sábado, 22 de fevereiro de 2020

Marco Aurélio Nogueira* - O gabinete fardado

- O Estado de S.Paulo

‘Militarização’ coincide com o comportamento autoritário e debochado do presidente

E eis que, sem maior alvoroço, os militares voltaram a ter importante peso político no Brasil. Passaram a dominar o Palácio do Planalto, onde fica o presidente, ele também um ex-militar. Vários generais e um almirante ocupam da Casa Civil à Vice-Presidência da República.

O gabinete fardado está sendo analisado como um freio ao extremismo histriônico da ala ideológica do governo, formatada pelo olavismo. O fato poderia ser visto como uma oportunidade para que se imprima um novo estilo de atuação ao governo, reduzindo seu sectarismo e sua visão obnubilada da realidade. Um estilo mais frio não daria trela às baixarias dos ideólogos.

Nessa avaliação, o novo gabinete poderia funcionar como um freio de arrumação, que acomodaria as melancias que o governo deixa chacoalhar na carroceria. Ajudaria a reduzir o destempero presidencial. Formar-se-ia um colegiado decisório que, apoiado na hierarquia militar e na cultura da caserna, faria um contraponto às manifestações bélicas do bolsonarismo. Afinal, em tempos de paz é mais importante saber guardar e reforçar posições do que atacar, sobretudo se os inimigos são imaginários.

Tudo isso a se ver. Antes de tudo será preciso descobrir se os oficiais têm um plano para recuperar a imagem do governo, se atuarão como fator de equilíbrio ou se darão um cheque em branco ao presidente Jair Bolsonaro, estimulando suas intervenções desqualificadas. Aconteceu algo assim com o general Heleno, no início visto como “moderador”, mas que logo se revelou um ativista do bolsonarismo, um “incendiário”.

Hélio Schwartsman - Greve ou motim?

- Folha de S. Paulo

Policiais militares nunca se limitam a ficar em casa sem comparecer ao serviço

Ao contrário da Constituição, do STF e de quase todo o mundo, não creio que a greve devesse ser vedada aos militares —pelo menos não em tempos de paz. A razão é doutrinária. Desde a abolição da escravidão, ninguém pode ser forçado a trabalhar contra a sua vontade. Assim, se os PMs se limitassem a ficar em casa sem comparecer ao serviço, que é a definição mais básica de greve, penso que estariam exercendo um direito legítimo. Mas eles nunca se limitam a isso.

Em suas campanhas salariais, eles se valem das armas que lhes são fornecidas pelo Estado para cometer ilegalidades como impedir colegas de trabalhar e obrigar comerciantes a fechar suas portas, sem mencionar a ocupação de espaços públicos contrariando ordens dos superiores. O nome disso já não é greve, mas motim —e como tal deveria ser tratado.

Julianna Sofia - O jetom da Universal

- Folha de S. Paulo

PF precisa investigar pagamentos do bispo Edir Macedo a chefe da Secom

A Comissão de Ética da Presidência da República liberou o chefe da comunicação do governo Jair Bolsonaro para receber dinheiro, por negócios privados, de emissoras de TVs e agências publicidade que são contratadas pela própria secretaria comandada por Fabio Wajngarten.

Mesmo diante de evidente conflito de interesses, o colegiado arquivou a denúncia, sem investigar.

Sabe-se agora que entre os clientes da empresa da qual Wajngarten detém 95% das cotas está a Igreja Universal do Reino de Deus, do bispo Edir Macedo —dono da TV Record, também freguesa do chefe da Secom. Sabe-se ainda que, depois de nomeado para o cargo no governo, o secretário obteve um aumento de 36% nos ganhos mensais da igreja por meio de um aditivo.

O contrato com a Universal foi informado pela defesa de Wajngarten no dia do julgamento na comissão, que fechou os olhos para o fato.

