Natuza Nery (Editora do Painel) – Folha de S. Paulo
Dilma Rousseff abre o computador e diz, baixinho: "Gente do céu, esse povo é complicado".
Na tela do laptop, a presidente afastada se depara com a quarta, "ou quinta ou sexta" versão da carta que pretende entregar aos 81 senadores até a quarta-feira da semana que vem (10).
A exclamação da petista sobre as versões do documento tem razão de ser: aliados de diferentes matizes ideológicas e interesses conflitantes continuavam dando muitos pitacos no teor da mensagem.
Durante encontro com a petista no Palácio da Alvorada, na manhã desta quinta-feira (4), a Folha teve acesso a alguns dos trechos da "mensagem às senadoras, aos senadores e ao povo brasileiro".
A defesa do plebiscito é o argumento central do discurso, talvez um dos derradeiros na condição de presidente.
"Darei apoio integral à iniciativa de convocação de um plebiscito, com o objetivo de definir a realização de novas eleições e a reforma política no país", diz a missiva.
Poucas horas depois de ler, diante da reportagem, a parte do documento já fechada, o presidente do PT, Rui Falcão, divulgava seu posicionamento sobre a proposta: ser contra o plano de consulta popular. Foi apenas mais um de tantos desacertos protagonizados entre Dilma e seu partido.
"Que o povo se manifeste, não só através de pesquisas de opinião, mas por meio do voto popular sobre a antecipação das eleições e reforma política", afirmou ela, em entrevista à Folha.
A presidente afastada continuou: "Estão tratando o presidencialismo como se parlamentarismo fosse. O parlamentarismo permite o voto de desconfiança. No presidencialismo, o impeachment, sem crime, é golpe".
Mas há lógica em querer voltar para então sair, como diz Michel Temer, indagou a reportagem.
"A lógica? É ele não ter 54,5 milhões de votos. Eu sou legítima. Ninguém, nem o impeachment, transformará Temer num presidente legítimo. E ele vai carregar essa pecha até o fim", alfineta.
Dilma justificou sua declaração, dada na terça (2) à revista "Fórum", sobre o PT precisar passar por "grande transformação em que se reconheça todos os erros".
A petista disse que a declaração tinha o intuito de defender a legenda ao ser questionada sobre o fim da sigla.
À Folha, porém, repetiu a tese da autocrítica partidária. "É um processo. O PT foi muito demonizado. [Mas] vai ter de fazer, é simples assim, acaba fazendo."
Questionada sobre a acusação de caixa dois na disputa presidencial de 2010, reiterou que as dívidas daquela campanha com o marqueteiro João Santana foram assumidas pelo PT. Nesse momento, Dilma saca uma folha impressa e mostra à reportagem uma nota escrita pelo então tesoureiro José de Filippi isentando-a de responsabilidade no caso.
'Tentáculos'
Enquanto fala, pede mais um café ao garçom do Alvorada. "Um café para as massas oprimidas", brinca.
Apesar dos esforços para voltar, ela não esconde ter tirado um peso das costas. O jeito é o durão de sempre, mas um tanto menos tenso.
Sem ser perguntada, Dilma fala no deputado afastado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), responsável pela admissibilidade do pedido de impeachment, embora também com menos agressividade do que das vezes anteriores.
A petista parece ter tomado algum distanciamento do próprio caso. Chega até a falar da inteligência de algozes como Cunha, o maior deles, indica ela, e o senador Romero Jucá (RR), ambos do PMDB.
Sobre o primeiro, afirma: "Chego a sentir pena, de certa forma. Como gente. Porque a pessoa que acha que o mal é banal vive num total desalento. Como o cara de [descrito pela escritora alemã] Hannah Arendt, que trabalha na câmara de gás, num campo de concentração, e volta pra casa, uma casa florida, e beija seus filhos".
Mas, ainda assim, golpeia o deputado afastado.
Cunha tem "tentáculos" na Câmara, palpita. Sabe muito sobre a cúpula dos novos condôminos do Planalto. "Teria de tirar muito ele de cena para tirar a influência dele."
E segue, desta vez sem citá-lo diretamente: "Parece aquelas versões dos filmes americanos em que o poderoso chefão controlava tudo de dentro da prisão".
Dilma faz digressões políticas para explicar a crise. Fala da fragmentação partidária e do deslocamento ideológico do "centro democrático" dominado pelo PMDB em 1988 –agrupamento bem mais progressista, diz ela– para o chamado "centrão" de hoje, resultado da multiplicação de partidos.
"O centro político se desloca para direita com Eduardo Cunha", diz.
"Não está valorizando muito o poder do rival?", pergunta a Folha.
"Temer nunca controlou nada, é o Cunha."
Ajuste fiscal
Muito mais tranquila do que nos tempos de Planalto, Dilma é hoje menos defensiva do que nos tempos do exercício do cargo.
"Qual foi nosso erro? Acharmos que era possível fazer um ajuste fiscal rápido. Não dava, pois a crise política se sobrepunha. Eles inventaram a pauta-bomba".
Curioso não mencionar os tempos de Arno Augustin –secretário do Tesouro no primeiro mandato e apontado como executor da chamada contabilidade criativa– como causa da crise fiscal, questiona a reportagem.
"Quero te lembrar de uma coisa: não estou sendo julgada pelo Arno. Meu pedido de impeachment é no Joaquim Levy", disse, em referência ao ministro da Fazenda do início de seu segundo mandato.
E continua. "Quem era o secretário do Tesouro [quando surgiram as acusações que deram base à denúncia das pedaladas]? Tarcísio Godoy. Vivem dizendo que eu tinha uma ligação próxima com Arno. Só tem um problema, tem erro de pessoa."
E Henrique Meirelles, estará na carta aberta ao Senado? Prometerá mantê-lo no cargo para retomar o comando do país, como defendeu o senador Cristovam Buarque?
Dilma sai-se pela tangente. "Não vou fulanizar na carta."
A carta, a propósito, terá cerca quatro páginas, diz ela. Sua equipe diz que o teor do documento sobre o plebiscito será mantido mesmo sem o apoio do PT.
"O grande centro da carta é isso", comentou ela, horas antes de seus companheiros baterem em retirada.
"Nós queremos vencer no Senado e na história. A carta dá um caminho de uma transição, de uma saída para o país."