PROGREBINSCHI, Thamy. Judicialização ou representação. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.
Embalado pelos movimentos de redemocratização na América Latina e Península Ibérica no final dos anos de 1970, cujas lutas em prol de um sistema de direitos que fosse capaz de garantir o respeito às liberdades individuais e aos direitos de participação política efetiva, o Brasil chegou à Constituição de 1988 disposto a deixar definitivamente para trás seu último ciclo autoritário. Não se tratava, naquele momento, de afastar o fantasma da exceção, como o fora para a Alemanha pós-nazismo, mas da própria usurpação do poder constituinte pelo “Comando Supremo da Revolução”[2]. A luta pela redemocratização, nesse sentido, significou no Brasil a reconquista da capacidade da sociedade de ativamente refundar uma nova comunidade jurídico-política, eliminando seus malfadados prepostos e estabelecendo o fim de uma regência ancorada em duvidosos motivos de urgência.
O resultado desta mobilização foi uma constituição impregnada de princípios de moralidade política e encarada como um plano de ação para a efetiva implantação dos valores democráticos que previu. A questão não era somente elencar direitos, mas principalmente realizá-los na experiência republicana, de modo a evitar um novo aprisionamento da soberania popular pela falácia da defesa da ordem. E foi por isso que dentre os dispositivos constitucionais foram previstos políticas públicas e regras processuais de acesso do cidadão às garantias fundamentais e à plena vivência democrática que a Carta de 1988 procurava naquele momento reinaugurar{3}. Neste ambiente de constitucionalização do debate público, o papel republicano do Supremo Tribunal Federal (STF) deixou o restrito círculo das cátedras de direito constitucional, e despertou o interesse da Ciência Política, forçando o jurista e o cientista político a uma profícua interlocução. Se parcela substancial da vida republicana estava sendo animada pelas disputas sobre hermenêutica constitucional, cabia ao jurista compreender suas repercussões para além dos modelos descritivos de controle difuso e concentrado de constitucionalidade, bem como, por outro lado, ao cientista político analisar as implicações dos jogos de poder embutida na interpretação constitucional sem olvidar das restrições ou dissimulações impostas pela norma.
É exatamente nesse cruzamento dos campos do Direito e da Ciência Política que se insere o mais recente trabalho de Thamy Pogrebinschi, Judicialização ou representação? Política, direito e democracia no Brasil (2011). Se o livro pode ser elencado no rol dos estudos dedicados ao novo papel do Poder Judiciário pós-1988, reunidos sobre a rubrica do emblemático tema do “ativismo judicial”, não devemos transformar a generalidade da sua afiliação de pesquisa em fator que subestime sua capacidade de inovar num campo de trabalho já amplamente esquadrinhado pela literatura nacional e internacional. Nada há de trivial na pretensão da autora, a começar pela ampla pesquisa empírica que realizou sobre os julgados do STF, no período entre 1988 e 2009.
Seu trabalho tem claro intento provocativo e busca desconstruir as premissas de um falso silogismo que, segundo ela, acompanha as análises mais hegemônicas da Ciência Política sobre o fenômeno do ativismo: “à medida que avança a tese da judicialização, ganha corpo a crença de que esta teria como causa e efeito a crise da representação” (p. 03). Para Thamy Pogrebinschi (2011), nada mais equivocado do que atribuir a expansão do Poder Judiciário ao vácuo normativo deixado pelo Poder Legislativo, numa lógica de correlação inversa: quanto menos atua o legislativo, mais se sobrecarrega o judiciário, e se aprofunda a crise de um modelo representativo de democracia, que tem como lócus principal de soberania o Parlamento.
Para ela, a situação é diametralmente oposta. O STF “vem exercendo sua função contramajoritária de modo bastante parcimonioso e, mais do que isso, vem contribuindo, no exercício do controle de constitucionalidade, para o fortalecimento da vontade majoritária expressa pelas instituições representativas” (p. 09). Seu argumento inverte a interpretação dominante na Ciência Política ao postular que o ativismo judicial fortalece a representação e as deliberações majoritárias, não merecendo, portanto, prosperar o cenário sombrio acerca do futuro da democracia representativa.
Em “Judicialização ou representação?”, o objetivo é justamente desassociar a dinâmica entre os Poderes Legislativo e Judiciário de uma lógica adversarial. Como a autora revela logo na introdução, mais Judiciário não significa menos Parlamento. A interrogação que acompanha o título é, nesse sentido, desnecessária, uma vez que não faz jus a assertividade que pauta a narrativa da autora na comprovação da sua tese inaugural.