Demétrio Magnoli* - O limite da palavra

- Folha de S. Paulo

Os leninistas da direita invejam e imitam os leninistas originais, da esquerda

A Associação Brasileira de Imprensa clamou por uma ação da Procuradoria-Geral da República (PGR) diante dos insultos proferidos por Jair Bolsonaro contra a jornalista Patrícia Campos Mello. Simultaneamente, vozes diversas pediram ao Facebook a remoção das ofensas contra a mesma jornalista oriundas do deputado Eduardo Bolsonaro e de uma testemunha que lhe ofereceu a sujeira em depoimento ao Congresso. A primeira solicitação faz sentido. A segunda é um equívoco e, secundariamente, uma prova de infinita ingenuidade.

O modelo de negócio do Facebook baseia-se na promoção de correntes de ódio e na difusão de fake news. Delira quem nutre a esperança de que a empresa se policie. O único remédio é seu enquadramento como veículo de imprensa, o que implicaria a possibilidade de responsabilizá-la judicialmente, na forma da lei. Mas, nesse caso específico, os ataques deram-se numa CPMI parlamentar, o que os torna notícia de interesse público. Assim, solicitar sua remoção da rede social equivale a pedir censura –e, pior, atribuir ao Facebook o poder de Grande Censor.

Já o “episódio triste” (Rodrigo Maia) das ofensas presidenciais situa-se em esfera distinta. O silêncio do procurador-geral indica que, como Davi Alcolumbre, ele pretende encará-lo como “página virada”, uma evidência do quanto já avançou o Executivo no propósito de quebrar a independência do Ministério Público. As frases boçais do presidente configuram dois crimes catalogados: injúria e difamação. A PGR foge ao seu dever constitucional ao fingir que nada ouviu.

Ricardo Noblat - Bolsonaro, entre o apelo à ordem e o desfrute da desordem

- Blog do Noblat | Veja

O ex-sindicalista fardado hesita

Uma vez que o governador Camilo Pena (PT), do Ceará, pediu o envio de tropas da Força Nacional para restabelecer a ordem no seu Estado ameaçada por policiais fantasiados de milicianos, Jair Bolsonaro fez o que lhe cabia – atendeu-o.

Mas é a favor dos baderneiros mascarados, que usam seus próprios familiares como escudos humanos a exemplo dos terroristas do Estado Islâmico, que bate o coração do outrora sindicalista militar afastado do Exército por indisciplina.

Foi por ser um bom atleta que Bolsonaro começou a chamar a atenção dos superiores em sua fase inicial na caserna. Na fase terminal, destacou-se por reivindicar melhores salários para a soldadesca e tramar atentados a bomba em quartéis.

O sindicalista fardado deu lugar ao deputado federal de uma nota só – a defesa intransigente de tudo o que pudesse interessar aos seus antigos pares. Foi entre eles que montou sua base eleitoral. O resto é história conhecida.

Empossado na presidência, dedica-se desde o primeiro instante em fazer o gosto dos que o apoiaram incondicionalmente – e, entre esses, estão os militares e os policiais beneficiados com suas medidas.

E agora? Como comportar-se quando o dever lhe impõe que não compactue com greves ilegais, e ele, no entanto, hesita em bater de frente com seus devotos? É real o perigo de a sedição armada no Ceará alastrar-se a galope por outros Estados.

Adriana Fernandes* - A teia do desastre

- O Estado de S.Paulo

Se pressão por reajuste salarial das polícias prosperar e se espalhar por todo o País, impacto do que acontece agora em MG e CE cairá bem no colo do ministro da Economia, Paulo Guedes, e no bolso de todos os brasileiros

O problema da pressão por reajuste salarial das polícias nos Estados é político, policial, jurídico e é também profundamente econômico.

Se o movimento prosperar num efeito cascata e se espalhar por todo o País, o impacto do que acontece agora em Minas Gerais, Ceará e em pelo menos mais dez Estados cairá bem no colo do ministro da Economia, Paulo Guedes, e no bolso de todos os brasileiros.

