresso e o Supremo realizadas ontem em algumas cidades. De sentido golpista. Inconstitucionais, ilegais.

Música | Ana Costa - Samba dos Ancestrais

Poesia | João Cabral de Melo Neto - ‘Os Três Mal-Amados’

O amor comeu meu nome, minha identidade,
meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade,
minha genealogia, meu endereço. O amor
comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos
os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas
camisas. O amor comeu metros e metros de
gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o
número de meus sapatos, o tamanho de meus
chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a
cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas
médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas,
minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus
testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de
poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações
em verso. Comeu no dicionário as palavras que
poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso:
pente, navalha, escovas, tesouras de unhas,
canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de
meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada
no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto
mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu
a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de
propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos
que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde
irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta,
cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas.
O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos,
e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua
chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba
de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam
sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas
de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a
água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os
mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde
ácido das plantas de cana cobrindo os morros
regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo
trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de
cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas
coisas de que eu desesperava por não saber falar
delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas
folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de
meu relógio, os anos que as linhas de minha mão
asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro
grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da
terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e
minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu
silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte”.