No decorrer dos seus 43 anos, transcrevemos trechos da Declaração de março de 1970 do Comitê Estadual do PCB do antigo Estado da Guanabara. São passagens nos quais o autor principal do seu texto, Armênio Guedes, analisa a conjuntura do governo Médici. Eram os anos de chumbo, de grande repressão, época em que poucas áreas da oposição acreditavam na ação política como meio eficaz para derrotar o regime de 1964.
Apresentação: Armênio Guedes
Em
1970, o Partido Comunista Brasileiro (PCB) vivia um momento de grandes
dificuldades políticas. E não era diferente a situação dos comunistas da antiga
Guanabara, cujo Comitê Estadual havia sido eleito em 1967, na conferência
preparatória do VI Congresso do Partido.
A derrota do movimento de massas em
1968/69 e a promulgação do AI-5, que liquidou os últimos restos de liberdades
existentes no país após o golpe de 1964, colocaram as correntes políticas e o
movimento operário e popular perante uma situação nova e complexa. As formas de
luta e de organização que as forças democráticas deviam adotar a partir de
posições necessariamente defensivas, de resistência, impostas por derrotas
sucessivas após 64 e principalmente no período que se seguiu ao insucesso
político de 68, nem sempre foram assimiladas com a rapidez que a situação do
país exigia. Faltaram para isso a todas essas organizações – e entre elas
o PCB – lucidez e agilidade políticas.
Muitos – pessoas e organizações –,
levados pelo desespero e pela falta de perspectiva, se deixaram arrastar, com
base numa análise falsa, para as posições da luta armada e do uso
indiscriminado da violência, como formas únicas e exclusivas de ação política
no combate para liquidar a ditadura. A um tal comportamento não estiveram
alheios militantes e setores do PCB, que posteriormente dele se desligaram.Em
1970, apesar da condenação do VI Congresso ao "foco guerrilheiro" e a
outras formas de luta que não apresentavam caráter de massa, ainda tinham
influência nas fileiras do PCB muitas das idéias defendidas pelos
"foquistas". Parcialmente influenciados por tais idéias, muitos
membros do PCB vacilavam em realizar esforços para reconstruir o movimento de
massas e, assim, colocar em prática a linha de resistência ao processo de
fascistização do país, executado pelo regime mais abertamente após a adoção do
AI-5. Essa não era certamente uma tarefa simples nas condições de repressão e
terror então existentes; mas era o único caminho possível e viável para a
resistência e o gradativo avanço das forças democráticas.
Foi para reagir a esse momento de
dificuldades e confusões que a Comissão Política do CE da Guanabara decidiu
lançar o documento de março de 1970. Tratava-se, de um lado, de um esforço para
colocar em prática a linha aprovada pelo VI Congresso; e, de outro, para dar
continuidade à tradição do Partido no Estado de ligação com as massas e de
alianças com um amplo arco de forças democráticas e liberais.
Para a elaboração do presente
documento, de minha autoria, foi decisiva a participação que pude ter nas
discussões realizadas no interior da Comissão Política do CE, integrada também,
entre outros, por Élcio Costa e João Massena de Mello, ambos eliminados pela
ditadura durante os anos da repressão sangrenta de 1974/76. Depois de
elaborado, o documento foi aprovado por unanimidade na Comissão Política e no
Comitê Estadual, praticamente sem qualquer emenda.
Ao republicá-lo hoje, é relevante
observar que algumas das teses nele defendidas só seriam levadas em
consideração pela direção nacional do PCB alguns anos mais tarde, em 1973.
Pode-se constatar, também, o acerto da análise e das previsões, o que é mais
significativo quando se pensa que aquela era praticamente a primeira
intervenção dos comunistas no novo quadro inaugurado com a edição do AI-5 e com
o início do "milagre brasileiro", com todas as suas conseqüências e
características. O texto resistiu ao tempo, dez anos após sua publicação.
Exatamente por isso, o documento não
pode deixar de ser lido se se deseja conhecer um pouco da história da ação e
das concepções do PCB durante os anos mais negros do regime criado pelo golpe
de 64. Vem daí a idéia de republicá-lo.
Ao fazer isso, cumpre registrar,
alto e bom som, que o documento não existiria sem a atividade do conjunto do
Partido na Guanabara, em particular de seus organismos dirigentes e de base.