Não há dúvida de que o resultado será o comprometimento da sua principal diretriz de política econômica: consolidar o ajuste das finanças públicas. A consequência seguramente será desastrosa.

A responsabilidade maior neste momento é de Jair Bolsonaro que, como deputado e, agora, como presidente da República não tem barrado as ações que seus apoiadores patrocinam nesse movimento.

Em 2017, o Estado publicou a seguinte manchete: Rede de Bolsonaro na teia do motim. Era período de carnaval, como agora. Um grupo político ligado ao então deputado federal Jair Bolsonaro esteve na linha de frente da comunicação e da logística do motim que parou a Polícia Militar do Espírito Santo e que foi influenciado por um sofisticado sistema de mensagens pelas redes sociais e WhatsApp.

Monica de Bolle* - A empregada de Schrödinger

- Revista Época

Quanto mais pessoas acreditarem que a empregada deveria se esforçar mais para não receber o Bolsa Família, mais as políticas de redução de pobreza e redistribuição de renda serão rechaçadas

Lembram-se do gato de Schrödinger? Trata-se de uma alegoria sobre o aparente paradoxo da superposição quântica, em que um gato hipotético pode estar morto e vivo ao mesmo tempo. Portanto, duas realidades contraditórias existem simultaneamente até que um observador determine em qual delas está — na realidade do gato morto, ao observar o cadáver, ou na realidade do gato vivo. Antes de o observador determinar qual realidade haverá de se impor para ele, as duas realidades são igualmente prováveis para aquele indivíduo particular ainda que sua experiência real seja única.

Tenho pensado sobre os paralelos entre o estranho mundo da física quântica e o igualmente estranho mundo da política e da economia. Por exemplo: no Brasil, hoje, há muita gente que rejeita o programa Bolsa Família por considerá-lo — colocando de forma crua — uma medida que alimenta a preguiça dos que recebem o benefício, eliminando o incentivo de encontrar formas de sustento que não dependam do Estado. 

O governo parece compartilhar dessa visão diante das notícias de que milhões de pessoas deixaram de receber o benefício recentemente, ou padecem em longas filas para recebê-lo. O problema reside no fato de que há pessoas que, ao mesmo tempo, compartilham da visão do ministro da Economia de que “há muita empregada doméstica indo para a Disney”. Qual o paradoxo? Ora, se tantas empregadas viajam para o exterior, dificilmente o fazem com o exíguo benefício do Bolsa Família — mas muitas são beneficiárias do programa. Eliminando, portanto, a hipótese anacrônica de que recebam o Bolsa Família por necessidade e viajem para a Disney, eis a empregada de Schrödinger: aquela que viaja para a Disney e não viaja para a Disney ao mesmo tempo.

Guilherme Amado - A democracia engasga

- Revista Época

Na semana anterior ao Carnaval, que em outros tempos sempre foi uma contagem regressiva para a folia, o país voltou algumas casas no jogo democrático

Quando escrevi, na coluna passada, sobre a pesquisa que a socióloga Esther Solano vem fazendo sobre o bolsonarismo, a democracia brasileira estava um pouco mais forte. Analisei como Solano, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Universidade Complutense de Madri, havia identificado, a partir de entrevistas com bolsonaristas moderados de classes C e D, os atributos antissistêmico, antipartidário/antipetista, anti-intelectual, religioso e militar que motivaram o voto desse segmento em 2018. Decidi voltar ao tema na coluna desta semana por três razões. 

Primeiro, percebi que, por falha minha, houve incompreensão de alguns leitores sobre o que é esse tipo de pesquisa, usada não só nas ciências sociais, mas também no marketing, na produção cultural e em diversos outros campos.

Voltei a ele também porque, ao ler os comentários de leitores da coluna no Instagram sobre um vídeo que mostra livros da biblioteca do Planalto empilhados no chão, percebi que ali estavam outros testemunhos ainda mais reveladores do bolsonarista como ele é. Mas, sobretudo, voltei ao tema porque concordo com o que meu colega Helio Gurovitz escreveu algumas edições atrás em ÉPOCA: a imprensa tem o desafio de buscar entender por que, apesar de tudo, cerca de um terço do país segue apoiando Bolsonaro. E o “tudo” só fez aumentar nos últimos dias.