Para tanto, Pogrebinschi (2011) utiliza duas estratégias metodológicas que ao final do livro se entrelaçam. Primeiro, refutando o estudo de “casos paradigmas”, cujo repertório limitado não é suficiente, segundo ela, para um panorama sobre o comportamento decisório do STF, ela opta pela montagem de um extenso banco de dados composto por 4.574 ações que discutiram, entre 1988 e 2009, a constitucionalidade de leis federais através do modo concentrado. São elas as ADIs, ADPFs e ADCs{4}. Não se trata, portanto, de uma pesquisa que analisa a relação do STF com os demais entes da federação, mas, especificamente, versa sobre os juízos decisórios em demandas que impugnavam leis e atos normativos emanados do Congresso Nacional. Tampouco trata de outras espécies processuais com repercussão constitucional, como, por exemplo, as ações reclamatórias (RCL) e mandados de segurança (MS), que, a princípio, poderiam produzir julgados com eficácia erga omnes. É justamente pelo excesso de precisão que acreditamos que a autora, neste momento, peca por deixar para o leitor a difícil tarefa de especular sobre a manutenção do resultado da pesquisa, caso seja abandonado seus rígidos parâmetros iniciais. Para além da relação entre o Congresso Nacional e o Supremo Federal, e, mais especificamente, ultrapassando o delimitado conjunto das ADIs, ADPFs e ADCs, e incluindo ferramentas processuais mais astutas de declaração de inconstitucionalidade (MS, RCL, Súmulas Vinculantes, etc), qual seria então a postura do STF em relação aos legislativos (federal, estadual e municipal) e ao executivo das diversas esferas federativas?
Todavia, ainda que rigidamente delimitado, o universo dos julgados analisados foi enorme, e permitiu à autora, após uma série de decantações e agregações de dados, concluir que do total de leis e atos normativos editados pelo Congresso Nacional no período, inexpressivo foi o número de decisões do STF que as julgaram inconstitucional. Mesmo em caso de procedência da demanda, a Corte Constitucional tem optado por ferramentas processuais que “tendem à preservação do trabalho do Poder Legislativo, limitando os efeitos de suas decisões, quando não evitando a nulidade das leis declaradas inconstitucionais” (p. 13). Essa deferência ao Congresso indicaria, para a autora, a “adoção de uma postura corretiva ou aperfeiçoadora, que atenua o caráter contramajoritário das decisões procedentes e procedentes em parte do STF” (idem).
Não cabe a esta resenha discorrer sobre cada um dos diagnósticos parciais obtidos pela pesquisa, senão convidar o leitor à sua análise detalhada, que muito têm a contribuir à literatura especializada, com destaque para aquelas que discorrem sobre os efeitos que uma decisão de inconstitucionalidade tem sobre a agenda do Congresso Nacional. No entanto, parece-nos que todos eles parecem compartilhar de uma premissa oculta acerca do “ativismo judicial”{5}. Sem fornecer um conceito expresso, a obra associa “ativismo” a altos índices de controle de constitucionalidade das leis, dando a entender que uma Corte Constitucional pode ser considerada ativa e pouco deferente às instâncias majoritárias quando sistematicamente revisa os atos legislativos. A situação oposta, isto é, o baixo índice de procedência (ainda que parcial) das ações constitucionais autorizaria a conclusão acerca da inexistência de ativismo, ou, pelo menos, que este não se dá em subtração da arena parlamentar. E foi precisamente este o cenário delineado pela pesquisa, que aponta que das 12.749 normas promulgadas pelo Congresso Nacional no período analisado, apenas 0,02%, ou seja, 46 estatutos foram considerados inconstitucionais em 21 anos de vida republicana pós-1988 (p.109-110).
Todavia, dois problemas surgem desta análise. Em primeiro lugar, ao correlacionar o total das normas editadas com o total de julgamentos procedentes de inconstitucionalidade, a pesquisa conduz ao leitor mais desatento à conclusão precipitada de que, no Brasil, a legislação infraconstitucional, ou mesmo o poder constituinte derivado, passa por juízos prévios necessários de constitucionalidade, em configuração análoga ao modelo francês. Deste cruzamento de dados, surgiria um alto índice de conformidade das leis com a constituição, fato que testemunharia a favor da qualidade da atividade legislativa e/ou a deferência do Judiciário ao Parlamento. Entretanto, a produção de leis e o número de julgados do STF são dois universos que não podem ser facilmente comparados sem incorrer em grave distorção. Isso porque o Poder Judiciário não exerce o controle a priori de constitucionalidade, como se fosse uma instância interna ao próprio processo legislativo, como é o caso da França. Ao contrário, sua atuação é a posteriori, sempre mediante provocação, o que torna a grande maioria das normas federais que não foram objeto de questionamento judicial simplesmente indistinta em termos de constitucionalidade para o STF. Em outras palavras, inexiste sobre elas qualquer juízo de valor por parte da Corte Constitucional. Essa neutralidade de opinião institucional não pode ser confundida, como faz a autora, como chancela oblíqua à norma federal por parte do STF, uma vez que este apenas pode se posicionar sobre determinado estatuto normativo quando judicialmente provocado.