Foi em nome dessa atividade, integralmente voltada para a organização da classe
operária e das amplas massas do Brasil e para a conquista de uma democracia que
se abrisse para o socialismo, que diversos companheiros foram presos,
torturados e mortos, amargaram o exílio e tiveram suas vidas destroçadas. A
eles, pois, e em particular a Élcio Costa e João Massena de Mello, deve ser
sempre dedicado o documento que se segue.
São Paulo, março de 1981.
(...)
“As crises políticas que culminaram na indicação do Gal. Garrastazu Médici para a Presidência da República ganharam intensidade na segunda metade de 1969. Essas crises foram geradas por conflitos de naturezas diversas e se deram em diferentes planos da vida política.
As soluções encontradas, quer com as medidas tomadas pela Junta Militar, quer com a eleição do novo presidente militar, apenas atenuaram (ou adiaram) os seus efeitos.
E justamente porque persistem tais conflitos é que é importante examiná-los. Antes de tudo, assinalemos que as últimas crises, ao lado de suas especificidades, apresentaram pontos comuns com as demais crises sofridas pelo regime atual.
Entre os fatores causadores de desgastes da ditadura, opondo-se a seus esforços para fazer avançar o processo de fascistização, encontramos sempre dois tipos de resistência: a do movimento nacionalista e a do democrático. Certo, esses dois elementos do processo político brasileiro tendem, historicamente, à convergência: há entre eles um condicionamento mútuo muito estreito. Mas, em determinadas situações concretas, um deles pode assumir maior importância como acelerador do processo revolucionário brasileiro. De qualquer forma, direta ou indiretamente, eles sempre estiveram no centro das crises que vêm abalando o regime. Ou se originando de um choque direto entre o governo e a oposição (AI-2, novembro de 1965), ou de um conflito no seio do sistema de forças do governo (afastamento de Costa e Silva, constituição da Junta Militar e indicação de Médici), os golpes sucessivos, a partir de 64, foram sempre desencadeados para precaver o processo contra revolucionário contra o seu desgaste pela resistência nacionalista e/ou democrática.
A maior ou menor instabilidade dos governos da ditadura (razão das crises) tem sido em função de sua maior ou menor permeabilidade às pressões oriundas daqueles dois movimentos.
A contradição a que acabamos de nos referir dá origem a outras menores, secundárias e subordinadas, mas que nem por isso deixam de assumir importância decisiva em determinados momentos. É o caso, por exemplo, do conflito entre um Poder de fato, constituído por um núcleo de oficiais superiores das Forças Armadas (ideologicamente afinados com as doutrinas político-militares da ESG, mas de difícil identificação física), e o governo do momento. Cabe esclarecer que os diferentes governos do regime de abril (Castelo, Costa, Junta e Garrastazu) surgiram sempre como frutos de acordos entre aquele Poder militar de fato e as velhas forças políticas integradas nos quadros da ditadura. Produtos de tais acordos, sujeitos muitas vezes a pressões colidentes, vimos os vários governos de regime oscilar, pendularmente, entre as duas forças, até um momento em que o aumento das tensões desemboca em crises políticas, que geram novos pactos, já que as forças em choque não tiveram, até aqui, possibilidade de terminar com o impasse. Nesses pactos, os contendores disputam posições e vantagens que os coloquem em condições favoráveis para enfrentar a nova crise.
É esse, precisamente, o panorama do governo do Gal. Garrastazu Médici. Dele dizia recentemente o jornalista Carlos Castello Branco: "Chegamos aí a outra curiosidade da situação brasileira, que é o fato de não estar o Poder totalmente e, às vezes, substancialmente nas mãos dos seus titulares, que o representam, mas não o empolgam. A força invisível está por trás de tudo, definindo critérios, selecionando virtudes e impondo normas às quais devem obediência os que a representam ostensivamente".
Já se desenha nitidamente a formação de focos de atrito no novo governo.
Apesar das medidas que, em 1969, aumentaram ainda mais o autoritarismo e o arbítrio do regime, dos atos e leis que dificultaram em alto grau a atividade da oposição e a manifestação da vontade das massas, e talvez por tudo isso, a situação política do governo Garrastazu se apresenta instável. Ele se esforça para cobrir os claros deixados por certas forças afastadas do Poder, após a última crise, chamando técnicos para sua equipe, numa tentativa de dar ao seu governo uma imagem tecnocrática. Poderá, com isso, substituir uma parte da velha "classe política" alijada do poder, criando um novo elo de ligação com as classes dominantes, evitando o isolamento e prolongando o bonapartismo atual por mais tempo. O difícil é avaliar até onde irão as possibilidades desse bonapartismo sem um Bonaparte.