Nesta quinta-feira 20, dia do fechamento desta edição de ÉPOCA, torço para que chegue logo a hora do desbunde, e que samba, frevo e pagode engulam a radicalização política que ganhou ainda mais ritmo desde a terça-feira 18.

Naquele dia, Jair Bolsonaro acordou ofendendo a jornalista Patrícia Campos Mello de maneira misógina e covarde, em mais um stand-up comedy de agressividade na porta do Palácio da Alvorada. Horas mais tarde, graças a um descuido numa transmissão ao vivo via Facebook da cerimônia de hasteamento da bandeira no Planalto, o ministro Augusto Heleno, um ex-fardado que tem trabalhado para escalar o ódio no país, foi flagrado aconselhando Bolsonaro a convocar o “povo” contra o Congresso, a que acusou de chantagear o governo.

Na quarta-feira 19 as bordoadas continuaram. Soube-se que, imiscuindo-se no jogo político, Sergio Moro tirou da gaveta a autoritária e anacrônica Lei de Segurança Nacional, criada na ditadura para perseguir opositores, e a empregou em “plena democracia” contra um de seus mais ferrenhos... opositores. No mesmo dia, como em Macondo, o senador Cid Gomes (PDT) peitou policiais amotinados em Sobral, Ceará, subiu numa retroescavadeira e, ao tentar invadir o batalhão local da Polícia Militar, foi baleado com dois tiros. Ciro Gomes dirigiu-se a Eduardo Bolsonaro no Twitter para afirmar que a ação de seu irmão Cid era contra a tentativa de milícias controlarem o Ceará, como, segundo Ciro, “os canalhas” da família Bolsonaro teriam feito com o Rio de Janeiro.

Daniel Aarão Reis - Sardinhas ao mar

- O Globo

Rosto severo, raivoso, Salvini projetou-se como arauto da moralidade e da xenofobia, destilando ódio aos estrangeiros

Na política italiana surgiu um ser inesperado. Humilde, discreto e silencioso como costumam ser os pequenos peixes: a sardinha.

A ideia de jogá-la às águas surgiu na cabeça de alguns jovens adultos, todos com cerca de 30 anos: Mattia Sartori, formado em Ciência Política; Andrea Garreffa, diplomado em Comunicação, guia turístico; Giulia Trappolini, fisioterapeuta e professora de dança, e Roberto Morotti, engenheiro, especializado no tratamento de lixo plástico.

Tratava-se de enfrentar o líder da extrema direita, Matteo Salvini, considerado imbatível. Há mais de um ano, lidera as pesquisas como o político mais popular do país. Seu partido, a Liga, foi o mais votado nas recentes eleições europeias e ganhou oito das últimas nove eleições regionais. Rosto severo, raivoso, Salvini projetou-se como arauto da moralidade e da xenofobia, destilando ódio aos estrangeiros, apostrofando o “sistema”, insultando e intimidando adversários. Caras, bocas e mímica de um outro “salvador da pátria”, um certo Benito Mussolini.

Em fins do ano passado, Salvini resolveu ganhar as eleições na Emília-Romanha, governada por lideranças de esquerda desde 1945. Escolheu a senadora Lucia Borgonzoni como candidata, mas ela seria apenas um biombo. Ele mesmo é quem chefiaria a campanha, pontificando nos comícios, aparecendo em toda a parte, um rolo compressor estridente, ameaçador. Seu opositor, Stefano Bonaccini, do Partido Democrático (ex-Partido Comunista da Itália), que tentava a reeleição, parecia temeroso, encolhido. As pesquisas registravam que seria uma eleição muito difícil.

