- O Estado de S.Paulo
Pena que o modelo da separação dos Poderes ainda seja tosco no Brasil
“Tudo estaria perdido se
o mesmo homem, ou o mesmo
corpo dos principais, ou dos
pobres, ou do povo exercesse
os três poderes: o de fazer
as leis, o de executar as
resoluções públicas e o de
julgar os crimes ou as
querelas entre os particulares”
Montesquieu, em O Espírito das Leis
O pensador Charles-Louis de Secondat, barão de La Brède e de Montesquieu, legou à humanidade, com sua monumental obra de 1748, o modelo de organização política que plasmou a Revolução Francesa e sua Declaração Universal dos Direitos do Homem, o presidencialismo inaugurado nos Estados Unidos e a maioria das monarquias constitucionais que substituíram o absolutismo. Pena que ainda seja tosco no Brasil. O modelo da separação dos Poderes, quer no Império instituído em 1822, quer na República proclamada em 1889, tem sido deformado pela acromegalia de um em relação ao outro, notadamente pelo Executivo, e especialmente nos períodos de prevalência do autoritarismo, como na era de dom Pedro I e seu coativo Poder Moderador e, na República, nos interregnos de exceção do Estado Novo de 1937 e da ditadura militar de 1964.
Nas voltas asfixiantes do parafuso autoritário, o Legislativo, com desvios legiferantes, e o Judiciário, em transbordos hermenêuticos que transcendem o escopo da lei e da jurisprudência, também se arvoram em primeiro Poder. Tanto não bastasse, agora o Ministério Público, como autoassumido quarto Poder, quer se considerar uma síntese das demais instituições, açambarcando competências alheias a seus específicos fins, qual onipresente Leviatã, apartado do Estado nacional, soberano e absoluto, ávido de submeter os cidadãos à condição de súditos em obsequiosa genuflexão.
Nestes dias sombrios, tão assimétricos à equanimidade e isonomia republicanas, que de Cícero mereceriam a exclamação “Ó tempos, ó costumes!”, o Supremo Tribunal Federal (STF) vem de ensaiar o retorno ao leito da funcionalidade institucional ao julgar ação de inconstitucionalidade promovida pela Procuradoria-Geral da República que questiona a extensão do indulto de Natal concedido em 2017 pelo presidente da República. Entendeu o Ministério Público que o chefe do Executivo não se acha investido de poderes para conceder o benefício natalino a condenados por determinados crimes e tal entendimento foi acatado, preliminar e monocraticamente, pelo ministro-relator da matéria, Luís Roberto Barroso.
Como o sapateiro que quis retocar o quadro de Apeles além das sandálias, os questionadores ignoraram olimpicamente a Constituição, em seu artigo 84, inciso XII, que preceitua ser atribuição reservada ao presidente “conceder indulto e comutar penas” - sem nenhuma restrição à totalidade discricionária dessa prerrogativa presidencial, exceto “com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei”. Entre esses órgãos, seguramente, não se incluem os que impugnam o indulto e, mais importante, frise-se, trata-se de ato privativo, reservado ao presidente da República.
Levado o feito à apreciação do plenário do Supremo, nada menos que seis ministros contra dois reconheceram tal obviedade solar e, por maioria, portanto, embora o julgamento tenha sido interrompido por um pedido de vista, já admitiram que, ao menos nesse caso, ainda vale a lição de Montesquieu e impera a Constituição. É dizer, não cabe a um Poder da República, mesmo animado por irrefreáveis desejos, imiscuir-se nas competências de outro.