Raphael Di Cunto
BRASÍLIA - Maior partido da base aliada da presidente Dilma Rousseff, mas insatisfeito com os espaços que ocupa no governo, o PMDB bateu recorde de infidelidade ao Palácio do Planalto em 2013. Nem quando o presidente era Fernando Collor de Mello - e o partido era oposição - os pemedebistas contrariaram tanto o governo nas votações na Câmara dos Deputados, mostra levantamento do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) obtido pelo Valor.
Em 2013, a taxa de apoio dos deputados do PMDB ao governo foi de 60,8%, mesmo com o presidente licenciado do partido ocupando a Vice-Presidência da República e com cinco ministros indicados pelos pemedebistas. No pior ano do governo Fernando Collor, quando não tinha espaço na Esplanada dos Ministérios, o índice de fidelidade da legenda foi a 61,4% em 1991.
A traição pemedebista pesou também no índice geral da base aliada, que nunca tinha sido tão infiel ao Executivo desde o fim do processo de redemocratização, em 1988. No ano passado, os deputados governistas acompanharam o Planalto em 73% das votações. O recorde negativo anterior era da própria Dilma, que em 2012 teve apoio de sua base em 75,5% das ocasiões.
A taxa é calculada com base no número de deputados que seguiram a orientação do líder do governo em votações não simbólicas - ou seja, que tiveram declaração de voto e divergência de pelo menos 10% do total do plenário. Diferentemente da taxa de apoio de cada partido, o índice de toda a base aliada, contudo, tem que ser comparado com ressalva.
Uma taxa alta não significa, necessariamente, força no Legislativo porque é influenciada pela quantidade de aliados de cada presidente. A base de Collor foi fiel em 91,9% das ocasiões em 1992, ano em que ele renunciou após o Congresso aprovar a abertura de um processo de impeachment por denúncias de corrupção. O ex-presidente, entretanto, contava com apoio de cerca de 220 deputados distribuídos por cinco partidos. Dilma, por sua vez, tem apoio de 11 siglas que somam 313 deputados.
A deterioração da relação com o PMDB foi rápida. Em 2011, ano seguinte à eleição, os deputados do partido apoiaram Dilma em 90,3% das votações. O índice despencou em 2012, para 71,2%, e bateu o recorde negativo em 2013, ano em que o pemedebista Henrique Eduardo Alves (RN) assumiu a presidência da Câmara em acordo com o PT.
É o resultado positivo de 2011 que impede que o apoio do PMDB seja o menor registrado a um governo pós-democratização. No balanço das gestões, Dilma ainda está um pouco acima de Collor. Os deputados pemedebistas foram fiéis ao Planalto em 74,4% das votações na gestão da petista, contra 64,2% de Collor.
Os governos seguintes tiveram mais apoio dos pemedebistas na Câmara. Itamar Franco, que tinha se filiado ao partido quatro meses antes de assumir à Presidência com a renúncia de Collor, teve uma média de 83,6% em seus dois anos de mandato.
Em 1994, o PMDB elegeu a maior bancada de deputados, com 107 parlamentares. O PSDB, do presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), fez 63. FHC ofereceu ministérios ao PMDB, que ficou dividido entre oposição e situação no primeiro mandato e registrou taxa de fidelidade de 78,5%. No segundo mandato, com a participação na coligação eleitoral, a lealdade subiu para 83,5%.
No governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), os pemedebistas começaram como oposição, mas passaram a integrar a base aliada no Congresso já no fim do primeiro ano de gestão, com a indicação de ministros para pastas como a da Previdência Social. Os deputados da legenda foram fiéis em 81,6% das votações no primeiro mandato e 86,3% no segundo mandato.
A infidelidade ao governo, porém, não é necessariamente um indicativo de que o Palácio do Planalto perdeu influência sobre o Legislativo, afirma a pesquisadora do Cebrap Andrea Freitas, mestre em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). A taxa de apoio menor pode ser explicada pelo tipo de projetos votados em cada governo. "A Dilma não tem uma agenda que exija grandes maiorias", pontua.