Mattia, Andrea, Giulia e Roberto, amigos de repúblicas estudantis, resolveram topar a parada e fazer tudo ao contrário do que seu mestre mandava: em vez de partidos, desprestigiados, um movimento social, cívico, mas nada apolítico, ao contrário, com claras críticas às direitas e à extrema direita, e com opções definidas pela esquerda e pela democracia; às doações empresariais, preferiram financiamento através da internet; em vez de bandeiras épicas e de cores berrantes, o símbolo modesto da sardinha; no lugar de insultos e xingamentos, uma linguagem polida, educada e cordial; em vez do nacionalismo agressivo, a mão amiga aos imigrantes; ao invés de celebrar alguém, lutar por coisas sensíveis, concretas; contra aquele tubarão voraz, os pequenos peixes. Nas praças, debaixo da chuva e sentindo frio, se apertariam uns aos outros, e haveriam de sentir calor, como nas latinhas de metal.

Ascânio Seleme - O uso do cachimbo

- O Globo

Nenhum militar nasce antidemocrático ou avesso ao cumprimento da Constituição

Em qualquer nação democrática do mundo o general Heleno teria sido sumariamente demitido ao xingar o Parlamento de modo tão desmedido e fora de propósito. Além disso, estaria respondendo a processo por atentado a um dos Poderes constituídos. No Brasil, não. Imagina se o presidente Jair Bolsonaro afastaria o velho líder. O Congresso se mexeu, é verdade, e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, anunciou que vai colocar em votação pedido de convocação para Heleno se explicar. Mas ainda é pouco.

Se a frase do general tivesse sido pronunciada dentro de um quartel, a democracia brasileira estaria sendo evidentemente ameaçada e, a essa altura, poderia estar quebrada. “Não podemos aceitar esses caras nos chantageando, foda-se!”, disse Heleno, referindo-se ao desejo do Congresso de mexer no Orçamento da União, pressionando por emendas parlamentares. O que isso significa, além de desrespeito? Significa que o general entende como chantagem um poder legítimo dado pela Constituição ao Poder Legislativo.

O ministro deveria ter pedido desculpas imediatamente. Afinal, poderia dizer, foi um papo informal sem a conotação política que se quer dar agora. Mas, não. O que Heleno fez foi confirmar a compreensão equivocada que tem da distribuição de poderes. Ele disse que a conversa foi objeto de vazamento para a imprensa. Não negou o seu teor nem a sua intenção. E esse, vejam só, era o general mais respeitado no início do governo, considerado um moderado quando o temido era o hoje pacificado vice-presidente Hamilton Mourão.

O problema do general é o uso do cachimbo que faz a boca torta. Nenhum militar nasce antidemocrático ou avesso ao cumprimento da Constituição. Ao longo da carreira, o seu inestimável apreço à hierarquia também pode ser medido pelo obsequioso respeito a normas, regras e leis. Ocorre que eventualmente um homem que passou a vida inteira recebendo e dando ordens que não podiam ser contestadas habitua-se a esse mundo do “eu mando e você obedece!”.

Míriam Leitão - Policiais criam nó para o governo

- O Globo

Greve de policiais do Ceará e reajustes em Minas mostram contradição do governo e deixam a equipe econômica contra a parede

O movimento dos policiais nos estados é um grande nó fiscal, político e de segurança para o governo. Greve de policial é crime, mas o governo não a condena porque essa sempre foi uma de suas bases eleitorais. O presidente culpou apenas o senador Cid Gomes pelo dramático evento no Ceará, e os filhos do presidente falaram que os policiais atiraram “em legítima defesa”, o que é um sinal claro de cumplicidade. Os amotinados são agentes públicos armados, por isso a proibição da greve. Na área econômica, o conflito ocorrerá no caso do Distrito Federal. O governo federal terá que enviar um PLN autorizando o reajuste já prometido pelo governador. Quando fizer isso, será difícil ser rigoroso com os outros estados.