A presunção de constitucionalidade existe sim para o universo de normas legisladas pelo Congresso Nacional, mas decorre do velho princípio geral de direito que postula serem reputados válidos e verdadeiros os atos da administração pública, e não do silêncio do STF, como faz crer a pesquisa.
E é por este mesmo motivo que não se pode reunir sob a mesma rubrica de “indeferidas” as ações constitucionais julgadas improcedentes sem o julgamento do mérito e aquelas com o julgamento do mérito (vide Gráfico 1.4). No caso de vício {6} processual, embora haja extinção do feito, não há formação de coisa julgada material, o que permite seja a mesma norma objeto de novo questionamento futuro, uma vez sanada a irregularidade que deu causa à extinção por vício formal. Para esses casos de indeferimento sem o julgamento de mérito, a posição do STF é também neutra. Não se pronunciou ele nem a favor nem contra a constitucionalidade da lei ou emenda impugnada, mas tão somente sobre a falta de condições para o desenvolvimento regular do processo. Situação diversa é quando a demanda é julgada improcedente no mérito. Aqui é a substância do pleito, e não a inadequação processual, que é considerada insuficiente pela Corte Constitucional. Quando se desagrega os dados, a exemplo da Tabela 1.6, é possível concluir que, quando apreciado o mérito da ação, aproximadamente metade dos pleitos alcança algum tipo de sucesso (procedente ou procedente em parte), muito diferente dos elevados e distorcidos índices de fracasso apresentados pela Tabela 1.7 e Gráfico 1.4.
A segunda questão é ainda mais complicada e diz respeito ao próprio conceito de ativismo judicial pressuposto pela pesquisa. Nesse sentido, ao amparar suas conclusões principalmente sobre os índices de revisões bem sucedidas dos textos legais pela Corte Constitucional, a autora reduz o ativismo judicial a uma questão de mera eficiência na tarefa judicante, quando, em realidade, sucesso ou insucesso é sempre do postulante e não do juiz. A verdade é que nenhuma Corte Constitucional terá alta frequência na declaração de constitucionalidade das leis em sentido lato. Vários são os motivos para esta “ineficiência”. As inúmeras restrições processuais, exemplificadas pelo rol limitado de legitimados, pelos condicionamentos regimentais, pelos juízos prévios de admissibilidade6, além, claro, da dependência da Corte Constitucional à provocação do postulante, todos esses fatores fazem que uma quantidade pequena de normas seja ao final declarada inconstitucional{7}. Ao focar a pesquisa no espectro quantitativo, a pesquisa se fechou para as análises qualitativas, que poderiam ampliar o conceito de ativismo para além dos índices de sucesso dos pleitos de inconstitucionalidade. Com efeito, o fenômeno do ativismo judicial escapa aos julgamentos das ADIs, ADPFs e ADCs, e não pode ser reduzido ao momento judicante. Trata-se de fenômeno ainda impreciso, carecedor de um trato mais sistemático pela literatura nacional, como bem aponta a autora, mas que extrapola o processo judicial, e reside na capacidade de estabelecer e ditar o ritmo da agenda política nacional, justamente por se considerar o principal intérprete do compromisso constitucional.
Na segunda etapa da pesquisa, contudo, a autora abandona a lupa empírica e se coloca a tarefa de repensar os avatares teóricos da representação. Se da maior atuação do Poder Judiciário não se segue o esvaziamento do Poder Legislativo, como ampliar o conceito de representação política de modo a alcançar e abranger as instituições contramajoritárias? O objetivo de Pogrebinschi (2011) é potencializar os dados obtidos através da recolocação do problema teórico, consagrando, também nos grandes esquemas normativos, a deferência funcional entre os poderes da república apontada na primeira parte do livro.
