- O Estado de S.Paulo
Se resta ao governo alguma prudência, o Decreto 9.690/2019 deve ser abolido
Um grave passo para atenuar a democracia foi dado com o Decreto 9.690/ 2019 sobre a Lei da Transparência. Segredos devem reger assuntos estratégicos da ordem militar ou diplomática, pois sem eles são iminentes os prejuízos aos interesses nacionais. Mas, no decreto, decisões para ocultar documentos ficam a cargo de pessoas desprovidas de autoridade plena, como é o caso da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Logo, as liberdades, sobretudo a de imprensa, recebem ameaça. E sem livre informação não existe democracia.
No Brasil, setores autoritários ou corruptos tudo já fizeram para tornar inviável qualquer accountability. Eles ocultam da opinião pública e do jornalismo crimes ou privilégios. Os moradores do escuro agora recebem incentivo oficial. Se resta ao governo alguma prudência, o mencionado decreto deve ser abolido.
A democracia abole o segredo. No absolutismo o soberano não devia satisfações aos parlamentos, aos juízes, aos súditos. James I afirma que “os reis são justamente chamados deuses; pois exercem certa semelhança do Divino poder sobre a terra. Deus tem o poder de criar ou destruir, fazer ou desfazer ao seu arbítrio, dar vida ou enviar a morte, a todos julgar e a ninguém prestar contas (to be accountable)”. Os Levellers impõem a responsabilização dos governantes: o rei deve prestar contas ao povo, sem sigilos (Milton, The Tenure of Kings and Magistrates).
No entanto, após séculos, na guerra fria aumenta o segredo. H. Arendt afirma que a vida totalitária reúne “sociedades secretas estabelecidas publicamente” (O Sistema Totalitário). Hitler assume as sociedades secretas como bons modelos para a sua própria. Ele ordena em 1939 que “ninguém que não tenha necessidade de ser informado deve receber informação, ninguém deve saber mais do que o necessário, ninguém deve saber algo antes do necessário”. Tais normas orientaram a secreta matança de inocentes incluídos na Lebensunwertes Leben (E. Voegelin, Hitler e os Alemães).
Segundo N. Bobbio, “o governo democrático desenvolve sua atividade em público, sob os olhos de todos. E deve desenvolver a sua própria atividade sob os olhos de todos porque os cidadãos devem formar uma opinião livre sobre as decisões tomadas em seu nome. De outro modo, qual a razão os levaria periodicamente às urnas e em que bases poderiam expressar o seu voto de consentimento ou recusa? O poder oculto não transforma a democracia, perverte-a. Não a golpeia com maior ou menor gravidade em um de seus órgãos essenciais, mas a assassina” (Il potere in maschera).