O fato de Minas Gerais, que está em situação calamitosa há muitos anos, ter dado aumento de 41% fortaleceu todos os outros protestos. No Ceará, o governo estadual havia oferecido 13%, no Espírito Santo, 30%. Nos dois casos, o argumento é que se Minas, que é o pior estado em termos fiscais, pode dar um reajuste no patamar dos 40% os outros também podem. No Espírito Santo, a tese dos policiais é que o estado tem a melhor nota em termos de contas públicas, e Minas, a pior, portanto o reajuste não pode ser menor do que o dos mineiros. Esse foi o precedente de risco que o governo de Romeu Zema (NOVO) detonou.

Minas deixou de pagar ao Tesouro Nacional e aos credores privados, por força de liminares na Justiça. No governo Fernando Pimentel, o estado suspendeu o repasse das participações do ICMS aos municípios, o que é ilegal. Zema prometeu regularizar os atrasados em 2020, mas não conseguirá. Está negociando a entrada no Regime de Recuperação Fiscal, que exigirá um ajuste de R$ 140 bilhões em seis anos, R$ 50 bilhões a mais do que foi pedido ao Rio de Janeiro. Mesmo assim, o governo concedeu o aumento de salário aos policiais de 41%. A Assembleia piorou tudo estendendo o reajuste a 70% dos servidores. No resto do país, Minas produziu um efeito cascata. Foi o gatilho, na visão da área econômica, e fortaleceu os outros movimentos de policiais nos estados.

Marcus Pestana - Carnaval e o politicamente (in)correto

Vivemos tempos nebulosos. No mundo inteiro, foi gestada uma cultura autoritária e preconceituosa, que ganhou expressão radical no UFC das redes sociais. A extrema direita americana e europeia destilam, à luz do dia e abertamente, suas concepções antidemocráticas e excludentes. São vítimas de preconceitos imigrantes, negros, mulheres, índios.

Aqui também em terras brasileiras, assistimos, nas últimas semanas, inacreditáveis manifestações de preconceito e intolerância, que devem receber nosso total repúdio.

É natural que a sociedade civil, os movimentos pelos direitos humanos e civis, as forças democráticas reagissem. Surgiu o que se acostumou chamar de “politicamente correto”. E aí, é preciso tomar muito cuidado para que a criança não seja jogada fora junto com a água suja do banho. Muitas vezes, o contraponto gera uma rigidez autoritária, que ao invés de atacar o problema de fundo, reforça preconceitos.

A saída para o enfrentamento de preconceitos e exclusões sociais não deve ser nenhum tipo de dirigismo estatal, legal ou cultural. A liberdade é sempre o melhor caminho. Apostar na elevação dos padrões educacional e cultural da sociedade, na vivência democrática, no diálogo e no pluralismo é o que deve nos inspirar. Bom senso, respeito, bom humor, tolerância devem ser os valores orientadores de uma cultura democrática.

O Carnaval é talvez a maior expressão cultural brasileira. Reverencia a alegria atávica e a irreverência de nosso povo. Materializa essa coisa um tanto macunaímica e antropofágica da civilização brasileira. Essa geleia geral, que no caldeirão da experiência histórica do país, metabolizou e sintetizou elementos culturais dos europeus, dos índios e dos negros. Isto é o que dá o caráter original e singular de nossa construção como povo e Nação. É verdade que ainda temos impregnados em nossa sociedade preconceitos que precisam ser combatidos. Mas a calibragem disso deve ser precisa, para que um autoritarismo não seja substituído por outro. Nada de dirigismo, democracia sempre, a liberdade no comando.

Alvaro Costa e Silva* - Um cuiqueiro no front da Itália

- Folha de S. Paulo

Com tantos militares mandando e desmandando no país, urge que se erga uma estátua para o cabo Laurindo

É incrível que, com tantos milicos mandando no país, até agora o cabo Laurindo não tenha sido homenageado. Não digo uma estátua, um busto, uma placa de bronze, mas seu nome bem poderia batizar uma escola militar, aproveitando a onda. O cabo foi um exemplo. Sua patente era modesta, mas os feitos de Laurindo não.