Os governos FHC e Lula tiveram muitas reformas feitas por projetos de emenda constitucional (PEC), que necessitam de maioria qualificada (apoio de 308 dos 513 deputados) e votação em dois turnos. Já Dilma pressiona por uma agenda com mais projetos de leis e medidas provisórias, que exigem maioria absoluta (apoio de 257 deputados) e votação em turno único.
"Uma hipótese [para a infidelidade maior] é que a Dilma force menos o Legislativo para votar com ela porque não precisa de tantos votos, só dos necessários para aprovar o projeto", afirma Andrea. A presidente poderia, assim, evitar pressionar deputados a apoiarem projetos que contrariem suas bases eleitorais, o que exigiria uma dose maior de negociação, porque pode prescindir destes votos. "Do ponto de vista eleitoral não tem problema a taxa de fidelidade estar mais baixa. O problema seria se estivesse perdendo votações", diz.
Dilma, analisa Andrea, tem os mesmos recursos que tiveram FHC e Lula para cobrar fidelidade de sua base se necessário. O atual governo só se empenhou para votar uma PEC: a que prorrogou a Desvinculação de Receitas da União (DRU) até 2015 e permitiu ao Executivo gastar livremente 20% de suas receitas. A proposta foi votada no fim de 2011 e recebeu 364 votos favoráveis na Câmara. Na época, a base de Dilma tinha cerca de 380 deputados.
Outra possibilidade é que Dilma também pode estar cedendo menos ao Legislativo nas políticas públicas. "Os projetos saíam muito alterados do Congresso com o Fernando Henrique e Lula. Parte da alta disciplina está relacionada a essas concessões que eles fizeram", diz Andrea. "Eventualmente, a Dilma pode falar que não vai fazer determinada concessão porque não precisa desses votos", avalia, com a ressalva de que, como o atual governo ainda está em andamento, não há estudos acadêmicos que comprovem esta tese.
Professor de ciência política da Universidade de Brasília (UNB), Pedro Calmon vai na mesma linha e diz não ver nenhum indício de crise de governabilidade. "Os dados mostram que ela tem apoio de dois terços do plenário [64,7%], mesmo tamanho de 2012 [64,1%]. É o sonho de uma noite de verão de qualquer presidente ter tanto apoio, ainda mais com o cenário de 2013, que teve o julgamento do mensalão e as manifestações populares de junho", afirma.
No primeiro ano de governo, tido como uma "lua-de-mel" do Executivo com Legislativo, a taxa de apoio de todos os partidos, incluídos aliados, independentes e oposição, foi de 75,5%. Nos anos seguintes, Dilma compensou o aumento da indisciplina da base aliada com maior apoio da oposição. O PSDB, que em 2011 votou a favor do Planalto em 8,4% das vezes, acompanhou o governo em 30,8% ano passado. O DEM saltou de 18,6% em 2011 para 33,7% em 2013.
Para Calmon, a infidelidade da base aliada também pode ser movida por projetos "distributivos", que beneficiam setores específicos. "O PMDB tem um eleitorado com interesses bem definidos, que muitas vezes divergem dos do PT. E tem um líder habilidoso politicamente [Eduardo Cunha], que procura se posicionar estrategicamente nas votações para barganhar mais influência e espaço no governo", diz.
O primeiro vice-líder do PMDB na Câmara, deputado Marcelo Castro (PI), se diz "espantado" com a informação de que o partido nunca foi tão infiel. "Só fomos contra o governo em dois projetos: o Código Florestal [em 2012], por entender que o governo defendia um texto desfavorável à população, e na Medida Provisória dos Portos [em junho]. Fora isso, temos concordado com quase todas as propostas e votados unidos", diz.
Para ele, os dados podem ter sido influenciados por estas votações, que tiveram vários requerimentos protelatórios e destaques em discussão. "Só na MP dos Portos foram 42 votações em que fomos contra o governo. Mas nos outros assuntos nós concordamos", diz Castro. Se essa tivesse sido a única divergência do partido com o governo em 2013, entretanto, a taxa de fidelidade estaria em 72%, e não em 60% como foi registrado.
Em nota, a Secretaria de Relações Institucionais afirmou que a relação com o Congresso Nacional em 2013 foi positiva, "uma vez que foram aprovados importantes projetos de interesse do país", como os royalties do pré-sal para educação e saúde, e foram mantidos todos os vetos presidenciais.
Fonte: Valor Econômico