Ao lado das contradições já referidas, cabe, finalmente, assinalar mais uma. Em nível mais elevado que os seus antecessores, o governo de Garrastazu sofre as conseqüências da divisão do suporte militar da ditadura. À medida que passam os dias e que as Forças Armadas continuam como centro das decisões políticas importantes, maiores são os conflitos que as dilaceram. Grosso modo, a parte mais ativa da oficialidade, que participou do golpe de 1964, principalmente do Exército, divide-se hoje em dois grupos principais: um deles, englobando talvez a maioria, é formado pelos partidários de um nacionalismo autoritário, e o outro, que dispõe de maior parcela de poder, reúne os que se mantêm aferrados aos dogmas entreguistas e reacionários da ESG. O primeiro grupo tende a crescer e a romper, de dentro, a unidade do bloco militarista reacionário. Isto determinará, obviamente, uma convergência da ação dessa força com a do movimento nacionalista democrático da oposição. É necessário, no momento de uma apreciação mais concreta, não esquecer que, entre um grupo e outro, existem, nas Forças Armadas, correntes de várias nuances, além de uma enorme massa – possivelmente a maioria – de oficiais indecisos e indiferentes.
É dentro desse quadro que o Gal. Garrastazu terá de enfrentar as próximas eleições de governadores, para o Congresso Nacional, Assembléias Estaduais e Câmaras Municipais. "A disputa eleitoral – diz o JB – não será evidentemente capaz, por si mesma, de aplainar as contradições; muito pelo contrário. Pode-se esperar que as dificuldades se criem".
Em alguns dos Estados mais importantes – SP, GB, MG, BA – o partido oficial, a Arena, até agora não conseguiu unir suas forças, e o General-Presidente ameaça impor seus candidatos, vetando aqueles que não lhe agradam, numa ação que já se convencionou chamar de "cassação branca". O governo, que num arroubo demagógico prometeu fazer o "jogo da verdade", age com cautela nesse terreno, a fim de não provocar desarranjos no precário sistema de forças políticas em que se apóia.
As correntes de oposição – e, claro, entre elas, o nosso Partido – têm, com as eleições, um grande campo para potencializar a resistência à ditadura. Nada nos leva a crer que as próximas eleições, cercadas como estão pelas medidas coercitivas da ditadura, possam ser decisivas para a liquidação do regime – é uma advertência que não podemos deixar de fazer.
Mas não tenhamos dúvidas de que elas vão concorrer, e muito, para a nova crise em gestação. Daí a sua importância para a oposição.
Ninguém pode dizer, com segurança, o resultado de uma nova crise, se haverá alguma abertura (não entramos aqui na discussão sobre a extensão de tal abertura, mas consideramos apenas que o alargamento da faixa das liberdades, por menor que seja, ajuda a organizar a resistência ao avanço do fascismo), ou se serão ampliadas as medidas repressivas, com novas restrições às já quase inexistentes liberdades civis. O que não se pode é ficar à margem, acatar o desejo do General-Presidente. Isto é, participar das eleições sem contestar o regime. A oposição, particularmente as forças de esquerda e o nosso Partido, não pode, como quer o atual Presidente, permitir que a opinião pública, em hipótese alguma, seja confundida a ponto de admitir as medidas repressoras do regime como necessárias à defesa da democracia. O regime de abril, por sua essência de classe (serviçal das velhas classes dominantes, do imperialismo, etc.), por suas vinculações antinacionais e por sua ideologia reacionária, pode, tranqüilamente, ser classificado como de tipo fascista.
(...)
É esse o quadro da oposição. Quadro que explica porque a ditadura, apesar de suas fraturas e instabilidade, ainda encontra meios e formas para avançar no processo de fascistização. Quadro que se modificará, com maior ou menor ritmo, a partir do momento em que o processo político, permitindo uma reflexão mais profunda da oposição sobre sua experiência, indique-lhe a maneira de usar sua imensa potencialidade para organizar os combates e a batalha final contra a ditadura
(...)
O exame até aqui feito sobre as forças presentes e em conflito na sociedade brasileira induz a um otimismo realista em relação à formação de uma frente antiditatorial. ~
CF. Resolução Política do CE da Guanabara do PCB (Março de 1970). In: O marxismo político de Armênio Guedes, Contraponto / Fundação Astrojildo Pereira, dezembro de 2012