Tocador de cuíca em Mangueira, sempre lutou pela justiça social desde seus tempos no sindicato da estiva. Mulherengo, envolveu-se num triângulo amoroso com Zizica e Conceição e teria sido morto, conforme relatado por Noel Rosa no samba “Triste Cuíca”. Era rebate falso. Tanto que, em 1943, partiu com a FEB para o front da Itália, onde passou frio e comeu na lata.

“Lá Vem Mangueira”, de Haroldo Lobo e Wilson Baptista, registrou a ausência do sambista: “Conceição/ O que aconteceu?/ Laurindo foi pro front/ Este ano não desceu”. Ao retornar, ostentava as divisas de cabo. De novo, Haroldo e Wilson contaram sua história —“Laurindo voltou/ Coberto de glória/ Trazendo garboso no peito/ A cruz da vitória”— e o que ela poderia representar —“Dizem que lá no morro/ Vai haver transformação/ Camarada Laurindo/ Estamos a sua disposição”.

Em “Comício em Mangueira”, de Wilson Baptista e Germano Augusto, ele afirmou: “Eu não sou herói/ Heróis são aqueles/ Que tombaram por nós”. Os invejosos rebateram com “Conversa, Laurindo”, de Zé com Fome e Ari Monteiro: “Anda dizendo que lutou como um herói/ E no entanto nem saiu de Niterói”.

Cansados da laurindomania, Herivelto Martins e Heitor dos Prazeres, em “Desperta, Dodô”, de 1945, resolveram matar o personagem, arranjando-lhe um substituto, o tal Dodô. A troca só foi possível porque Laurindo era uma ficção. A qual aparece em outros quatro sucessos carnavalescos da época e chegou ao cinema com “Samba em Berlim”, interpretado por ninguém menos que Geraldo Pereira.

¨*Alvaro Costa e Silva, jornalista, atuou como repórter e editor. É autor de "Dicionário Amoroso do Rio de Janeiro".

O pensamento vivo de José Arthur Giannotti

Prestes a completar 90 anos, ele lança novo livro, afirma que a filosofia no Brasil se resume a comentários e xingamentos e diz que, com Bolsonaro, o país flerta com o fascismo

Ruan de Sousa Gabriel | Revista Época

Às vésperas de completar 90 anos, o filósofo José Arthur Giannotti, professor emérito do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), recebeu ÉPOCA em sua casa, no Morumbi, Zona Sul de São Paulo, numa segunda-feira abafada. Por pouco mais de uma hora, sentado em uma poltrona e rodeado de livros, falou principalmente de filosofia, mas também recordou o passado e comentou a política brasileira. Dias antes, havia assistido a Indústria americana, o documentário produzido por Barack e Michelle Obama que levou um Oscar e retrata a implantação de uma fábrica chinesa num antigo polo industrial no Meio-Oeste americano. Giannotti elogiou o filme, mas também viu qualidades em Democracia em vertigem, documentário da brasileira Petra Costa sobre o impeachment de Dilma Rousseff, que disputou o Oscar, mas saiu sem a estatueta. “O filme era errado ideologicamente, mas formalmente muito bem-feito”, resenhou o filósofo, que ainda hoje se considera de esquerda e é um dos principais estudiosos do marxismo no Brasil.