E a maneira encontrada foi desnaturar os conteúdos aparentemente necessários que a ideia adquiriu no curso da história das democracias liberais, operando, desta feita, uma resignificação da representação de modo a ampliar seus fundamentos, condições de validade e legitimidade. Para Pogrebinchi (2011) a atuação ativa das Cortes Constitucionais, em deferência ao legislativo, serve de exemplo para uma teoria democrática que deve abandonar seus compromissos contratualistas, fundados na autorização do representante pelo representado, e arejar suas premissas a partir de novos conceitos como delegação, accountability e legitimação pelo resultado.
Deixando transparecer sua inspiração pragmatista, presente em outros trabalhos{8}, sua sugestão é estabelecer entre os representados e representantes, in casu, a Corte Constitucional, uma relação de governança, cuja delegação de poderes advenha da própria constituição, dispensando, assim, a validação do mandato pelas eleições. Sua legitimidade não dependeria da escolha plebiscitária, mas da sua capacidade de atender às demandas vindas dos jurisdicionados, e, ao fazê-lo, representá-los pela via da práxis da tutela constitucional. A vocalização dos anseios da soberania viria, assim, diretamente pela atuação conjunta das Cortes e seus postulantes.
Trata-se, para a autora, de momento ímpar de experimentação democrática, que, antes de ser encarado como ameaça à democracia representativa, coloca-se como oportunidade para se por em prática mecanismos não tradicionais de representação política, e que, por isso mesmo, ao ampliar os canais de acesso do cidadão aos centros decisórios, jamais poderia ser encarada como retrocesso democrático.
Em Judicialização ou representação?, Thamy Pogrebinschi nos apresenta um trabalho que refuta com muita competência os esquemas maniqueístas de descrição do fenômeno do ativismo judicial. Ao descartar a qualidade de algoz do Poder Judiciário, sua preocupação é restabelecer não apenas a vitalidade do Poder Legislativo, mas da própria democracia representativa. Seu risco, contudo, reside na despolitização do próprio conceito de ativismo, reduzido nos primeiros capítulos à eficiência com que o STF invalida as normas federais. Uma redução conceitual que não faz jus ao ator político que quer empoderar, tampouco aos imbricado e astuto quadro normativo que delineou na parte final do livro.
NOTAS
[1] Advogada e doutoranda em Direito Constitucional pela PUC-Rio. Professora da PUC-Rio (helenacolodetti@gmail.com).
[2] Nesse sentido, ver o preâmbulo do Ato Institucional nº 01: “A revolução se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz, não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação. A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o governo anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém a força normativa, inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória.”
[3] Evidentemente que a capacidade redentora de uma constituição possui limites, e que a tarefa da efetivação dos valores constitucionais é árdua. Estamos no campo das lutas políticas, no qual as forças não são distribuídas de maneira equânime. Porém, sem qualquer ingenuidade, ainda assim é possível afirmar o esforço da sociedade brasileira em empoderar seu cidadão com direitos que o façam ocupar o espaço público com suas reivindicações, sejam elas materiais, processuais ou simbólicas.
{4} “ADI” diz respeito à “ação direta de inconstitucionalidade”. “ADPF” é a sigla que nomeia a “ação de descumprimento de preceito fundamental”, e, por fim, “ADC” significa “ação direta de constitucionalidade”.
{5} Tampouco distinguindo “ativismo judicial” de “judicialização da política”, considerados sinônimos. Sobre a diferença entre “ativismo judicial” e “judicialização da política”, ver MACHADO, Joana de Souza; CITTADINO, Gisele Guimarães. PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO. Departamento de Direito. Ativismo judicial no Supremo Tribunal Federal. 2008. 120 f. Dissertação (Mestrado em Direito).
{6} Aqui o exemplo típico é o americano, no qual a Suprema Corte seleciona os casos que aceitará julgar, sempre que entender que alguma questão constitucional tratada nas instâncias inferiores mereça nova interpretação ou mesmo confirmação de entendimento pelo órgão defensor máximo da Carta Constitucional.
{7} Apenas a título de comparação, a Suprema Corte Americana, cuja atuação marcante na vida pública americana suscita acalorados debates dentro e fora do direito sobre seu caráter ativista, entre os anos de 1952 e 2010, declarou inconstitucional apenas 82 normas do Congresso americano, apesar de ter recebido 8.330 pedidos de revisão constitucional. Disponível em http://scdb.wustl.edu/analysisOverview.php?sid=1103-BLUEJAY-8976. Último acesso em 22/06/2011.
{8} POGREBINSCHI, Thamy. Pragmatismo. Teoria Social e Política. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2005.
FONTE: Boletim CEDES, julho 2012