- O Estado de S. Paulo, 30/4/2015
O desligamento da senadora Marta Suplicy do PT, partido no qual militou por 3 décadas e com o qual mantinha grande afinidade, não parece destinado a provocar tremores e sobressaltos exclusivamente na área petista. A atitude, que em boa medida sacramenta a disposição da senadora de disputar as próximas eleições para a Prefeitura de São Paulo, força a que alguns cálculos políticos e eleitorais sejam refeitos por todos os personagens políticos, por partidos e personalidades.
Um desdobramento importante, ainda que não diretamente provocado pelo desligamento: ele acelerou as conversas que desde o ano passado o PSB e o PSB mantinham tendo em vista a fusão das duas legendas.
Há bons motivos para se olhar o fato com atenção. Antes de tudo porque a nova legenda terá força política não desprezível: somados, PSB e PPS passarão a ter três governadores, 45 deputados federais, 588 prefeitos, 92 deputados estaduais e 5.831 vereadores. A fusão criará a quarta força depois de PMDB, PT e PSDB. O que poderá levar a um melhor alinhamento dos diferentes pontos do espectro político, afetando em particular o campo das esquerdas e o próprio governismo, que pretendia conseguir com que o PSB voltasse à condição subalterna que ocupou até o ano passado. A fusão também ajuda a que se dê maior coerência (e menor dispersão) ao leque partidário, ajudando bastante a que se supere o quadro da bipolarização PT versus PSDB, que vem sendo mantida com a anuência das duas legendas e o apoio mais velado do PMDB.
Sempre haverá quem ponha em dúvida as boas intenções do gesto, assim como sempre haverá quem torça o nariz para ele em nome da tese de que PSB e PPS não são partidos autenticamente de esquerda, nem sequer de centro-esquerda. Por trás destas últimas posições, porém, há um misto de ressentimento, preocupação com perda de espaço e hiper-ideologismo de gabinete, ou acadêmico. O esforço, hoje, para estabelecer quem é ou não é de esquerda seguramente não passa por estes espasmos doutrinários e exige atitudes mais densas do que adjetivos de ocasião.
Há um componente de realismo político na decisão de fundir as legendas: juntas elas podem pesar e se converter em opção política efetiva. Separadas, ainda que agarradas a tradições de respeito, relevância histórica, heroísmo e importância cultural – o comunismo e o socialismo –, continuarão a viver à margem dos rios profundos da política, em risco permanente de subalternização e desaparecimento.
Não há como dizer se a operação será bem-sucedida e produzirá os efeitos esperados. Toda e qualquer construção partidária, mesmo quando derivada de uma fusão de legendas com grau expressivo de enraizamento, sempre estará submetida a chuvas e trovoadas, enfrentará muitos obstáculos e sofrerá a oposição dos que se sentirem por ela prejudicados. Precisará alcançar um difícil equilíbrio dinâmico entre apetites políticos de curto prazo e expectativas de longo prazo, ajustando-se ainda a diferenças regionais e ao jogo interno das correntes. O ajuste entre imaginários políticos não é, em definitivo, uma operação simples.
Sinal evidente disso foi a reação imediata de alguns deputados do PSB, que ontem mesmo vocalizaram sua insatisfação. “O PSB caminha para ser satélite do PSDB”, reclamou o deputado Glauber Braga (PSB-RJ). A fusão incomoda em particular os parlamentares e militantes socialistas ainda magnetizados pelo governismo e refratários a uma oposição mais contundente, que na visão deles estaria sendo feita pelo PPS. Como disse o deputado Bebeto Galvão (PSB-BA), a fusão “é o casamento da cobra com o jacaré”. Se tivermos de fazer oposição, acrescentou, teremos de ir para uma “oposição racional, não uma oposição por oposição”.
Tal corrente acredita estar sendo “”tratorada” pela Executiva do PSB. “Tenho reservas em relação a essa fusão porque temos programas distintos, visões de mundo e de Estado, de projeto para o País, diferenciado”, explicou Bebeto. “Como conviver com essas contradições? Não tem como coexistir na mesma casa”, emendou.
Ambos os deputados dão pouca importância às convergências históricas e ao veio comum que alimentou as duas tradições. Falam como pessoas dispostas à resistência. Ou, no caso de derrota, à migração. É a mesma situação do ex-presidente do PSB, Roberto Amaral.
Um trabalho de persuasão e convencimento será portanto necessário. Se bem-sucedida, o novo partido decolará com força e poderá passar à fase do esclarecimento público.
A fusão, se avançar de fato, colocará algumas interrogações tópicas à movimentação política. Uma delas diz respeito à Rede Sustentabilidade. Há quem já esteja falando que a Rede perderá com o fato, pois se verá sem o apoio mais ativo do PSB, partido que abrigou Marina Silva e lhe ofereceu condições de competitividade política nas eleições do ano passado.
Não vejo assim. Antes de tudo, porque um melhor alinhamento das forças partidárias contribui expressivamente para que a Rede defina sua inserção e sua identidade: é um recurso de construção da própria proposta partidária redista. E depois porque um novo partido de esquerda — ou centro-esquerda, ou esquerda democrática, ou reformista –, se for para valer, terá de significar tanto a valorização da grande política (e, portanto, de uma “nova política”), quanto a qualificação do diálogo político e a ampliação das condições de possibilidade de frentes políticas mais proativas, democráticas e generosas, condições estas que incluirão em lugar de destaque propostas como a da Rede. Ela própria tenderá assim a se fortalecer.
Pelo peso que têm na história brasileira, pelo patrimônio que legaram à política nacional, PPS e PSB somente darão um passo emblemático rumo ao reposicionamento partidário se emprestarem densidade e coerência à pretendida fusão. Grande política, novo modo de fazer político, valores democráticos e sociais, disposição “desinteressada” em contribuir para o diálogo político e a regulação do capitalismo poderiam ser vistos como os eixos de uma fusão enriquecedora.
Se caminharem de fato nesta direção, não serão somente a Rede ou a esquerda a ganhar. Ganharão todos, até mesmo os que se sentirem ou forem afetados negativamente pela fusão. Será um salto para frente da democracia política que temos por aqui.
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Marco Aurélio Nogueira é professor titular de Teoria Política da Unesp