“Veja bem, minha geração teve vários desafios. Um deles era entender o marxismo”, disse. Os estudos de Giannotti sobre Marx renderam clássicos da filosofia da USP, como Origens da dialética do trabalho: estudo sobre a lógica do jovem Marx, tese de livre-docência defendida em 1966 e publicada em 1985; e Trabalho e reflexão: ensaios para uma dialética da sociabilidade, de 1983. Giannotti defende que seu “melhor livro” é Heidegger/Wittgenstein: confrontos, editado pela Companhia das Letras e que acaba de chegar às livrarias. Em quase 500 páginas, com uma prosa rigorosa ao extremo, o autor esmiúça o pensamento do alemão (e nazista) Martin Heidegger (1889-1976) e do austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951) à procura da lógica. Ele já havia publicado um livro sobre o austríaco, Apresentação do mundo: considerações sobre o pensamento de Ludwig Wittgenstein (1995). “Heidegger e Wittgenstein são dois filósofos do século XX que abandonam a ideia de razão, o que é fabuloso”, afirmou Giannotti. “Tratei de examiná-los em seus pormenores e deu num livro extremamente difícil, mas o que posso fazer? Vai ser lido por, no máximo, 100 pessoas. Mas é um livro que pode ficar e, quem sabe, se confrontar com o tipo de filosofia que se está fazendo hoje.”

Muito da filosofia feita hoje, lamentou Giannotti, é “bordado”, mero comentário. “Se você for ao Departamento de Filosofia da USP, vai encontrar várias bordadeiras, gente que pega um pedaço de Descartes e estuda, estuda, estuda aquele negócio e fica lá bordando. São estudos interessantes, mas são bordados”, reclamou. “Quando saem do bordado, alguns fazem uma mistureba como a que faz o Olavo de Carvalho ou outros críticos do chamado ‘marxismo cultural’. Eles estudam um autor e insultam os outros. Nos últimos tempos, o que temos na filosofia são dois abismos: bordados e insultos.”

O que a mídia pensa – Editoriais

Motins de policiais ameaçam estado de direito - Editorial

Se não houver firmeza na resposta à crise no Ceará, a indisciplina pode se alastrar para outras regiões

A imagem de um homem com capacete, certamente um policial, atirando contra uma retroescavadeira que era conduzida pelo senador Cid Gomes (PDT) em direção ao portão de um quartel amotinado da PM cearense, em Sobral, demonstra a gravidade da situação a que chegou o relacionamento funcional e hierárquico das forças policiais com o Estado.

Entre os responsáveis pela cultura de indisciplina que vem sendo cultivada na área de segurança pública, principalmente nas Polícias Militares, está o presidente da República, Jair Bolsonaro, cuja carreira política se sustenta na defesa corporativista de militares e policiais. Na tramitação da reforma da Previdência, foi notório o lobby de Bolsonaro para que policiais não perdessem vantagens.

Quartéis da PM e de Bombeiros passaram a ser mobilizados como se fossem bases de sindicatos, mesmo que sejam forças, como as militares, proibidas pela Constituição de fazerem greve. Quarta-feira, dia dos tiros em Sobral, logo os ministros do Supremo, Ricardo Lewandowski e Alexandre de Moraes, alertaram para a inconstitucionalidade do levante no Ceará.

Este desvirtuamento vem de muito tempo. Inclusive com a articulação nacional dos movimentos. A greve dos bombeiros no Rio, em 2012, ocorreu em meio a um momento de tensão também em outros estados.

Devido à exposição que as lideranças desses motins conseguem, quase sempre algumas delas se lançam na política. Da paralisação de 2012, surgiu o cabo Daciolo, o folclórico candidato a presidente da República pelo Patriota, nas eleições de 2018.

Música | Frevo do Galo

Poesia | Vinicius de Moraes - Soneto de Carnaval*

Distante o meu amor, se me afigura
O amor como um patético tormento
Pensar nele é morrer de desventura
Não pensar é matar meu pensamento.

Seu mais doce desejo se amargura
Todo o instante perdido é um sofrimento
Cada beijo lembrado é uma tortura
Um ciúme do próprio ciumento.

E vivemos partindo, ela de mim
E eu dela, enquanto breves vão-se os anos
Para a grande partida que há no fim

De toda a vida e todo o amor humanos:
Mas tranquila ela sabe, e eu sei tranquilo
Que se um fica o outro parte a redimi-lo.

*Vinicius de Moraes, in 'Antologia Poética'